Por Eudes Baima
O título deste artigo carrega em si várias incongruências. A primeira e óbvia é alguém ter a pretensão de apresentar ao público o famosíssimo Tremendão. Cantor com mais de 50 anos de carreira, best seller dos próprios discos e parceiro na milionária carreira de Roberto Carlos, ícone de diversas gerações de roqueiros que mais recentemente começaram a redescobri-lo. A segunda é a pouco inspirada ideia de apresentá-lo em cinco discos.
Os cinco LPs esboçados abaixo nem de longe representam a média da produção fonográfica de Erasmo. E digo isso para o bem e para o mal, já que a caudalosa discografia do cantor e compositor pode resultar em uma média aritmética positiva ou negativa.
Talvez fosse mais adequado falar em “cinco discos para conhecer o melhor de Erasmo”, o que não resolveria, dado que “o melhor” é termo relativo, variável de ouvinte para ouvinte, mas seria ao menos mais restrito. O fato é que expomos cinco discos que, nem por isso, foram escolhidos aleatoriamente, mas de fato representam uma fase distinta, delimitável da carreira de Erasmo Carlos e que, simplificadamente, poderíamos definir como a fase em que, fugindo dos rótulos da Jovem Guarda, o artista empreendeu uma fuga para o rock e, por isso, se aproxima da MPB, ou, o inverso, buscando uma saída na MPB, acaba esbarrando no rock ’n’ roll de sua primeira formação musical.
Não importa, é justamente no entrevero entre os dois estilos que floresce nesses discos um jardim de flores tão originais quanto simples, tão vanguardistas quanto pop, tão brasileiras quanto universais. Por isso, esses discos merecem ser destacados como um bom começo, diria até, como único início para quem quer conhecer a discografia desse roqueiro heterodoxo que, apesar de se apresentar como rapaz de família na companhia de seu amigo Roberto Carlos, nunca deixou, para citar Rita Lee, de ter cara de bandido.
Erasmo Carlos e os Tremendões [1970]
Em 1968, a Jovem Guarda parecia esgotada. O fim do programa de mesmo nome na TV Record parecia marcar o fim de uma era. Seus ícones originais tinham se consolidado e buscavam novos horizontes tanto artísticos quanto comerciais. A cena do estilo estava ocupada nesse momento por epígonos, versões menores dos ídolos do gênero, que antecipavam a chamada música “cafona” dos anos 1970. Roberto Carlos já tinha sinalizado uma fuga dos roquinhos básicos e baladas entre o pop e a bossa-nova que fizeram sua fama.
Na trilha do filme “Em Ritmo de Aventura” (1967), produzida sem Erasmo (a dupla tinha se afastado devido a uma briga) e, principalmente no antológicoO Inimitável (que merece uma resenha nesta Consultoria), de 1968, já havia se afastado dos arranjos magrinhos dos discos da Jovem Guarda e incorporado formatos mais densos, incrementados por naipes de sopro, órgãos hammond e uma distorçãozinha nas guitarras, além de, fruto de audições obsessivas de Otis Redding (dizem que Roberto era louco pelo soul dessa época), linhas de baixo colocados à frente na mixagem.
Ao longo do ano de 1969, Erasmo, sempre o mais antenado da famosa dupla de compositores, soltou esparsos compactos, como que recolhido na formatação da nova direção que seguiria. Dois desses avulsos, “Sentado à Beira do Caminho” e “Coqueiro Verde”, forneciam as pistas para quem quisesse adivinhar para onde estava indo o Tremendão.
O primeiro era uma bem sucedida experiência de Roberto e Erasmo na via do soul de sabor brasileiro. Sua linha de órgão segue sendo icônica, e sua melodia de forte apelo popular emolduram uma letra on the road que Roberto já exercitara em “As Curvas da Estrada de Santos”.
A segunda é simplesmente a síntese dos modos de Jorge Ben e de Chuck Berry e é, nada mais, nada menos do que a pedra fundamental do samba-rock, gênero que, nos anos 1970, nos daria um punhado de discos geniais.
Ambas foram estrondosos sucessos radiofônicos e deram confiança a Erasmo para fazer um disco inteiro de ruptura com a Jovem Guarda (mas vamos reconhecer que, já nessa época, a conta bancária de Erasmo lhe dava a liberdade de ousadia igual ou maiores do que essa), que certamente teria dificuldades de deslanchar as vendas entre os fãs tradicionais.
