Publicado originalmente no site Justificando
POR ROCHESTER OLIVEIRA ARAÚJO, mestre em Direito Constitucional e Defensor Público do Estado do Espírito Santo
Nesta semana, o artista Donald McKinley Glover a.k.a. Childish Gambino lançou o clipe da sua música “This Is America“. É uma obra-crítica repleta de referências e camadas. A experiência de assistir o vídeo pela primeira vez, despretensiosamente, já é incrível. É uma sensação de: “há muita coisa além do que estou vendo”. Esta sensação se confirma na medida em que o vídeo pede para ser revisto diversas vezes, além das leituras dos textos e observações que as pessoas vão relatando na rede mundial de computadores, because the internet funciona muitíssimo bem para essas atividades.
Sites como o Buzzfeed apresentam listas das referências mais evidentes no clipe do cantor.
“Um trabalho primoroso do diretor com o artista, tão complexo quanto seu próprio talento que envolve a capacidade de ser um excelente ator, roteirista, humorista, músico e rapper americano”.
Entre tais referências, uma me causou maiores impressões e reflexões. Por isso, antes de avançar, indico fortemente que vejam o vídeoclip. Assisti-lo antes de ter as referências escancaradas faz parte da experiência que a obra fornece:
A obra apresenta simbolismos diversos que permitem diversas críticas. Em um enquadramento, o rapper adota uma postura que faz alusão ao personagem americano Jim Crow, que remete às leis norte-americanas promulgadas nos estados do Sul e que sustentavam a legalidade de políticas de segregação e discriminação racial voltada aos afro-americanos.
Em outra tomada, o próprio ator/rapper adota uma careta que remete a outro arquétipo típico norte-americano, o Uncle Ruckus, personagem que nutre um intenso ódio por qualquer coisa relacionada aos afro-americanos e se esforça para se distanciar dos negros, embora também o seja (no cinema, o personagem Stephen, interpretado por Samuel L. Jackson, em Django, do Tarantino, é outra referência a tal personagem que representa bem suas posturas).
Diversas referências seguem no clipe, não sendo o caso de criar mais uma lista para narrá-las. Cada camada merece atenção e reflexões, sendo que a referência escondida nos cinco segundos entre 2:35 e 2:40 é, por si, capaz de gerar críticas e reflexões profundas da mensagem do artista.
Em mais de um momento – o que, confesso, só percebi após a segunda vez que assisti – concentramos nossa atenção no personagem principal e no grupo de jovens que usam roupa de colégio privado (!?) e dançam em performances incríveis no cenário caótico. Enquanto nossa atenção está voltada para the party que tais personagens estão, diversos sub-enquadramentos representam violência, barbárie, morte e tantas outras mazelas ao fundo, sem que nossa atenção seja desviada para isso.
“Bem como a cultura pop americana tem funcionado, se alimentando e apropriando de toda a cultura e arte elaborada pela comunidade negra, mas servindo também de chamariz para impedir que nos concentremos em questões sociais problemáticas”.
No gap de cinco segundos que relatamos, enquanto os personagens fazem movimentos que remetem a danças típicas africanas, chamando nossa atenção, ao fundo um cavalo branco passa em galope, com a morte montada sobre ele, sendo enquadrado de forma que segue no mesmo rumo que um carro da polícia está direcionado. Se não prestou atenção na primeira vez – como eu – veja novamente.
Um cavalo branco montado pela morte. Branco, para contrastar com a paleta de cores sombrias da tomada e que permanece em todo o videoclipe que é marcado por shadows, nos deixando ainda mais perplexos por não tê-lo notado, mesmo com o evidente contraste. Branco, para representar como a morte da população negra é levada a feito por pessoas brancas. E a direção e o enquadramento no mesmo sentido do carro da polícia também não passa sem significado, considerando que a denúncia gritada pelo movimento Black Lives Matter é sobretudo contra a violência policial que ceifa vida de negros.
O clipe, como um todo, denuncia diversas questões raciais.
“Contudo, a violência parece ser o tema central, e como sempre tentamos declinar a discussão do extermínio da população negra para um discurso estéril e sem representatividade, em que a morte vira estatística, trocando death by numbers, histórias e pessoas por dados, quando não deturpam as trajetórias da vida para tornar os corpos matáveis the worst guys, buscando legitimar a morte, a denúncia feita pelo rapper é nada sutíl e visualmente chocante”.
Mesmo assim, nos passou batida à primeira vista.
Como a internet não permite nenhum frame sem desdobramentos, os cinco segundos foram associados à uma passagem bíblica do livro do Apocalipse: I looked, and there before me was a pale horse! Its rider was named Death, and Hades was following close behind him. They were given power over a fourth of the earth to kill by sword, famine and plague, and by the wild beasts of the earth. (Revelation, 6:8). Na tradução para a bíblia em português, a passagem diz “E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.”
O inferno, a quem foi dado o poder de matar os negros, com a espada da violência institucionalizada, soma-se a outros tantos infernos negros. O aumento do desemprego da população negra norte-americana, que enfrenta a fome, os problemas enfrentados em relação à saúde, sobretudo com a suspensão de políticas públicas direcionadas à população mais vulnerável. Tudo isso mostra o inferno seletivo que é criado e sustentado na sociedade.
O final do gap de cinco segundos que relatamos segue para um enquadramento do artista que estaciona em uma pose de quem está com as mãos empunhando uma arma, embora não exista qualquer objeto ali. Mesmo assim, todos os personagens esvaziam o cenário, com nítida expressão de medo, mesmo que não haja nenhum perigo, somente a solidão de um homem que acende pacificamente seu cigarro, sem causar dano a ninguém. Não adianta, no final do clipe, ele segue em disparada, sendo perseguido por diversas pessoas, bem ao estilo do filme Corra! (Get Out, de Jordan Peele, 2017), mostrando que, independente de qualquer coisa, na construção atual da nossa sociedade, para um jovem negro a política que foi construída é de no exit.