Como a corrupção no Incra levou à expulsão de um pequeno agricultor de sua terra

Atualizado em 13 de janeiro de 2020 às 20:37
Incra

Da Agência Pública.

ESPECIAL: AMAZÔNIA SEM LEI
Um dos conflitos agrários mais tensos de Rondônia envolve 31 mil hectares de terras da União na zona rural de Candeias do Jamari e foi gestado, segundo as autoridades consultadas pela Agência Pública, com a ajuda do Incra, o órgão agrário que deveria democratizar o acesso à terra no país e mediar os conflitos no campo.

“É um local muito complicado. Para evitar o conflito, o Incra falou [para os fazendeiros que adquiriram as terras da União]: ‘Vocês ficam aí por enquanto, e a gente decide se vocês vão ter direito a essas terras depois’. E nesse meio-tempo criou o assentamento”, diz o procurador regional dos direitos dos cidadãos em Rondônia, Raphael Bevilaqua.

O projeto de assentamento (PA) em questão é o Flor do Amazonas, criado há mais de dez anos pelo órgão agrário. Nessa terra pública, segundo o procurador, funcionários do Incra participaram diretamente da privatização ilegal ao forjar documentos para a venda das terras. “A mais famosa é praticada por um servidor que dá declaração de posse para as pessoas, um documento que não existe oficialmente”, diz.

Bevilaqua se refere ao servidor Eustáquio Chaves Godinho, que ingressou no funcionalismo público como técnico agrícola em 1973. Em dezembro de 2005, agentes da Polícia Federal de Brasília prenderam Eustáquio na operação Terras Limpas — ele foi acusado de participar de uma quadrilha que transferiu cerca de 1 milhão de hectares de terras do Estado a partir da emissão de documentos falsos.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre as terras supostamente vendidas por Eustáquio e por um ex-superintendente do Incra, estão áreas do Flor do Amazonas.

Apesar das acusações, Eustáquio foi inocentado em 2012, quando a Justiça acatou o argumento de que as interceptações telefônicas utilizadas como prova seriam ilegais. Readmitido no Incra em 2012, o servidor ocupou até novembro deste ano o cargo de chefe da divisão de Ordenamento da Estrutura Fundiária.

A história, citada como “exemplo emblemático” no relatório final da CPI da Grilagem, de 2001, registra que o Incra contribuiu “para dificultar a destinação das terras para assentamento de pequenos e médios agricultores”, caso do agricultor Amado Pedro da Silva, 68 anos, que recebeu nossa reportagem em novembro passado, em seu lote de 70 hectares no Flor do Amazonas.

“Sou amado por todos, menos pela Masutti”

De chapéu de palha, jeans, facão na cintura e um smartphone aberto na função de vídeo, Amado registra um trator arando seu lote, que ele mostrava à reportagem.

O veículo é do maior grupo sojicultor da região, a Masutti, que disputava com ele aquele pedaço de chão — num imbróglio fundiário que remonta à década de 1970. À época, a terra foi alienada pelo governo militar para a Agropecuária Industrial e Colonizadora Rio Candeias (Agrinco Candeias Ltda.), no que se tornou a fazenda Urupá.

A alienação das terras era estimulada pelo governo para a colonização da Amazônia, mas a Urupá não cumpriu obrigações previstas em contrato e a terra foi retomada na Justiça pelo Incra 34 anos depois. O problema, explica Josep Iborra Plans, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), é que a Agrinco Candeias loteou e vendeu as terras para outros fazendeiros ilegalmente durante o período.

No Cadastro Ambiental Rural (CAR), o lote de Amado encontra-se sobreposto a outra inscrição, de 623 hectares, em nome de Antônio Aparecido da Silva, conhecido como Toninho da Câmara, que alega ter comprado 1.400 hectares da fazenda Urupá, em 1987 e vendido aos Masutti em abril deste ano.

Seu Amado conta que chegou ao PA em 2008 e foi cadastrado pelo Incra para ser assentado no Flor do Amazonas IV (a região do PA é dividida em quatro módulos). Devido à lentidão, Amado se mudou em 2009 para o atual endereço — o lote 105 do Flor do Amazonas II.

À reportagem, Amado mostrou, além da certidão assinada pelo então superintendente regional do Incra/RO Luiz Flávio Carvalho Ribeiro, na qual consta seu registro no Sistema de Informação de Projeto de Reforma Agrária (Sipra) como acampado do Flor do Amazonas, os documentos da própria inscrição como candidato ao Programa Nacional da Reforma Agrária.