De fato, Erasmo Carlos e Os Tremendões, que já traz novidade no título em que divide o crédito com sua banda, gravado em 1969 e lançado em 1970, é um disco-manifesto em que o cantor afirma explicitamente que a conversa agora era diferente. Não que ecos da Jovem Guarda não surjam aqui e ali, mas o disco no conjunto tem pouco a ver com o estilo.
A faixa de abertura, “Estou Dez Anos Atrasado”, já diz tudo. Erasmo se sentia ultrapassado, precisando colocar-se à altura de um tempo em que, desde 1966, pelo menos, a psicodelia e a complexidade musical e lírica tinham virado o adolescente rock ’n’ roll em um jovem lido e bem informado, já maduro. A letra, colocada sobre uma melodia e um arranjo de gente grande com grande orquestra e guitarra sacolejante, com um pé na MPB, é contundente:
(…) estou, estou dez anos atrasado
eu estou dez anos atrasado
estou dez anos atrasado…
Eu canto parabéns em festa, eu canto
e tenho inveja do sucesso , eu tenho
nunca digo palavrão
desconfio que eu estou
detendo o progresso.
“Gloriosa” tem a cara de 1967/68. Imagens urbanas, com arranjo grandiloquente sobre um ritmo quase samba e guitarra destrambelhada com o usual pedal fuzz. Já “Espuma Congelada” é uma melodia inspiradíssima de Pitit, que Erasmo emoldurou em um arranjo orquestral diretamente saído de suas audições de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (The Beatles, 1967), mas com inflexões jazzísticas garantidas pela intervenção do piano Fender Rhodes. Engraçado (e questão muito séria) é que a parte mais beatle da coisa acontece na seção da música que se converte em uma marcha-rancho.
Alguém falou “Mutantes” aí atrás? O conhecidíssimo “Teletema”, da dupla Antônio Adolfo (o irmão legal do chato Ivan Lins) e Tibério Gaspar (célebre na voz de Evinha) foi gravada maravilhosamente primeiro por Erasmo neste disco, com sua entrada super reconhecível ao piano elétrico e sua melodia inesquecível. É como se Burt Bacharach tivesse nascido no Brasil. Os dois grandes sucessos prévios, “Sentado à Beira do Caminho” e “Coqueiro Verde” comparecem nas mesmas gravações que haviam saído em compacto. E são muito pertinentes.
Outros destaques deste disco, que também traz uma exagerada e pouco inspirada regravação de “Aquarela do Brasil” (em uma função também de manifesto), são a canção-panfleto “Saudosismo”, de Caetano Veloso, famosa por declarar amor e ruptura com a bossa-nova, e a delicada “Menina”, na encruzilhada entre a pop ballad no estilo Classics IV e os sambas mais suaves de Jorge Ben.
O disco fecha com uma das melhores canções de Roberto e Erasmo, “Vou Ficar Nu pra Chamar sua Atenção”, com sua letra entre o inocente e o malicioso, sobre uma base jovenguardista. A canção sofreu um pouco com a censura (depois, com o recrudescimento da ditadura, foi proibida e teve uma versão suavizada de Roberto Carlos nos anos 1970). Não foi um estouro de vendas, mas Erasmo Carlos e Os Tremendões não fez feio nas lojas. Sua importância maior, porém, foi sinalizar uma virada radical que se consolidaria no disco seguinte.
Carlos, Erasmo [1971]
É o próprio Erasmo que caracteriza essa época como sua “fase hippie”. De fato, o disco de 1971 traz uma forte influência do pop internacional da época, seja na instrumentação, seja na temática, seja nos arranjos e melodias. Para começo de conversa, Erasmo chamou um who’s who de todo mundo que importava na música brasileira moderna, do núcleo instrumental dos Mutantes (Arnaldo, Sérgio, Rancharia e Liminha) a Caetano Veloso, de Lanny Gordin ao maestro Rogério Duprat, sem demitir Os Tremendões.
Erasmo tinha acabado de deixar a RGE para ser contratado pela Philips, que afirmava ter em seus quadros a “seleção brasileira da música” (em um tempo em que o termo “seleção brasileira” era signo de excelência). A gravadora, contudo, não tinha o Pelé do time, ou seja, Roberto Carlos. A contratação de Erasmo era um belíssimo prêmio de consolação que merecia ser celebrado com essa reunião de bambas neste disco. Depois, escolheu a atmosfera certa, simbolizada por sua incorporação à heterodoxa e variada turma do Pasquim, que acolhia as melhores cabeças da cultura inconformista da época.
