É como sempre foi na história do Brasil, os brancos escravizam. Negros, indígenas e etc são escravizados. Como sempre foi, escravo não só trabalha de graça, mas também trabalha demais, dorme em senzala, faz xixi e cocô no mato. Tradição é tradição.
No dia 10 de fevereiro deste ano, em uma operação que envolveu o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram encontrados e resgatados 24 trabalhadores venezuelanos escravos (ou, como se costuma dizer hoje, em condições análogas à escravidão), atuando em atividades de construção de alojamento e de galpões, no município catarinense de Rio do Sul, no centro do estado, a 188 quilômetros de Florianópolis.
Os venezuelanos tinham sido oficialmente interiorizados no Brasil pela Operação Acolhida, do governo federal, durante a gestão de Jair Bolsonaro. Quer dizer: empresários que atuam em Santa Catarina haviam se inscrito no programa do governo e levado os trabalhadores de Itapiranga, no extremo oeste do estado, fronteira com a Argentina, para Rio do Sul.
Ao MPT e à Defensoria, os venezuelanos informaram que foram atraídos para o novo emprego com promessa de salário de até R$ 3.000 por mês, com moradia e alimentação fornecidas pela empresa. O anúncio, segundo eles, foi publicado em rede social em uma página direcionada exclusivamente para venezuelanos refugiados no Brasil.
Então, venderam os poucos bens pessoais que tinham, como televisão, cama, guarda-roupa, geladeira, fogão e, eventualmente, sofá, e aceitaram o emprego no Alto Vale do Itajaí, aonde chegaram com transporte contratado pelo empregador.
Já de cara não puderam deixar de notar que realidade é uma coisa e a propaganda é outra. Passaram os primeiros dias em quartinhos coletivos improvisados, enquanto construíam seus próprios quartos e instalações. A propaganda não dizia, mas a empresa fornecia, sim, moradia, mas só depois que os próprios trabalhadores as contruíssem.
Nos cômodos improvisados como quartos, sem camas e banheiro, os trabalhadores foram instalados enquanto construíam os alojamentos subdimensionados, com apenas um quarto e duas camas para cada família, feitos com paredes de madeira, chão de concreto e telhado de zinco. Se soubessem que seria assim, não teriam vendido a troco de quase nada todos os seus parcos bens, já que descobriram que também não tinha cozinha, não tinha fogão e não tinha geladeira.
Seis banheiros mal funcionavam para o uso coletivo, de acordo com relatório da força-tarefa federal que desbaratou a senzala.
Um tambor tinha sido improvisado para armazenar água utilizada para banho, descarga nos banheiros, higiene pessoal, preparo de alimentos, para lavar louças e roupas. A comida era feita em um fogareiro construído pelo grupo. A fiação elétrica era precária, gerando alto risco de incêndio. Tudo isso foi periciado e consta em relatório da força-tarefa federal.
A empresa CNMS Brasil Comércio de Madeiras Ltda. é a empresa contratante. Instalada no mesmo terreno onde os venezuelanos foram resgatados, sofreu a interdição dos maquinários que funcionavam sem as medidas de segurança de operação determinada pela legislação brasileira. De acordo com o MPT, também não havia alvará de funcionamento e nem habite-se do Borpo de Bombeiros, “além dos galpões apresentarem péssimas condições com ameaça de desabamento”, conforme aponta o relatório.
Comida misturada com agrotóxico
Não foi o primeiro e certamente não será o último resgate de trabalhadores escravos em Santa Catarina neste ano. Só até o dia 26 deste mês, operações federais já livraram da escravidão mais da metade do número de trabalhadores escravos resgatados no ano passado inteiro no estado, segundo informa o MPT.
Entre os dias 7 e 14 de janeiro, uma força-tarefa do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, operado por MPT, DPU, Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT) e PRF, encontrou 20 trabalhadores em situação de escravidão em propriedades de cultivo de cebola no município de Bom Retiro, na região serrana de Santa Catarina, de colonização alemã e italiana, a 120 quilômetros da capital.
