O texto abaixo é de autoria da comunidade evangélica Abrigo, de Porto Alegre:
Nem todo cristão ou cristã é fundamentalista ou conservador. Isso é essencial para qualquer início de conversa. Sabemos que é difícil de fazer essa separação, principalmente, porque, atualmente, no Brasil, é quase que vergonhoso se declarar evangélico ou católico, pois cada vez mais tem se espalhado e concretizado os escândalos, os esquemas de má fé, violências e outras maracutaias que se acumulam por aí em nome de Cristo, da mesma forma que tem se acumulado um grande capital legitimado pelas teologias da
prosperidade de inúmeras instituições, organizações e congregações ditas cristãs.
O rastro de destruição é realmente grande. Soma-se a isso também, nos últimos tempos, uma cruzada de poder, uma escalada rumo ao controle político do país, no método “custe o que custar”, através de uma bancada evangélica fundamentalista, articuladíssima com outras bancadas que representam o capital do agronegócio, do comércio de armas, mineração (exploração, espoliação e destruição ambiental) e que tem se mostrado cada vez mais alinhada com operações violentas de milicianos, na qual o atual presidente Jair Bolsonaro e sua família, possuem grandes e estapafúrdias ligações (e o mesmo presidente permanece sem dar nenhuma declaração acerca disso).
Bolsonaro, além de contar com misteriosos financiamentos norte-americanos na campanha eleitoral, também conta com o apoio de boa parte das forças armadas brasileiras, assim como o apoio da extrema direita brasileira e de grupos fascistas. Portanto, por mais que por trás do atual presidente haja vários grupos, apoios e financiamentos, sua principal base é a da tal bancada evangélica, que é extremamente fundamentalista e que conta com o apoio de milhões de brasileiros e brasileiras que dizem acreditar em Jesus.
Jair Bolsonaro também se diz cristão, mesmo que tenha sido autor de frases como “o erro da ditadura foi torturar e não matar”, “Pinochet deveria ter matado mais gente”, “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”, “Não te estupro porque você não merece.”, “A PM devia ter matado 1.000 e não 111 presos.” e “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.”, só para citarmos algumas de suas criminosas declarações, mas que fluem de sua boca com uma aparente naturalidade.
A última de Bolsonaro foi declarar que orientava que os quartéis viessem a celebrar e comemorar no dia 31 de março os 55 anos do golpe militar. No dia 1° de Abril de 1964 (Sim! 31/03 foi mais uma mentira para que “O Dia da Mentira” não coincidisse com o do golpe), a democracia (frágil, mas uma democracia) brasileira sofria um golpe, o presidente João Goulart foi deposto e começava um período de 21 anos de sangrenta ditadura.
Só para sermos mais diretos, a ditadura militar foi um dos acontecimentos mais brutais e violentos da história da sociedade brasileira, um período de 21 anos em que toda estrutura democrática foi cassada, suspensa, sendo governada por “presidentes” militares, ou melhor, ditadores, marechais e generais que foram responsáveis por um aparato repressor extremamente violento, que promoveu várias execuções, torturas, estupros, desaparecimentos de sujeitos, exílios, censuras e criminalizações de qualquer organização ou movimento democrático.
As violências foram as mais viscerais e diversas possíveis, deixando uma marca dolorida na sociedade brasileira. A ditadura militar brasileira teve grande influência norte-americana, assim como em vários outros países da América Latina que passaram por processos ditatoriais semelhantes. Contudo, com base no que foi dito antes, nos perguntamos nesse momento: Bolsonaro, você é cristão? Corroborar, legitimar e comemorar a ditadura militar se encaixa onde na perspectiva do evangelho de Jesus?
Como cristãos e cristãs, temos um compromisso real e responsável com o amor revolucionário de Jesus Cristo. Revolucionário, porque se entregou por inteiro. Foi assassinado por uns dos impérios mais poderosos do mundo, em uma articulação com os religiosos fundamentalistas da época.