Carlos, Erasmo segue sendo um dos discos mais esquecidos de Erasmo, embora tenha sido objeto de uma redescoberta recente por ocasião do lançamento de uma caixa com parte da obra do cantor em meados dos anos 2000. Aquela tendência mencionada acima de uma fuga da Jovem Guarda que levava tanto à MPB quanto ao rock ou a uma fusão dos dois estilos, mais ou menos comum nos melhores discos brasileiros dessa época, toma sua forma mais acabada neste disco.
O LP abre com a primeiríssima gravação de “De Noite na Cama”, de Caetano Veloso, que a compôs especialmente para a ocasião (na mesma época, o compositor baiano presenteou Roberto Carlos com outra pérola, o blues “Como Dois e Dois”). Erasmo retoma o samba-rock em uma versão da música que injustamente não chegou a ser a mais conhecida.
“Masculino, Feminino”, com a luxuosíssima participação da cantora Marisa Fossa (do supergrupo, embora hoje anônimo, A Banda) é uma das faixas mais bonitas gravadas por Erasmo, doce sem enjoar, erótica sem deixar de ser meiga, com uma guitarra encharcada de pedal que não sai de nossos ouvidos.
Se até aqui o disco já é ótimo, o que dizer da seguinte, “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, uma das melhores faixas do rock nacional e, com certeza, uma séria concorrente a ser a melhor de Roberto e Erasmo. A delicadeza da canção anterior parece nos preparar para a intensidade desta. Arranjo perfeito com tons blues, uma guitarra rítmica e solo pronunciadas, sobre fundo orquestral soturno. O solo de sax é arrebatador, embora curto. A letra pode tranquilamente passar por um dos mais contundentes pronunciamentos contra o regime militar e o sufoco da vida cotidiana, com seu apelo à necessidade de “dar um jeito nisso tudo”.
“Dois Animais” faz o disco seguir hard, com maravilhoso trabalho de guitarra (infelizmente, a ficha técnica não informa o que é de Serginho e o que é de Lanny) para um rock inesperado de Taiguara. “Gente Aberta”, a música seguinte, reza a lenda, não só foi feita em homenagem à redação do Pasquim, como era a canção de Roberto e Erasmo predileta de Millôr, Jaguar, Ziraldo, etc. É um rock sossegado, com arranjo econômico de percussão, baixo e guitarra deslizante (e uns soprinhos no final), quase certa de ser de Lenny.
Para fechar o lado A, Erasmo alopra e cria um estilo que só foi ter seguidores muitos anos depois quando Max Cavalera gravou “Umbabarauma, Centro-Avante Africano”, o “hard-samba-rock”. A ata da fundação é a canção “Agora Ninguém Chora Mais” (Jorge Ben), tocada em ritmo marcial transpassado por guitarras pesadas. “Sodoma e Gomorra” é uma estranha faixa gospel, mais assustadora do que louvadora, com letra meio escatológica e conduzida por violões e flautas. Estranha.
Como também estranha é “Mundo Deserto”, embora Erasmo nos leve de volta ao universo sonoro do soul-funk e que foi celebrizada, na mesma época, na voz de Elis Regina. “Não te Quero Santa” é daquelas lindas e singelas melodias que vão dar cara a essa fase, como veremos se suceder pelos discos setentistas de Erasmo, enquanto “Ciça Cecília” é uma homenagem (ou inveja em forma de música) do estilo soul de Tim Maia, velho companheiro da Rua do Matoso, na Tijuca (Rio de Janeiro), e que havia ficado para trás durante a Jovem Guarda.
“Em Busca das Canções Perdidas”, muito bonita, parece um pouco abaixo da média do disco, mas é ótima introdução para outro monólito do álbum, “26 Anos de Vida Normal”, de Marcos e Paulo Sérgio Vale, compositores prodígio da bossa nova e que derivaram em ótimos compositores pop durante os anos 1970. Letra com cara de mau em uma canção arranjada ao estilo de Phil Spector. O disco finda com “Maria Joana”, a famosa apologia à maconha de Roberto e Erasmo, mas que, no que pese a fama não musical, é uma faixa mais fraca do que o resto do espetacular LP.
