O que parecia inimaginável aconteceu. Um partido de skinheads que faziam saudações nazistas nos anos 1980 terminou as últimas eleições suecas em segundo lugar, com 20% dos votos. Fratelli d’Italia, sucessor do pós-fascista Movimento Social Italiano, é o favorito das eleições do próximo domingo. Ainda que tais partidos provoquem controvérsia em seus países, como a conquista do poder tornou-se possível? Existem paralelos com o bolsonarismo?
Ideologia
Tanto o SD, sigla para Democratas Suecos, quanto o FDI, Fratelli d’Itália (Irmãos da Itália), têm nas suas origens ligações com a ideologia e movimentos nazifascistas.
Em artigo publicado na revista espanhola “Ecología Política”, os pesquisadores Martin Hultman e Pablo Cubillo Cortés analisam a ascensão do partido de extrema SD. Os autores classificam a ideologia do partido como nacionalista, social-conservadora e com “raízes no nazismo”.
É o que se manifesta em sua visão do aquecimento global. A análise de Hultman e Cortés explica que o que importa nesse campo para o SD é a proteção das paisagens suecas e a saúde destes e seus animais, “muito em consonância com suas raízes na ideologia nazista”.
Quanto ao aquecimento global e a responsabilidade humana, os pesquisadores classificam o SD como um partido negacionista, que vê no ambientalismo uma ameaça para os privilégios da “supremacia masculina”. A análise indica um discurso conspiratório em que o SD associa o Partido Verde a um “pesadelo comunista”, alimentado por uma elite e o favoritismo da mídia.
A preservação do meio ambiente e a luta contra o aquecimento global são vistas pelo movimento de extrema direita como uma tentativa das elites para impor uma economia socialista planificada à toda a humanidade, ou seja, “uma ideia totalitária de dominação mundial”, explicam Hultman e Cortés. Nesse combate entre elites e massas, o SD se apresenta como defensor das últimas.
Convencer como verdadeiro defensor das massas é um desafio particular na Suécia, onde só a confederação sindical LO, em estreita relação com o partido social-democrata, conta com mais de um milhão de filiados, quase 10% da população.
Johan Sjölander, diretor do think tank sueco Tankesmedjan Tiden, mostra que outro aspecto ideológico do partido vai justamente na tentativa de enfraquecer o movimento social, em particular o LO.
“O SD privilegia na aparência o modelo social sueco e se mostra como o grande protetor dos parceiros sociais independentes. Mas na realidade, ele se mostra cético em relação aos sindicatos e se opõe categoricamente ao LO (Landsorganisationen i Sverige), a confederação dos principais sindicatos operários suecos”, analisa em um estudo publicado pela Fondation Jean-Jaurès, um think tank francês.
Como exemplo da ofensiva, o analista lembra que o SD, que entrou no parlamento da Suécia em 2010, votou junto com os partidos conservadores para suprimir as deduções fiscais das quotizações sindicais.
Quanto aos Fratelli d’Italia, seu lema é “Deus, pátria, família”. Prioridade para os italianos. “Eles se apresentam como os representantes do povo, da nação. Eles buscam o Estado de bem-estar social, mas apenas para cidadãos nacionais”, analisa o cientista político Tommaso Vitale ao DCM.
Nas questões de gênero e sexualidade, o partido equivale a seu homólogo de extrema direita, La Lega (A Liga).
“Sobre o casamento para todos e o direito à adoção por homossexuais, as posições de FDI são tão categóricas quanto da Liga: não é uma questão de homofobia, mas é… Idem sobre o aborto, com um discurso tão ambíguo quanto: nada de abolir a lei adotada em 1978, mas é preciso explicar às mulheres como elas devem se comportar”, diz Ariel Dumont, em artigo do correspondente na Itália para a revista francesa Marianne.
Ideias que não têm grande dificuldade para ecoar na Itália, onde, como explica Vitale, o fascismo nunca deixou de ter a adesão de uma parte significativa da sociedade.
“A Itália tem uma história considerável com a extrema direita e com o neofascismo. Depois da transição para a democracia, a república e o final da Segunda Guerra Mundial, o Movimento Social Italiano era muito forte. Ele permanece ligado a parte do exército e extremamente bem conectado em nível europeu a movimentos fascistas por volta dos anos 1960”, contextualiza Tommaso Vitale.