Torturado e executado por denunciar a hipocrisia e a exploração do seu povo, por ensinar e proclamar que o amor de Deus não cabia mais em preceitos, em rituais ou dogmas. Por proclamar que Deus tinha se feito humanidade, frágil, tendo se manifestado através de uma mulher da favela da Palestina, entre os oprimidos do mundo, Jesus se torna a prova do compromisso do divino com os marginalizados da terra.
Por isso, como cristãos e cristãs, refutamos toda e qualquer manifestação de ódio, de apoio a qualquer que seja a forma de tortura e repressão, ou a defesa de períodos ou a comemoração de processos ditatoriais que destruíram vidas. Em primeiro, porque Jesus se manifesta em amor, e nesse amor transformou e ousou transformar a vida das pessoas e também o mundo.
No seu amor, consiste o amor de Deus, porque ele era Deus em Espírito e em carne e osso, e através desse amor decidido, optou por redimir a humanidade e o mundo. Em segundo, como já foi mencionado anteriormente, sabemos que Jesus Cristo de Nazaré, foi traído, preso, torturado e executado, com intuito de ser apagado da história pelo Império Romano e pela confraria religiosa judaica da época. Porém sua história e memória atravessaram os séculos, permaneceram na oralidade, na clandestinidade, até serem registradas pelos seus irmãos e irmãs, aqueles que caminharam com ele.
Por isso, como cristãos e cristãs, não podemos aceitar nenhuma declaração em apoio a processos ditatoriais, sejam de presidentes ou de quem quer que seja. Comemoramos e rememoramos o que Deus sublinhou através do profeta Isaías (58:6) dizendo que “o jejum que desejo não é este: que te libertes das amarras da malignidade e da injustiça; que desfaças as ataduras da opressão, que ponhas em liberdade os oprimidos, e que despedaces o jugo?”, manifestando que Deus não tem prazer ou regozijo na opressão.
Comemoramos e rememoramos o que o arcebispo anglicano e sul-africano Desmond Tutu afirmou na sua obra Deus não é cristão, ao ressaltar a responsabilidade daqueles que se dizem seguidores de Cristo com a humanidade e com o mundo:
“Nosso Deus é o grande Libertador, o Deus do Êxodo, que conduziu uma turba de escravos para fora do cativeiro e os libertou de tudo que os tornava menos do que Deus pretendia, uma libertação que permitiu que se tornassem o povo de Deus. Precisamos nos comprometer com a libertação total dos filhos de Deus, em nível político, social e econômico, de modo que todos possam desfrutar o que Paulo chama de gloriosa liberdade dos filhos de Deus. (TUTU, 2012, pág.80)”
Desmond Tutu e outras pessoas lutaram contra o apartheid na África do Sul, um projeto político que estabeleceu medidas materiais de segregação racial, um projeto político que também foi defendido por parte da sociedade que se dizia cristã. Aqueles que lutaram contra o apartheid e que se tinham como seguidores de Cristo, fizeram por entender que Deus não estava naquele projeto de opressão, de destruição daquele povo, tornando-os menos do que deveriam ser.
A ditadura militar brasileira andou nos mesmo trilhos ao estabelecer um processo de desumanização, de opressão e destruição daqueles e daquelas que defendiam a democracia e a transformação de uma sociedade profundamente desigual.
A Comissão Nacional da Verdade confirma em seu relatório final o número de 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país, e entre essas pessoas, 210 são desaparecidas. Por isso, como seguidores de Jesus Cristo de Nazaré, que foi torturado e executado, repudiamos a ditadura militar brasileira.
Não aceitaremos manifestações e comemorações de regimes ditatoriais opressores, que historicamente serviram para perpetuar a desigualdade socioeconômica e destruir a democracia.
Repudiamos a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de impulsionar a comemoração da ditadura militar no Brasil, por ser também inconstitucional e incompatível com quem se declara discípulo de Jesus.