Mas, de acordo com a ouvidora-geral da Defensoria Pública de Rondônia, Valdirene Oliveira, a falta de documentos de Amado sobre a terra tornou a situação juridicamente difícil. Ela se refere à certidão de beneficiário da reforma agrária, documento que nunca foi dado a Amado, uma vez que o Incra ainda não deu seguimento ao processo de assentamento. Já a Masutti, possui os documentos de aquisição e propriedade das terras.

Contatado pela reportagem, Marco Lima, responsável pela gestão ambiental da Masutti, afirmou que pelo conhecimento da empresa toda a área do Flor do Amazonas II, na verdade, pertencia a Toninho da Câmara. “A gente comprou uns 700 hectares de terras dele. O seu Amado invadiu, assim como outros.”

Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em abril de 2019 funcionários da Masutti compareceram nas casas de outros agricultores do lote 105 do Flor do Amazonas, acompanhados de pistoleiros conhecidos na região e propondo comprar as terras.

Na ocasião, de acordo com Amado, foi deixado um cartão de visitas do analista de compras da Masutti, Fábio Morawski. Contatado por telefone pela reportagem, Morawski, em uma primeira ligação, confirmou que esteve no Flor do Amazonas propondo comprar as terras dos posseiros — questionado novamente, afirmou que nunca esteve na região.

Segundo a agente da CPT Ana Maria Delazeri, as empresas de soja têm entrado no Flor do Amazonas também por meio de ameaças e encurralamento dos pequenos agricultores. “Eles ficam com medo de perder a vida e acabam deixando a terra, assim os sojeiros tomam conta. O latifúndio consegue as declarações, os comprovantes dos órgãos competentes com mais facilidade do que os pequenos agricultores”, diz Delazeri.

Ela destaca que a área do Flor do Amazonas é visada pelas empresas de soja por se tratar de uma terra plana e bastante produtiva, com fácil acesso, por ser próxima à capital do estado e, consequentemente, ao rio Madeira, por onde o grão é escoado.

Amado conta que sofria pressões da Masutti anteriormente e de Toninho da Câmara. O agricultor mostrou à reportagem um vídeo de uma abordagem policial na qual o agente, acompanhado de funcionários da Masutti, o questionam sobre sua permanência na terra.

“Falaram que eu não tinha direito de descer para parte de baixo do lote. Eu falei que tô aqui há dez anos e cinco meses, todo arrebentado de trabalhar e conheço meu direito. É covardia deles mexerem com um velhinho da minha idade”, completou, em frente à sua casa de madeira.

Além da visita policial, Amado denuncia que, desde que a Masutti entrou no Flor do Amazonas, foi abordado por quatro pistoleiros armados, um deles se apresentando apenas como “Chicão”. “Disseram que, se eu passasse daquele arame para baixo, eu podia me transformar no retrato da mãe deles, que eles metiam bala mesmo assim”, afirmou.

No mês seguinte à visita da reportagem, a persistência de Amado foi vencida. “O seu Amado estava sendo sufocado ali porque já prepararam o terreno para plantar, o uso de agrotóxicos já estava comprometendo sua saúde. Ele ficou bastante abatido e quis desistir”, explicou a ouvidora da Defensoria Pública. Valdirene afirma que a filha de Amado, preocupada com a vida do pai, o incentivou a aceitar um acordo de R$ 250 mil oferecido pela Masutti na Justiça. “Não queriam que ele permanecesse na área em função do risco de vida, já que há algumas ameaças.”

Juca Masutti é filho de ex-prefeitos de municípios do Mato Grosso; sua mãe, Claídes Lazaretti Masutti (MDB), teve o mandato cassado por abuso de poder econômico nas eleições municipais de 2008. O próprio Juca chegou a ser cotado na imprensa regional como um possível candidato ao governo de Rondônia, devido à sua grande influência no estado, mas desistiu na última hora para apoiar o atual governador, Coronel Marcos Rocha (PSL). Além de plantar soja e milho em 60 mil hectares de terras rondonienses, o empresário é presidente regional da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja).

A única renda e fonte de subsistência de Amado vinha de sua produção de alimentos como mandioca, abacaxi, batata-doce, caju, manga e banana. “Eu não consigo sobreviver na cidade. Minha saúde vem da natureza, se eu sair daqui, vou morrer rápido”, disse o agricultor antes do acordo.