Na notícia de fato registrada no MPT, o grupo contou que chegou ao estado em setembro do ano passado para fazer a poda seca em um pomar de maçã, no município de São Joaquim. Pagaram R$ 700,00 pelo transporte em um ônibus clandestino vindo de Centro Novo, no Maranhão, com a promessa de ganhar mensalmente R$ 1.400 líquidos, livre das despesas com moradia e alimentação.
Passados dois meses, foram dispensados sem ganhar nada além do pouco que comeram pelos serviços prestados, e deixados na rodoviária do município, onde receberam do mesmo aliciador que os trouxe do Maranhão uma nova proposta de trabalho.
Logo em seguida, foram levados de táxi até uma propriedade em Bom Retino, por ordem de Carlos Donizete de Jesus, dono das terras, conhecido como “Pina”, empresário agrícola cuja empresa tem sede na rua Gentil Vieira Borges, no bairro de Capistrano, em Bom Retiro.
Ali, foram mais dois meses de atividade irregular, pela qual receberam R$ 2 por saco de cebola colhido, com jornada das 6h às 18h30. A alimentação oferecida era um pão com mortadela no café da manhã e purê de batata com arroz ao meio dia. Não tinham carteira assinada, não receberam EPI (Equipamentos de Proteção Individual).
No primeiro alojamento, a equipe federal encontrou 17 trabalhadores, a maioria nordestinos, que trabalhavam “para o senhor Pina” há 4 dias, sem quaisquer registros. Receberiam R$ 2 por cada saco de cebolas de 30 quilos colhido, R$ 3 por saco de 40kg e R$ 4 por saco de 50kg.
O alojamento, uma casa de alvenaria em péssimo estado, possuía apenas um banheiro, para todos os 17. A água encanada vinha de um poço e tinha gosto ruim, sempre de acordo com informações do MPT.
Não tinha cama para todos os escravos, alguns dormiam no chão mesmo.
Dois homens encontrados dentro de um um ônibus utilizado pelo patrão para transportar os trabalhadores até as lavouras contaram que estavam alojados em um outro local com mais sete pessoas. Chegando na propriedade, a equipe encontrou um segundo alojamento.
Era uma casa “meia água”, onde existe apenas uma estrutura de cobertura com telhado, e não duas, como normalmente se constrõem as edículas. Era toda de madeira e com frestas, construída no meio de eucaliptos, com cobertura de telhas de fibrocimento. Não havia água corrente, nem instalação sanitária. A água disponibilizada vinha de um poço e era utilizada pelos trabalhadores tanto para beber quanto para cozinhar.
Da mesma forma, os obreiros também usavam a água para higienização do corpo, das mãos, de roupas e utensílios de cozinha. A água era transportada do poço até o alojamento em um galão de 20 litros. O banho era tomado e as necessidades fisiológicas feitas no mato, inclusive à noite, sem qualquer conforto, segurança ou privacidade.
Dormiam em triliches, sem armários individuais para a guarda de objetos pessoais, local adequado para higienização das roupas e utensílios de cozinha. As batatas que comiam eram armazenadas junto aos agrotóxicos utilizados na plantação da cebola.
Diante de todas as irregularidades apuradas, o empresário Carlos Donizete de Jesus, o seu Pina, notificado em 2021 pelas mesmas infrações, foi preso em flagrante. No entanto, foi solto no dia seguinte depois de pagar fiança. Responderá em liberdade pelo crime previsto no Artigo 149 do Código Penal, de escravizar trabalhadores, com pena de até oito anos de cadeia.
De acordo com Ministério Público do Trabalho, assim como o senhor Pina, 100% dos proprietários encontrados escravizando pessoas em 2022 em Santa Catarina eram brancos.
Em relação ao perfil social das pessoas resgatadas, dados do seguro-desemprego dos trabalhadores mostram que 83% eram homens; 33% tinham entre 18 a 24 anos; 68% residiam na região Nordeste quando foram recrutados; 77% eram naturais da região Nordeste e 89% se autodeclararam negros, pardos, amarelos ou indígenas.
Tradição é tradição.