De 2019 para cá, a embaixada brasileira na França entrou em decadência. No dia 19 de junho daquele ano, 12 votos da Comissão de Relações Exteriores do Senado foram suficientes para confirmar Luís Fernando de Andrade Serra embaixador e transformar a representação em Paris numa sucursal do gabinete do ódio.
Na sabatina, de frente para os senadores, ele falava com ares de admiração do general francês Charles De Gaulle, chamando-o de “mito fundador”. Ironia da história, De Gaulle foi quem convocou a populaçao francesa a combater o ocupante nazista, cuja simbologia é recorrente no governo Bolsonaro.
Na mesma sabatina, chamou de “muito civilizada” a coabitação entre o presidente socialista François Mitterrand e o primeiro-ministro gaullista Edouard Balladur, nos anos 1990. Mas já enquanto embaixador resolveu faltar quando soube que a prefeita socialista Anne Hidalgo participaria da inauguração do jardim Marielle Franco em Paris.
Quando penso em Paulo César de Oliveira Campos, o embaixador anterior, que entrevistei em 2018, fica clara a mudança brutal de paradigma da embaixada.
Ainda que sob o governo Temer, Campos estava presente na plateia do debate realizado com o ex-ministro Tarso Genro na Maison de l’Amérique Latine. Assistiu cordial e silenciosamente ao petista do início ao fim, sem escandalizar, ao contrário do que rege a norma atual.
Sabendo se tratar de um veículo de oposição, aceitou dialogar. Quando lhe perguntei sobre o golpe, não revidou negando o uso do termo. Só disse que não criticaria Temer.
Ao longo da nossa conversa, insistiu em dissociar sua função da vida política interna do Brasil. “O Itamaraty está acima da política brasileira”, pensava.
Hoje, está abaixo. Seu sucessor choca a cada vez que fala, como se tivesse esquecido o sentido da palavra diplomacia que mais de 40 anos de carreira deveriam ter-lhe ensinado.
No ano passado, quando a senadora francesa Laurence Cohen pediu esclarecimentos soebre a morte de Marielle Franco, De Andrade Serra se disse “consternado” pela questão, que se negou a responder, como passaria a fazer a partir de então sempre que os franceses lhe questionassem sobre as barbaridades de seu país.
“É com profunda consternação que eu constato que o assassinato do Sr. [Celso] Daniel e o atentado contra a vida do Sr. Bolsonaro não tiveram a mesma atenção que o assassinato de Marielle Franco e do Sr. [Anderson] Gomes, que teve mobilização até da Assembleia Nacional”, disse o embaixador, por meio de uma carta.
Luís Fernando inverteu os papéis e pediu explicações da senadora francesa. “Eu lhe seria muito grato se a senhora me explicasse as razões desse silêncio”. A resposta provocou a indignação da senadora.
Na visão do embaixador, reivindicar a elucidação do caso Marielle Franco faz parte de um complô contra o governo Bolsonaro. Por quê?
Para ele, a imprensa francesa faz parte dessa conspiração.
“O seu país está sendo sancionado?”, perguntou-lhe na última semana o jornalista Maxime Switek, no canal BFMTV, em referência à decisão do governo francês de suspender os voos do Brasil.
Com olhos arregalados, ele se volta contra o jornalista e desvia do assunto: “Se você tem pessoalmente essa ideia de que há uma sanção, eu lhe digo uma coisa: a economia do Brasil não depende do turismo. Só há seis milhões e quinhentos mil estrangeiros que visitam o Brasil, enquanto na França vocês recebem 95 milhões de estrangeiros. Então, a dependência do turismo não é enorme no Brasil”.
“A pandemia provoca estragos no seu país e temos, vendo daqui, a sensação de que seu presidente faz muito pouco”, esclarece o jornalista.
“Você acha que o presidente brasileiro faz muito pouco? O Brasil é o quarto, quinto país que mais vacinou no mundo”, diz o embaixador, evidenciando que nem mesmo ele está seguro.
“O presidente vacinou 30 milhões de brasileiros. Nós somos o quinto país que mais vacinou depois dos Estados Unidos, China, Índia e o Reino Unido. Você não acha que é um bom resultado?”, pergunta, ocultando que proporcionalmente ao número de habitantes o Brasil (11%) está muito atrás de países como o Reino Unido, que vacinou 48% de sua população.
Maxime tenta responder e é interrompido pelo embaixador, que age como se o jornalista é quem o estivesse interrompendo.