“Eles estavam na linha de frente do terrorismo de extrema direita nos anos 1970. Eles mudaram para um partido neoliberal durante os anos 1990. Na Itália, há constantemente cerca de 20% da população que está pronta para ir para a extrema direita. Há um grande número de pessoas que não têm problema com o legado do fascismo”, analisa o professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, Sciences Po.
Estratégias
Os Democratas Suecos e os Fratelli d’Italia têm em comum como estratégia a “desdiabolização”, ou seja, a tentativa de mascarar sua identidade histórica e moralmente repugnante para apresentar-se como partidos convencionais. A líder do segundo passou boa parte do tempo se esquivando das acusações de nostalgia do seu partido pela ditadura fascista. Giorgia Meloni argumenta que aquilo ficou no passado.
O SD se diz um partido “conservador”, “nem de direita, nem de esquerda”. “Ele rejeita a luta de classe, mas prega direitos sociais fortes, sobretudo em favor dos trabalhadores e aposentados nascidos na Suécia”, diz o estudo de Johan Sjölander.
Tanto o SD quanto o FDI buscaram aproximar-se do mundo dos negócios nos últimos anos, o que os levou a posições favoráveis às privatizações.
Na Suécia, Sjölander indica em seu artigo a tentativa do SD de destruir a dominação da ideologia social-democrata da central sindical LO, “seja trabalhando dentro dos sindicatos suecos, seja criando sua própria organização paralela. Mas nenhuma dessas estratégias funcionou até o presente. Os sindicatos expulsaram membros afiliados ao SD, enquanto a tentativa de criar um sindicato alternativo foi um fracasso total, com o partido só conseguindo recrutar cerca de 200 aderentes. Mas sua influência permanece uma questão”, relata.
Na Itália, além de defender-se das acusações de nostalgia do fascismo, os FDI sob a liderança de Giorgia Meloni também optaram por remodelar sua identidade passando a apresentar-se como um partido apenas “conservador”.
Para diferenciar-se da Liga e ganhar legitimidade, os Irmãos da Itália fizeram o que pesquisador Lorenzo Castellani chama de “oposição leve” ao então governo de Mario Draghi.
“A história é o fato de que esse tipo de partido político de extrema direita, Irmãos da Itália, foi capaz de atingir posições muito importantes no governo regional no centro da Itália. Eles são muito fortes no centro e no Sul. No norte, foram capazes de atrair todo o eleitorado mais mobilizado pela Liga do Norte”, avalia Tommaso Vitale.
O pesquisador descreve a penetração do movimento em todos os níveis do país. “Não é apenas o fato de haver uma extrema direita forte na Itália. Nos últimos 7 anos, esse partido foi capaz de se estruturar em verdadeiras federações de partidos políticos poderosos localmente. Sempre estiveram presentes nos últimos 7 ou 8 anos na coalizaçao de direita com Salvini e Berlusconi”.
Giorgia Meloni foi ministra de Silvio Berlusconi, mas durante o governo Draghi se recusou a fazer parte da coalizão nacional, diferenciando-se da Liga. “Eles decidiram ficar de fora do governo de união nacional conduzido por Mario Draghi. Ao ficar de fora, puderam apontar os problemas da política quotidiana, sendo muito populistas e representando uma oposição. Eles não tinham nenhuma responsabilidade por governar a pandemia. Eles se aproveitaram da situação perfeita”, afirma Vitale.
Durante esse tempo, também diferenciou-se da Liga, votando a favor do envio de armas à Ucrânia.
“Tudo acontece como se Fratelli d’Italia tentassem dizer ao mundo exterior: somos atlantistas e pró-ocidentais, ao mesmo tempo em que nos opomos à centralização europeia, à superação das fronteiras e tradição, e à diluição da identidade nacional”, diz Lorenzo Castellani em artigo publicado na revista Le Grand Continent.
“É nessa tentativa de andar entre o establishment e o anti-establishment, entre europeismo pragmático e o euroceticismo, que se decide o futuro governamental dos Fratelli d’Italia, tanto em termos de legitimidade no exterior quanto em termos programáticos”.
Propostas
Ainda que sejam comparados nesse artigo, os FDI têm uma diferença fundamental em relação ao SD. Se vencerem as eleições do próximo 25 de setembro, deverão ser o partido dominante da coalizão a governar o país, já que provavelmente não terão maioria suficiente para governar sozinhos. O SD deve governar com a maioria de direita, mas a coalizao tende segundo analistas a ser liderada pela direita considerada como moderada.
