Colunista do site Brasil247, o jornalista Paulo Moreira Leite (64) foi premiado neste ano com o segundo lugar do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem e Documentário.
“A Outra História da Operação Lava Jato” recebeu o prêmio principal da literatura brasileira e faz parte de uma série sobre os principais escândalos de corrupção política no país publicado pela Geração Editorial. A obra foi publicada originalmente em 2015 e trouxe dois textos inéditos após o processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Antes, em 2013, Paulo Moreira Leite publicou “A Outra História do Mensalão” sobre a Ação 470 que resultou nas prisões de José Dirceu, José Genoino e de algumas das principais figuras do PT. O jornalista apontou, em textos publicados no seu blog “Vamos Combinar” da revista Época, contradições e métodos controversos do Supremo Tribunal Federal sob a presidência de Joaquim Barbosa.
PML trabalhou 17 anos em duas passagens na revista Veja, onde também atuou como correspondente em Paris. Na Gazeta Mercantil, foi correspondente em Washington, nos Estados Unidos. Dirigiu a revista Época na Editora Globo, o jornal Diário de S.Paulo e a sucursal de Brasília da Istoé, antes de ir para o 247. Até o golpe contra Dilma, ele era âncora do programa Espaço Público na TV Brasil, programa de entrevistas.
O DCM entrevistou PML sobre seu novo Jabuti, a sua visão sobre a mídia, a onda da direita, além de suas obras críticas a respeito da Operação Lava Jato e o Mensalão.
DCM: O segundo lugar no Prêmio Jabuti, maior premiação literária, reconhece a mídia alternativa e a credibilidade do seu trabalho?
Paulo Moreira Leite: Quando soube que o livro fora classificado entre os 10 finalistas do Jabuti, minha reação foi achar que já era muito bom. Considerando que se trata de um livro de perfil político muito claro, na contra corrente, achei que não iria além.
O segundo lugar mostrou que há espaço no Brasil para se debater a Lava Jato, operação que tem sido tratada em clima de festa patriótica. Não acredito que o júri tenha concordado com minhas ideias, até porque não se trata de um juízo político. É o reconhecimento do valor cultural de uma obra. Isso é o que importa no Jabuti.
O livro traz 100 páginas com dois artigos inéditos. Também apresenta uma seleção de 42 textos publicados no Brasil247. O premio, assim, mostra a credibilidade que a mídia eletrônica adquiriu. Mostra que a liberdade de nossos textos, a pluralidade, que se vê cada vez menos na mídia do pensamento único, produz qualidade.
Quem falava em “blogueiros sujos” precisa limpar a boca.
DCM: Você disse ao 247 que o livro é um esforço que traduz a “experiência coletiva” de depoimentos de advogados, promotores e deputados. As fontes consultadas no seu livro foram negligenciadas?
PML: Na edição ampliada do livro, que tem um texto de 50 páginas sobre o golpe de 31 de agosto, eu escrevi um capítulo de agradecimentos para homenagear as fontes. Numa denúncia onde os aspectos políticos estão acima de qualquer outro fator, é essencial examinar o outro lado. Ninguém pode ter medo de encontrar uma mosca na sopa, como dizia o Raul Seixas.
Um bom exemplo foram as tais “pedaladas fiscais”. Os jornais tratavam isso como escândalo e até alguns assessores do PT e do governo, sem argumentos para entender o que acontecia, acreditavam nisso. Graças à economista Esther Dweck, que foi responsável pelo Orçamento no Ministério do Planejamento, eu pude compreender que era uma acusação sem base real alguma.
DCM: Como assim?
PML: Bastava conhecer as regras dos gastos públicos para entender isso, como se comprovou muito mais tarde, quando a denúncia contra a Dilma já se encontrava no Senado. Viu-se que as pedaladas simplesmente não passavam de um nome inventado por jornalistas para que dar um aspecto suspeito a uma operação contábil.
Nela era impossível apontar qualquer desvio real. A Esther e outras pessoas me ajudaram muito, permitindo enxergar o que a mídia não mostrava. Na época eu era ancora do Espaço Público, na TV Brasil, e colocava esses dados para os entrevistados.
Quando eram pessoas ligadas aos adversários do governo, eles ficavam incrédulos e até duvidavam. Advogados, como Pedro Serrano, ou procuradores de altíssimo nível intelectual, como Eugenio Aragão, me ajudaram a perceber, com conhecimento jurídico que não tenho, uma questão essencial nesta história.