No dia 9 de dezembro de 2019, pouco mais de um mês após receber a Pública, Amado voltou a falar com a repórter por telefone. Ele conta que adoeceu desde o acordo com a Masutti. “Eu perdi uns 5 quilos, minha pressão chegou a 18 por 8. Foi muita emoção. Mas tava todo mundo me falando que a vida vale mais que a terra”, contou, com a voz embargada. O agricultor cogita mudar de estado, para uma gleba em Cuiabá, onde vive sua irmã.

A inusitada visita ao Incra de Rondônia
Para parte dos camponeses ouvidos pela reportagem, bem como para a Procuradoria da República em Rondônia (MPF-RO) e a Defensoria Pública de Porto Velho, a origem dos conflitos que atingem camponeses como Amado reside na negligência e corrupção no próprio Incra.

Em busca de informações sobre a situação do PA Flor do Amazonas, a Pública agendou uma entrevista com o superintendente regional de Rondônia, Erasmo Tenório Silva, na sede do órgão em Porto Velho.

Mas o que deveria ser uma entrevista com o superintendente se transformou numa reunião com vários servidores — entre eles, Eustáquio Chaves Godinho, citado no início da reportagem.

Ao falar, o superintendente regional disse não existirem conflitos no Flor do Amazonas. Para ele, a área do pequeno agricultor Amado não é particular para “vir um investimento desse aí [Masutti]”, e declarou que o Incra deveria apenas aguardar o “desenrolar do processo”.

Já Eustáquio afirmou que a Masutti, Toninho da Câmara e todos os demais fazendeiros que hoje colecionam hectares dentro do Flor do Amazonas adquiriram as terras da União “de boa-fé”. “A força era muito pacífica, agora que essas terras estão sendo invadidas para explorar as áreas produtivas”, opinou sobre os sem-terra que acampam no Flor do Amazonas à espera do assentamento.

Em determinado momento, o funcionário público afirmou que eles, os sem-terra, eram os responsáveis por “desflorestar a mata”. “O que mais tem é isso aqui, invasões, literalmente invasões. Eles entram e desmatam a floresta”, disse, sem mostrar provas para sua afirmação.

Outro funcionário, o técnico de contabilidade Waldomiro Barros, interveio após a declaração. Disse que Eustáquio não estava “afirmando” tais acusações sobre os sem-terra, e sim “comentando”. Questionado, Eustáquio disse ainda que sua prisão e seu afastamento foram consequência de perseguição política.

Eustáquio falou também sobre a assinatura de outro documento inexistente para privilegiar uma ação de reintegração de posse por outra fazendeira, Marselha Rita Serrate Araújo, que entrou com a ação contra cerca de 80 famílias sem-terra organizadas em um acampamento nomeado como Boa Sorte, também no PA Flor do Amazonas.

No documento assinado por Eustáquio, ele afirma: “pretensos invasores apoderaram-se do aceiro interno dos limites das propriedades e ali instalaram minguados barracos com cunho basicamente especulativo, sobrepondo áreas de pastagens já consolidadas conforme observado nas imagens de satélite”. Em sua decisão ele escreveu: “não há interesse do Incra sobre as áreas em questão”.

A afirmação sobre o interesse ou não do órgão pelas terras, de acordo com o MPF, não estaria sequer na competência de Eustáquio, cabendo a análise apenas ao superintendente regional do Incra, na ocasião Erasmo Tenório da Silva.

Mesmo tendo seu documento lido na íntegra pela reportagem, Eustáquio negou que tenha se posicionado sobre o interesse nas terras da União e disse que, na verdade, havia sido mal compreendido, pois havia escrito apenas que o Incra não tinha interesse em se manifestar sobre o processo.

A entrevista foi encerrada após Waldomiro e o superintendente Erasmo terem reclamado de um suposto enviesamento da reportagem em benefício dos pequenos agricultores.

Três dias após a entrevista, Eustáquio, Erasmo e Waldomiro foram dispensados de seus cargos no órgão, conforme publicado no Diário Oficial da União. De acordo com a assessoria de imprensa do Incra nacional, a Corregedoria-Geral do Incra (CGE/Incra) “afastou cautelarmente” os funcionários de suas funções por meio de uma medida administrativa cautelar, e tal medida visa “resguardar apurações disciplinares em curso na Regional”. Questionada sobre a relação entre as denúncias de corrupção envolvendo os funcionários, a recomendação do MPF e o afastamento, a Corregedoria respondeu, apenas, que o processo é sigiloso.

Apesar do afastamento dos funcionários, o Incra segue sem se pronunciar sobre a expulsão de beneficiários da reforma agrária do PA Flor do Amazonas.