Como os Fratelli d’Italia deverão ter o apoio da Liga, ideologicamente equivalente, são suas propostas que têm mais chances de prosperar: fechar portos para impedir navios de ONGs de desembarcar migrantes resgatados no mar Mediterrâneo e expulsar clandestinos.
Na economia, uma de suas propostas é abolir o auxílio introduzido pelo governo anterior para a população mais pobre, demonstrando os limites de sua suposta proteção do Estado de bem-estar social para os italianos.
Eleitorado e motivações
Diversas análises e pesquisas convergem em relação ao perfil do eleitorado sensível aos partidos SD e FDI, homens, operários e empresariado.
O estudo de Johan Sjölander aponta 2015 como o momento de inflexão: o eleitorado jovem revoltado dá lugar a homens de média idade, “pais de família”. Foi quando a Suécia acolheu mais de 160 mil refugiados.
“A questão migratória explica em grande parte a mudança de orientação de diversos membros da LO”, explica o estudo de Sjölander.
Uma fragilidade masculina também perceptível na adesão ao negacionismo climático. “O grupo de opinião refletido nesses discursos é formado por homens da classe trabalhadora e também das classes dominantes”, observa a pesquisa de Cortés e Hultman.
“Esse comportamento também pode ser entendido em termos de masculinidade relacionada com o mundo industrial e as identidades masculinas que situam o homem como sustento e base da família”.
Cortés e Hultman apontam a formação de uma convergência entre o nacionalismo de extrema direita e o negacionismo climático no eleitorado SD: “semelhanças ideológicas na maneira de contemplar o mundo própria desses modelos masculinos, que se negam a deixar para trás a lógica extrativista colonial que tanto lhes serviu, mas que espoliou o planeta”.
Na Itália, a reportagem de Ariel Dumont aponta que os Fratelli d’Italia capturaram um eleitorado insatisfeito com a Liga e o Movimento Cinco Estrelas. Este último, originado numa lógica de contestação dos partidos, “do establishment”. Depois, progressivamente, parte do eleitorado da direita tradicional.
“Segundo uma pesquisa publicada no mês de abril pelo instituto Ipsos, o eleitorado de Fratelli d’Italia é composto em grande parte por operários e pequenos empresários, 57% de homens e 43% de mulheres. Outro dado interessante: 43% desse eleitorado muito praticante tem em média 56 anos ou mais e 13% têm um diploma universitário”.
Tanto o crescimento do SD quanto do FDI se explicam em parte por um mal-estar social em relação à imigração. Na Suécia, a associação do aumento da criminalidade e dos problemas de integração de imigrantes predominou a campanha eleitoral e parece ter se tornado o principal problema para a população.
“Por um lado, eles são ideologicamente antirracistas, intrinsecamente solidários e acolhem vários membros oriundos da imigração. Por outro lado, os operários são muito vulneráveis ao dumping salarial e à concorrência desequilibrada da chegada de novas gerações de imigrantes”, aponta Sjölander em estudo sobre a relação do SD com o eleitorado operário.
“A liberalização do recurso à mão de obra imigrante pelo governo conservador em meados dos anos 2010 e as diferentes medidas tomadas pela União Europeia são fatores a levar em consideração”.
“Inclusive, mudanças de políticas sem nenhuma ligação com a imigração (como a redução de impostos e a privatização de serviços sociais), ligados aos efeitos da globalização, influenciaram igualmente”, atribui.
“Esse discurso sobre a imigração não teria um tal impacto se não se inscrevesse num contexto de aprofundamento das desigualdades e de aumento da insegurança, principalmente nas classes operárias”.
Na Itália, a reportagem da revista Marianne também aponta o descontentamento das classes populares em relação às medidas tomadas pelo governo Draghi, voltando-se para o único partido que era então a oposição.
Não menos importante, o carisma de Giorgia Meloni é apontado como fator decisivo para essa conquista. E que esse carisma também convence nas classes dominantes.
Na avaliação de Tommaso Vitale, a fraqueza dos demais partidos e de articulação à esquerda é outro fator que contribui para uma ascensão que parece inevitável dos Fratelli d’Italia.
“Há dois problemas. O primeiro é o fato de que a direita moderada, liberal e democrática, não muito autoritária, está muito fraca. Sua liderança está comprometida. Berlusconi não tem mais capacidade de agregar mais votos em torno dele. Isso é uma debilidade para toda a direita”, aponta.