O pedido de impeachment não se sustentava, pois não se demonstrava um crime de responsabilidade. Pude escrever e explicar isso no dia em que o PSDB entregou a última das diversas versões da denúncia ao Eduardo Cunha. Entrevistei o Marcelo Lavanère, que fez a denúncia que condenou Fernando Collor em 1992, e ele contou a ironia de sua situação: toda vez que ele dizia seu ponto de vista, o repórter perdia interesse e desistia da entrevista. Estava claro que a verdadeira notícia estava aqui.
DCM: Desde a revista Época você criticou o Mensalão e os escândalos que atingiram o PT. Como foi cobrir na contramão de uma imprensa que quis linchar o partido?
PML: Foi naquela cobertura que comecei a entender no que a Justiça havia se transformado. Ela é um instrumento de mudanças políticas que a velha elite brasileira, aquela que reina e governa desde das caravelas de Pedro Alvares Cabral, não consegue obter pelo voto.
No começo, eu até via aquilo como uma coisa positiva, necessária. Ninguém é a favor da corrupção, certo? Comecei a achar que havia uma coisa muito estranha quando o Supremo tomou decisões diferentes sobre o desmembramento dos processos, que havia sido autorizado para o Mensalão Mineiro e foi recusado na denúncia contra o PT.
O Janio de Freitas escreveu uma coluna que dizia tudo no título: “Dois pesos, dois Mensalões”. Aos poucos, foi possível perceber coisas piores. O mais chocante foi descobrir, com ajuda do advogado Marthius Savio Lobato, que provas importantes e que poderiam ter uma influência notável no curso do julgamento, que poderiam afetar o PSDB, foram colocadas num inquérito a parte.
As provas jamais foram examinadas pelo STF. O Celso de Mello chegou a protestar indignado contra o relator, Joaquim Barbosa, mas nada aconteceu.
DCM: Como você lida com acusações de que você é “petista” por criticar o julgamento da Ação Penal 470 e a Operação Lava Jato?
PML: Entendo que me chamem de “petista” porque tenho ideias de esquerda e sempre votei no partido desde a fundação. Defendo os governos Lula e Dilma. Sempre achei que o principal motivo ético para toda atividade política consiste em promover a igualdade entre os seres humanos, defender os frágeis e desprotegidos.
Acho que, apesar dos erros e limitações, Lula e o PT fizeram isso como nenhum outro partido e nenhuma outra força política. É a minha opinião, semelhante à da maioria dos brasileiros que foram as urnas nas três ultimas eleições presidenciais. Numa sociedade democrática, uma opinião política deve ser debatida livremente, confrontada com ideias, fatos, argumentos.
Quando vira motivo de acusação, como acontece hoje não apenas no meu caso mas de tanto jornalistas até mais importantes do que eu, é um sintoma de miséria ideológica de nosso debate político. Nossas redações se tornaram pequenas ditaduras que pretendem oprimir e controlar o pensamento de editores, repórteres, colaboradores.
Este é um traço marcante de seu funcionamento interno, que ajuda a entender a facilidade com que aderiram ao projeto de golpe que derrubou Dilma. Essa intolerância de muitas redações não tem a ver com a história do país.
Quando fui trabalhar na revista Veja, encontrei um ambiente plural, de debate político e troca de ideias. Claro que a revista tinha uma linha politica conservadora e uma hierarquia. Mas o debate político era aberto e claro. Talvez não fosse estimulado, mas não era temido.
DCM: No documentário Mercado de Notícias, de Jorge Furtado, você diz que jornalistas devem honrar acordos com fontes para conseguir dar notícias e furos. No entanto, você também critica uma ação promíscua entre promotores e repórteres. A cobertura da Lava Jato é um exemplo deste tipo de promiscuidade?
PML: A lealdade entre o jornalista e a fonte é uma regra importante de nosso trabalho. A notícia é sempre um segredo, pois envolve informações que a maioria desconhece e só pode ser partilhada entre pessoas que tem uma relação de confiança. Essa relação pode dar motivo para questionamentos éticos e políticos importantes.
Diante da decisão de publicar ou não uma notícia, todo editor e todo repórter já se perguntou se está servindo ao público, à fonte ou a si mesmo. E sempre teve dúvidas quanto a resposta. Mas o que aconteceu na Lava Jato não foi isso.
DCM: O que aconteceu na Operação Lava Jato?