A versão em CD traz ainda a ótima “A Semana Inteira”, que saiu em compacto como lado B de “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”. É provável que Carlos, Erasmo seja o ápice da fase de Erasmo aqui retratada, mas o celeiro musical do compositor e cantor ainda tinha muita coisa guardada que alimentaria vários discos maravilhosos.
Sonhos e Memórias (1941-1972) [1972]
Este disco tem forte fundo autobiográfico, soando como um balanço da trajetória de vida do autor até então. Erasmo completava a fatídica idade de 30 anos. O disco flagra o cantor às voltas com a proverbial maturidade, preocupado com o mundo e o país. “Eu estava influenciado pelo que o mundo e a humanidade estavam passando; e eu nunca tinha me ligado muito nisso, nem tampouco na realidade brasileira da ditadura militar… Mas foi ali que comecei a entender o que tinha se passado”, relembrou Erasmo décadas depois. Para Rogério Froes, que produziu o relançamento desses discos, enquanto o LP anterior refletia a euforia desse momento da carreira do cantor, Sonhos e Memórias testemunhava “sua consciência como compositor”.
O disco é fortemente autoral, constando apenas de canções de Erasmo, com “a little help from Roberto”, embora não dê para saber onde exatamente os dois trabalharam juntos. Diferentemente do disco anterior, em que Erasmo se cercou da turma identificada com a Tropicália, neste ele olha para Minas, e traz Robertinho Silva para a bateria, Tavito para as guitarras, Jorge Amiden e parte do Terço, e do que seria pouco depois o Karma, também comparecem, além do velho colaborador da Jovem Guarda, o organista Laffayete. “Largo da Segunda Feira” dá sequência à intensa inspiração de Erasmo para baladas rock. Com letra autobiográfica, encanta e emociona logo na abertura do álbum.
“Mané João” é um samba estilizado bem próximo dos grupos de jazz-bossa nova dos anos 1960 e um violão virtuoso pontuando a canção e solo de piano roqueiro. Mas a letra é puro cinematografismo tropicalista, lembrando o estilo de “Domingo no Parque”. “Bom Dia, Rock ’n’ Roll” é mais propriamente um rock-samba ou, como diz a letra, um rock bamba, na qual Erasmo, em tom saudosista, homenageia os pioneiros americanos do rock. “Grilos”, de tom confessional, é mais uma dessas baladas cativantes, conduzidas por um slide guitar magistral.
O clima suave, mas não ameno, continua em “Minha Gente”, ainda marcada pela condução guitarrística (belíssimo solo ao final), com momentos em tom maior meio no estilo das canções de Taiguara. A letra cita “Gente Aberta”, do disco anterior. “Mundo Cão”, outra melodia de rara beleza transmitida em tranquilo e criativo arranjo com foco nas guitarras e baixo mixados mais à frente, ajuda a compor o painel sonoro e lírico que tipifica Sonhos e Memórias.
“O Sorriso Dela”, agora com foco na percussão, costurada delicadamente pelo hammond de Laffayete e pontuada por sutil solo de guitarra, mantém esse clima e nos prepara para uma das culminâncias do registro, “Sábado Morto”, uma faixas mais conhecidas dessa fase, com várias regravações, de Nara Leão a Los Hermanos. Uma melodia rara para letra depressiva, para a qual faz realmente falta uma gravação de Roberto Carlos, naquele seu estilão dos anos 1970. A gravação aqui constante é arrojada, com uma segunda parte adornada por coral e orquestra e vocal feminino que introduz solo de guitarra bem psicodélico, que poderia entrar em um disco de rock californiano sem causar estranheza.
Faço parênteses aqui para uma rápida reflexão: essas canções mais suaves são tão boas, tão refrescantes e fluentes, mas ao mesmo tempo com tanto potencial para a popularidade, que é surpreendente que sigam até hoje um segredo conhecido apenas pelos fãs mais fundamentalistas. Surpreende também que Roberto, em sua fase sem dúvida mais bem sucedida comercialmente, tenha ignorado solenemente essas canções nos seus discos da época. Mais recentemente, jovens cantores e músicos brasileiros têm aqui e ali resgatado algumas dessas gemas setentistas de Erasmo. Voltemos ao disco.
A versão hard para “É Proibido Fumar” é bacana, mas é anticlimática no contexto do álbum. Parece ser um interlúdio para a volta ao universo delicado de “Vida Antiga” e da utópica “Meu Mar” (uma espécie de “Casa no Campo”), mas também compõe o balanço de vida que o disco propõe. De novo, melodias inspiradas com moldura de guitarra sem distorção, compondo um quadro cativante.