“Do outro lado, a esquerda não tem partido organizado. Há uma centro-esquerda muito forte, mas a esquerda é muito fraca. Há em torno de 15% e 18% da população, em termos de preferência e pertencimento político, que votaria num partido de esquerda, mas que não tem nenhuma referência ou partido político para votar.”
“Ela não confia nem um pouco nos partidos de esquerda porque não estão presentes no nível local, porque não estão organizados, porque têm uma agenda muito fraca e estão desconectados dos sindicatos”.
“Para parar esses partidos de extrema direita, a Itália teria de ter uma coalizão entre a esquerda e a centro-esquerda, o que significaria ter uma esquerda. Isso faz da situação muito favorável a Giorgia Meloni”, contextualiza.
Paralelos com o Brasil
Muitas semelhanças ficam claras entre o fenômeno da extrema direita na Suécia e Itália e no Brasil, mostrando como o bolsonarismo é na verdade pouco original, adotando um modelo clássico dessa família ideológica.
A começar pelo negacionismo climático; as conexões históricas com o exército, ainda que mais fortes na configuração bolsonarista atual do que em seus homólogos europeus; a oposição a movimentos sociais progressistas, do aborto ao sindicalismo, passando pela pauta LGBTI+; a tentativa de posicionar-se no equilíbrio entre a figura de “outsider” do sistema político (anti-establishment) e parte dele; a captura do eleitorado de direita tradicional e parte do eleitorado popular que um dia esteve com a esquerda e assemelhando-se mais ao caso italiano, com Giorgia Meloni, o carisma de Bolsonaro, que o torna um personagem apaixonante para o seu eleitorado, alguém em quem confiam, que os encarna.
A masculinidade se revela como um pilar das extremas direitas aqui comparadas. Uma masculinidade fragilizada, que tem medo das questões de gênero ou de perdas econômicas, ancorada em velhos modelos econômicos e/ou no conservadorismo religioso.
Difere fundamentalmente o fato de que o SD e os Fratelli d’Italia nunca governaram seus respectivos países enquanto líderes, conferindo-lhes uma aparência de novidade e poupando-lhes do desgaste da experiência de governo e da revelação do despreparo e da incompetência que hoje alimentam a rejeição de metade do eleitorado brasileiro a Bolsonaro.
A desdiabolização tardia do presidente brasileiro, que na verdade não passou de tentativa, também o difere dos Irmãos da Itália e dos Democratas da Suécia. Enquanto os últimos aplicam essa estratégia há anos, foi só depois da derrota de Donald Trump que o bolsonarismo começou a ensaiá-la, com Eduardo Bolsonaro, por exemplo, dizendo que o deputado francês Dupont-Aignan, em visita a seu pai, era um deputado de “centro”.
Enquanto Meloni tenta apresentar-se como portadora da razão e do bom senso, não apenas de uma ira, Bolsonaro acenou para essa direção apenas nos últimos dias com seus supostos arrependimentos pandêmicos que, como indicam as pesquisas, parecem não ter convencido ninguém.
Diferente de seus semelhantes do norte, Bolsonaro assume a nostalgia da ditadura e segue defendendo-a. É possível fazê-lo abertamente no Brasil.
Ao contrário de seus irmãos italianos, Bolsonaro instrumentaliza os auxílios de emergência, aproximando-se talvez mais dos democratas suecos, mesmo se for para acabar com eles mais tarde.
Divergindo da nova tendência entre os operários europeus, as classes mais pobres brasileiras estão majoritariamente insatisfeitas com a extrema direita no poder.
E ainda que haja uma grande coalizão com Lula, diferindo da atual divisão e fragmentação italiana, o caso brasileiro mantém uma semelhança com a península: a esquerda ainda está dividida, com uma segunda candidatura, a de Ciro, favorecendo a extrema direita.
Por mais que as pesquisas indiquem uma derrota de Bolsonaro, ir para o segundo turno é o que ele quer. É tempo a mais para tentar reverter o cenário.
Na Suécia, com a vitória da coalizão de direita, o tempo corre agora para formar um governo. O inimaginável já aconteceu, a possibilidade de a extrema direita governar, ainda que exercendo um papel secundário. Na Itália, a divisão dos partidos democratas fortalece a perspectiva de um governo liderado pela extrema direita na semana que vem. No Brasil, a divisão da esquerda, leia-se a candidatura separada de Ciro, pode ser a cartada da qual o bolsonarismo precisava. É hora de se questionarem se o que é possível está sendo feito para evitar o pior.