“Deixa eu terminar! Se os hospitais estão cheios é por causa dos 24 anos da esquerda, que não construiu hospitais o suficiente”, afirma.
Switek provavelmente não sabe que o embaixador acabara de inventar 11 anos adicionais de governo da esquerda, mesmo assim consegue desestabilizá-lo: “Não é por que seu presidente se recusou a confinar?”
Pausa, suspiro e sorriso amarelo do embaixador. “Não”. E mais uma mentira. “O país está confinado porque a Suprema Corte decidiu que o presidente não tinha o poder de confinar, desconfinar e reconfinar. O poder de reconfinar, desconfinar ou confinar, a Suprema Corte deu aos governadores. O presidente não teve o poder de reconfinar, desconfinar ou confinar”.
Além de criar um efeito de confusão pelo jogo de palavras, Luís Fernando de Andrade Serra inverte a realidade, ocultando do jornalista que Bolsonaro não só criticou abertamente as medidas de confinamento, como também entrou com recurso no STF para tentar derrubá-las.
Um embaixador que sempre provoca a consternação dos jornalistas. Para ele, tudo se resume a um complô contra Bolsonaro porque a imprensa francesa quer beneficiar Lula.
No ano passado, ele negou a gravidade dos incêndios na Amazônia, afirmando em entrevista à TV France 24 que a situação estava controlada: “Sob controle. O exército brasileiro está lá, com muitos meios, para apagar o fogo. Em 2004 e 2005, os incêndios foram piores e ninguém disse nada. Você sabe por quê? Porque Lula era o queridinho da imprensa”.
Estupefata, a jornalista pergunta: “o senhor está dizendo que estamos falando desses incêndios unicamente por causa de Jair Bolsonaro?”
“Claro”, afirma ele.
“Então não há incêndios de origem criminosa, trata-se apenas da seca?”, pergunta ela.
“Claro. Não há incêndios de origem criminosa. E se há, são na mesma quantidade que em 2004 e 2005”. Uma reportagem da BBC mostra que do início de 2019 até aquele momento 6.985 multas haviam sido aplicadas por crime contra a flora.
“A imprensa não é justa com o meu presidente”, lamenta Serra na entrevista, repetindo quatro vezes que em 2004 foi pior, sem dizer que o desmatamento seria reduzido em 83% pelos governos Lula e Dilma daquele momento até o ano de 2012.
O sectarismo do embaixador também se observa nos bastidores. Depois de outro debate televisivo sobre os incêndios na Amazônia, ele constrangeu uma das convidadas que questionou a sua “versão dos fatos”.
“Ele afirmou que as pessoas como eu, de esquerda, não aceitavam ter perdido as eleições. Ele afirmou que eles vieram para ficar”, conta Erika Campelo, presidente da ONG francesa Autres Brésils.
“Não é uma postura de um servidor público que representa todos os brasileiros. É a postura de alguém que está fazendo política para um partido”, afirma.
Para um governo que se diz vítima de perseguição midiática internacional, De Andrade Serra tem muita visibilidade. Há três meses, quando Manaus enfrentava uma penúria de oxigênio, ele era entrevistado pela TV5 Monde.
Após uma reportagem em que mulheres pobres do Rio de Janeiro qualificam de “desumana” a política de Bolsonaro, Serra afirmou que “ninguém fez mais do que Jair Bolsonaro”.
Na França, brasileiros esperaram semanas com fome até que a embaixada respondesse ao seu pedido de ajuda, depois de recorrerem à imprensa.
Questionado se o Brasil estava falido, o embaixador resolveu desmentir o presidente pela primeira vez. “Foi a força de expressão. O Brasil não está falido”.
Mas a verdade sob a embaixada atual dura pouco. “Nunca escondemos que a máscara ajuda a reduzir a circulação do vírus. Não há no Brasil essa crise que se diz. Os hospitais não estão saturados”.
Seu presidente nunca parou de frequentar aglomerações sem máscara. Segundo levantamento do jornal O Globo, 28 mil pessoas morreram neste início de ano em todo o país à espera de uma vaga na UTI.
“Em Manaus, há um problema extremamente localizado de corrupção. Roubaram os ventiladores e respiradores, é um caso de corrupção do governo do estado do Amazonas”, disse o embaixador.
Luís Fernando de Andrade Serra talvez ficará na história da diplomacia brasileira como um estudo de caso, o primeiro em que um embaixador trabalha para desqualificar a imagem do próprio país.