O disco fecha com a leitura de Erasmo para “Preciso Urgentemente Encontrar um Amigo”, que ele e Roberto compuseram para os Mutantes. No conjunto, este é o disco mais baladeiro da fase, mas nunca um disco piegas ou adocicado. São melodias, como já disse, suaves, que poderiam ter obtido sucesso popular, mas de inspiração rara.
1990 – Projeto Salva Terra! [1974]
Com este álbum, sem sair do universo que começou a compor com o disco de 1970, Erasmo chegou finalmente a uma fusão ótima de música sofisticada e sucesso popular. Diferente dos três anteriores, este aqui pegou pesado nas rádios, com vários hits, sem perder, entretanto, a fama de mau. “Sou uma Criança Não Entendo Nada”, rock arrastado, com guitarras contidas mas pesadas, foi um grande hit radiofônico, com sua letra que confessa malandragens e desilusões. Segue sendo, até hoje, uma faixa icônica de Erasmo.
Ela é seguida por outra canção conhecida e que, na época, tocou bastante no rádio, “A Lenda de Bob Nelson”, na qual Erasmo usa o próprio estilo “cowboy fake” de Bob para homenagear o cantor que fez bastante sucesso a partir dos anos 1940 imitando o estilo de Roy Rogers e outros vaqueiros cantores do cinema. “A Festa do Corpo Lindo” retoma a pegada baladeira sofisticada do disco anterior. Aqui brilham as guitarras de Jorge Amiden e a do jovem roqueiro Gabriel O’Meara, do grupo O Peso. “1990”, a faixa-título, é outro dos hits que o disco traz.
Com tom profético e apocalíptico, Erasmo retrata o futuro (hoje, passado) Mad Max da humanidade, concluindo com uma solução religiosa para o conflito. Tudo é contado sob uma sonzeira rock ’n’ roll. O cenário volta ao fundo acústico, com guitarrinha com wah wah e solo de sintetizador, na próxima canção, “A Experiência”, que retoma a suavidade e a temática utópica com pinceladas sci-fi. Mas na verdade a canção trata da concepção de um filho.
A coisa muda totalmente de figura em “Bolas Azuis”, referência a “Great Balls of Fire”, em que Erasmo cai em um rockão cinquentista, mas tocado de forma hard, bem influenciado por coisas como Ten Years After. O clima rock prossegue e a temática futurista volta em “Haroldo, o Robô Doméstico”, que conta a insólita história do robô que se apaixona e destrambelha, humanizando-se. O fim é trágico: “Cheio de aditivo e sujo de graxa, morreu sem dizer sua grande paixão”. “Por Cima dos Aviões” é outra balada que serve como contraponto a uma versão roqueira e arrasa-quarteirão para “Negro Gato”, o velho e sensacional hit de Getúlio Cortes eternizada na voz de Roberto. “Deitar e Rolar” é uma nova tentativa samba-rock de Erasmo que se sai muito melhor na faixa que encerra o disco, “Cachaça Mecânica”, nova volta a Jorge Ben, mas dessa vez fortemente influenciado por alguns daqueles sambas mais trágicos de Chico Buarque. Uma ótima faixa que tocou bem nos rádios, na época, mas que depois caiu no esquecimento. Se Carlos, Erasmo é musicalmente falando o melhor exemplar desse Erasmo espantado e maravilhado com o mundo adulto, comercialmente, 1990 – Projeto Salva Terra! é, sem dúvida, o mais bem sucedido disco dessa fase. Lembre-se que foi com o repertório deste disco que Erasmo rivalizou com gigantes do rock dos anos 1970, como Rita Lee e Raul Seixas, no lendário festival Hollywood Rock, ocorrido no campo do Botafogo, ainda em General Severiano, em 1975.
Banda dos Contentes [1976]
Disco considerado conceitual, Banda dos Contentes, com título que já entregava a atitude crítica diante da realidade, encerra esses anos aqui delimitados. No que pese o olhar desafiador de Erasmo neste disco, sua primeira faixa é o enorme sucesso “Filho Único”, super ouvido graças à inclusão na trilha sonora de uma novela da Rede Globo, “Locomotivas”. A capa interna não nos deixa esquecer que, apesar de dizerem que aqui começa uma fase mais família de Erasmo, ainda estamos diante do Tremendão: o artista Benício retrata uma briga de bar protagonizada por vários Erasmos.