PML: Acredito que os jornalistas perderam o espírito crítico e passaram à bajulação direta. Eles ficam impacientes diante de acusados que lembram seus direitos de defesa. Para usar uma expressão do Sérgio Moro, serviram de instrumentos de “deslegitimação” da classe política, num país onde as instituições democráticas têm sido fragilizadas barbaramente ao longo da história.
A mídia ajudou a criar a crise de representação em que o país se encontra. Hoje a base é a noção absurda de que os políticos não prestam e a política é uma atividade essencialmente suspeita e criminosa.
Quem está por trás dos boçais que invadiram o plenário do Congresso? Onde foram buscar motivação, ideias, heróis?
Num país que conserva a memória da luta contra a ditadura, a maioria dos jornalistas tornou-se parte de um espetáculo covarde, onde se dedicam a uma tarefa indispensável da justiça de exceção: o massacre prévio de reputações. Para quem gosta de falar da Escola Base, a perseguição a Genoíno deveria ser motivo de suicídio. E a de Lula?
DCM: Além de Lula, Moro e procuradores de Curitiba dão sinais de que vão prender políticos do PMDB, como Sérgio Cabral. A Lava Jato pode deixar de ser parcial contra o PT ou é ingenuidade pensar nisso?
PML: Eu acho ingenuidade. Acredito que alguns políticos de outros partidos serão apanhados e condenados. Isso é inevitável quando você investiga a corrupção num país onde o sistema eleitoral foi construído em torno de contribuições de grandes empresas, numa situação onde é difícil e quase impossível distinguir dinheiro de campanha de suborno.
O golpe de 64 devorou alguns aliados. Até Carlos Lacerda foi cassado. O jornal do golpe, o Estadão, ficou sob censura. Grandes empresários da época também foram perseguidos. Sérgio Moro não teria recebido o apoio que obteve, nem teria a força política, se não atingisse Lula, o Partido dos Trabalhadores e aquilo que representam.
A Lava Jato é inseparável das longas prisões preventivas para arrancar delações premiadas. Alguém consegue imaginar algum cacique do PSDB atrás das grades, pedindo para o advogado dar um jeito de liberar o banheiro no fim de semana, como aconteceu com o Paulo Roberto Costa? Ou ficar trancado numa noite de sábado cela sem luz, como fizeram com Delcidio do Amaral?
Se houvesse um interesse genuíno para apurar corrupção na Petrobras, a investigação teria andado até 1996, no governo Fernando Henrique, quando o Paulo Francis denunciou diretores que tinham contas na Suíça. Tais fatos o próprio FHC publicou em suas memórias. Pelo retrospecto, é possível que o delator Pedro Barusco, que roubou tanto que devolveu US$ 100 milhões, já fizesse parte desse esquema. Que história é essa que começa quando o bonde está andando?
O alvo da Lava Jato não é uma busca neutra de corruptos, como um caçador de borboletas na floresta. Já no final de 2014, uma reportagem de Julia Duailibi sobre equipe de delegados que comanda a Lava Jato a partir de Curitiba mostra mensagens carregadas de ódio contra Lula e o PT. Quando percebeu do que se tratava, o Supremo resolveu lavar as mãos.
DCM: Você trabalhou em posições de destaque na revista Veja, na Época e na Istoé. As semanais de informação se perderam na parcialidade de suas opiniões? Elas alinharam contra o PT por publicidade ou ideologia?
PML: Acho que existem donos de jornal que são corruptos e vendem reportagens em troca de dinheiro. Muitos jornais e revistas alugam a cobertura política para pagar as contas em período de campanha.
Só que os mais importantes, aqueles que têm alguma esperança de futuro e significaram alguma coisa para seu público, conservam suas convicções e querem encontrar um meio de sustentar o que fazem. Eu acho que essa era a receita da Última Hora, um dos jornais mais importantes da nossa história.
Ele tinha circulação e tinha receita, com empresas que concordavam com o projeto desenvolvimentista que o jornal também apoiava. Acho legítimo nas condições da imprensa sob o capitalismo. Era uma forma de garantir a liberdade de expressão de um setor imenso, mas excluído da grande mídia da época.
DCM: Como você vê a grande imprensa hoje? Os sites e blogs de esquerda ou mais independente estão em ascensão na opinião pública?
PML: É preciso lembrar o artigo do Wanderley Guilherme dos Santos sobre as Organizações Globo, publicado em outubro no blog Segunda Opinião. Porque o debate político não envolve uma emissora de TV, um jornal, uma rádio, mas um sistema. Em outubro, quando uma presidente estava deposta, e um governo sem legitimidade alguma organizava um ataque aos direitos e conquistas que o povo acumulou em décadas, Wanderley escreveu que a Globo tem “capacidade de fabricar super-heróis fajutos, triturar reputações e transmitir versões selecionadas e transfiguradas do que acontece no mundo”.