Ao contrário do autoral disco de 1972 e da inclusão de vários parceiros no anterior, Banda Dos Contentes pesava a mão no lado intérprete de Erasmo, trazendo músicas inéditas de grandes nomes da MPB ou de astros emergentes, como Gilberto Gil e Belchior, entre outros. Claro que estão presentes rocks de Roberto e Erasmo, além de ousadias experimentais, como “Terra De Montezuma” de Ruy Maurity. “Paralelas”, a segunda faixa do LP, é aquele clássico de Belchior que havia sido gravada antes por Vanusa (também uma belíssima versão). Erasmo optou por uma roupagem de blues tradicional, mais fiel ao espírito original do compositor cearense, com marcante harmonia ao órgão e insinuante guitarra em contracanto.
A faixa seguinte é uma pequena joia que Gilberto Gil deu de presente para Erasmo registrar em primeira mão, a linda “Queremos Saber”, em que o compositor baiano cobra mais acesso às grandes invenções da ciência destinadas a aliviar a jornada do homem sobre a terra. O arranjo orquestral com bases ao violão ficou perfeito. Depois, muito depois, o próprio Gil registraria sua versão, mas a música só ganharia notoriedade na gravação de Cássia Eller no seu “Acústico MTV” (2001).
Mas, querem saber, ninguém chega perto deste registro de Erasmo. Ele volta ao rock de temática questionadora em “Análise Descontraída”, dele e de Roberto, que chama atenção pelo arranjo vocal que acompanha a execução roqueira. “Dia de Paz” é uma toada de tons sertanejos cheia de estranhezas, não por acaso de autoria de Jorge Mautner que serve de contraponto ao roquinho soft em parceria com Roberto, mas de letra amarga, que dá nome ao disco e que gozou de certa popularidade, com sua engraçada sentença: “Não adianta nada roer as vinte unhas”. Erasmo não poderia passar incólume à onda latino-americanista que varreu a MPB dos anos 1970, com a descoberta do cancioneiro dos países vizinhos.
De sua parte, gravou essa faixa de jeito andino, mas bem experimental, com complexo arranjo de percussão, “Continente Perdido (Terra de Montezuma)”, de autoria de Rui Maurity, compositor de grande mas fugaz sucesso em meados da década. O arranjo incorpora, além da percussão personalíssima, sonoridades de sopros andinos e passagens de órgão.
“Baby” é um apelo ao amor dirigido a uma namorada militante, mais ocupada com passeatas, greves e lutas do que com o namoro. Machismo bem humorado, alívio para estes dias politicamente corretos. Contudo, o namorado roqueiro é compreensivo: “Mas se não der, vamos fazer nosso amor num outro dia”. Rock lento mas focado no ritmo pesado, com ótimas intervenções de guitarras e sopros. Renato Terra, “one hit wonder” dos anos 1980, já aparecia aqui como autor da linda “Fatos e Fotos”, na qual também comparece com seus vocais agudos nos backings. Faixa muito bonita que remete ao baladeirismo de Sonhos e Memórias.
O disco fecha com “Billy Dinamite”, parceria com Rick, especialista em rock com sotaque country, que conta a história do cowboy que “fez mal” à índia Pão de Mel (os mais velhos vão lembrar que era o nome da namorada do indiozinho Havita, dos quadrinhos Disney). Rick, como já fizera em discos de outros artistas, como Belchior, dá um show tocando guitarra, violão e um sensacional banjo. “Billy Dinamite” fecha o álbum e uma fase tão pouco conhecida quanto extremamente criativa da carreira de Erasmo Carlos.
Curiosamente, tirando 1990 – Projeto Salva Terra! e uma ou outra faixa dos demais discos, trata-se de um período que segue pouco conhecido do público em geral e da turma do rock em particular. A distância no tempo (lá se vão 40 e tantos anos) e as poucas e limitadas reedições destes discos, que saíram em CD apenas no inacessível formato box (exceção ao álbum de 1979, ainda gravado na RGE e editado em CD de forma avulsa), além do preconceito de jovens roqueiros para com o cantor, mesclados à proverbial falta de memória nacional, concorrem para manter essas faixas em relativo esquecimento. Esperemos que, pelo menos no círculo restrito dos que frequentam esta Consultoria, estas grandes canções de Erasmo sejam objeto de revisitação e descoberta.
Publicado originalmente na Consultoria do Rock