O poder do grupo se estende ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. No artigo acredito que Wanderley disse tudo. Um país habituado a defender a liberdade de expressão precisa se habituar com a ideia de que a Globo tornou-se um problema para a democracia pela sua força em si.
A Globo tem capacidade de enquadrar e disciplinar os demais pelo poder acumulado para dirigir a sociedade acima de governos eleitos, a quem se reserva o direito de ceder ou cair fora.
Os grandes jornais brasileiros, em qualquer época, foram capazes de acompanhar a roda da historia. O Estadão foi abolicionista, é bom não esquecer. A maioria dos jornais que chegaram ao século 20 era republicana.
Mesmo tendo apoiado o golpe de 64, o que é inaceitável sempre, mais tarde a maioria da imprensa apoiou o retorno a democracia. É uma trajetória que, mesmo sinuosa, mostrava algum compromisso com o país. De uns anos para cá, eles abandonaram toda e qualquer aposta no futuro do Brasil como nação. Venderam e desistiram. Em voz baixa, riem da ideia, porque acreditam que ainda vão ganhar muito até o final.
Os veículos deixaram de lado a ambição de construir um país com mercado interno, com uma indústria importante, e uma população relativamente instruída. Optaram por se tornarem sócios subalternos da globalização, que inevitavelmente beneficia uma minoria da população.
Sua relação com o Estado brasileiro, a nação brasileira, é predatória e se manifesta pelo rentismo. A mídia é parasitária, cobrando verbas de publicidade para um mercado que muitas vezes nem existe, mas que é alimentado pelo poder de retaliação que ela possui.
O que nós vivemos na Ação Penal 470 foi uma caricatura absurda dessa situação. A mesma mídia que denunciava o esquema de Marcos Valério não foi capaz de abrir mão de nenhum dos anúncios programados por suas agências. Publicaram tudo, receberam tudo, sem culpa nem remorso, o que demonstra a pouca seriedade que atribuíam às denúncias que publicavam com palavras indignadas.
DCM: Você foi correspondente em Washington. Considerando Trump nos EUA, Doria em São Paulo e Crivella no Rio, teremos uma onda de direita ou extrema-direita no Brasil e no mundo?
PML: A história não acabou, embora lembre um apocalipse só visto na Bíblia. É claro que o desgaste será rápido, porque não estamos falando de dificuldades normais de todo governo, mas de mentiras grandes demais e mistificadoras. Em muitas partes do mundo os trabalhadores e a população pobre foram derrotados, mas ainda não deram a última palavra.
A política imperial tem contradições que irá gerar conflitos e reações. A derrota de Hillary Clinton representou o colapso do acordo imperial construído pela atual direção do Partido Democrata, inclusive no Brasil, como se percebe pela perplexidade das elites ligadas ao PSDB e à fatia mais conservadora do PMDB. Eles confiavam no apoio infalível da Casa Branca para sustentar Michel Temer.
Mas a vitória de Trump é precária. Ele foi derrotado no voto popular. Perdeu por uma margem acima de qualquer dúvida, o que irá reforçar a resistência a seus programas reacionários contra direitos civis, inclusive de imigrantes e mulheres.
Os trabalhadores e operários abandonaram o Partido Democrata porque se cansaram de uma política de exportação de empregos e reconcentração de renda. Eles sofreram com todos os sacrifícios impostos pelo colapso econômico entre 2008 e 2009.
Vejo as derrotas da campanha municipal, no Brasil, como uma manifestação desta situação. O desencanto com o Partido dos Trabalhadores explica as derrotas sofridas em escala nacional, encerrando um ciclo político de quatro vitórias sucessivas em eleições presidenciais.
Mas não acredito que tenha ocorrido uma conversão ideológica da população, que, de uma hora ou outra, teria se tornada conservadora e até fascista. A maioria dos brasileiros é formada por cidadãos de convicções democráticas. Continua em busca os direitos essenciais a uma vida com dignidade: um emprego, um salário decente, um futuro para as famílias, uma existência compatível com nossas riquezas naturais e uma cultura exuberante.
Nada disso está na agenda de Michel Temer e de aliados, cujo programa é o empobrecimento geral da população. A ideia é torná-la mais atrativa para os novos colonizadores. É apenas inaceitável e nunca deu certo.