A contratação de Sergio Moro pela Alvarez & Marsal é um exemplo do problema ético e moral da “porta giratória” no mundo.
Essa troca inverte os papéis funcionais: legisladores e reguladores se tornam lobistas e consultores para as indústrias que antes eles regulamentavam, e líderes do setor privado, ou seus lobistas, recebem nomeações governamentais em áreas onde antes eram fiscalizados.
Em documento publicado pela Casa Branca, em janeiro de 2009, Barack Obama dizia que “um dos aspectos mais suspeitos da profissão de lobby é o chamado ‘Revolving Door’. A vivência no governo permite que servidores públicos desenvolvam uma rede de amigos que pode, posteriormente, ser explorada em favor de seus clientes. O fato de que os salários do lobby são normalmente várias vezes maiores do que salários do setor público são vistos como evidência de que ex-funcionários lucram com suas conexões dentro dos órgãos estatais”.
Centenas de casos dão razão à fala de Obama e os escândalos, como a contratação de Moro, se sucedem.
Nesse momento, os EUA estão vivendo a “crise dos opiáceos”, uma epidemia que migrou do tráfico de heroína para as farmácias.
Essa crise é fruto da infiltração, via porta giratória, no Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa americana, de agentes privados que alteraram as recomendações médicas para uso de medicamentos derivados do ópio.
No velho continente, a Airbus contratou recentemente Jorge Domecq, ex-presidente-executivo da Agência Europeia de Defesa (EDA), para atuar como lobista junto à própria EDA, causando enormes desgastes à confiança dos europeus. Em 2016, o banco Goldman Sachs anunciou José Manuel Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia, como seu novo presidente internacional quando a instituição estava envolvida em vários escândalos financeiros.
Tanto os EUA quanto a União Europeia estão buscando formas de regulamentar a contratação de agentes públicos que ocuparam altos cargos por empresas privadas.
A coisa funciona de duas formas: ou a empresa contrata o agente público por algum serviço já prestado, por algum interesse defendido – possivelmente, o caso Moro – ou por serviços que ainda serão prestados, normalmente a facilitação do trânsito de seus interesses junto ao Estado.
A capacidade e a efetividade de manejo desses interesses são medidas pelo capital burocrático, aquele acumulado através do e pela vivência no serviço público, constituído pelo conhecimento aprofundado do funcionamento do Estado e pelos relacionamentos interpessoais com outros agentes estatais em posições de decisão. Quanto maior capital burocrático apresenta o agente público, maior é o seu valor de mercado.
Ainda na década de 1990 iniciou-se nos EUA um forte movimento liderado por empresas de porte médio para regulamentar o troca-troca, não por questões éticas, mas porque desorganiza o ambiente de negócios e afeta a competição entre os setores da economia.
Historicamente, em defesa das liberdades do mercado, a sociedade estadunidense é leniente com a corrupção e pragmaticamente acomoda delitos dentro de alguma lei específica. A primeira acomodação da porta giratória se deu no âmbito do parlamento através do Federal Regulation of Lobbying Act, editado em 1946, que regulamentou a atuação do lobista.
Atualmente, alguns órgãos estatais já criaram seus próprios critérios de movimentação de ex-funcionários, entre eles o setor militar. No entanto, a regulamentação do judiciário não avança.
Para se ter uma ideia de quanto é indesejável para o judiciário estabelecer critérios razoáveis para a porta giratória, em apenas três anos, dos dezenove procuradores do DoJ e do SEC que trabalharam nas investigações da Lava Jato, pelo menos seis foram para a iniciativa privada.
De Acordo com a Agência Pública, Kevin Gingras, que veio ao Brasil em nome do DOJ para entrevistar Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa e Alexandre Yousseff em julho de 2016, hoje é vice-presidente de litígios na fabricante de armas e tecnologia de defesa Lockheed Martin Corporation.
E certamente não por amor à causa da justiça, ou por alguma outra causa nobre. Dinheiro, muito dinheiro é o combustível que faz a porta girar.
A porta giratória no Brasil
No Banco Central, a presidência e a maioria das diretorias são ocupadas pelo sistema financeiro, o mesmo que o BC deveria fiscalizar. A recente independência imposta pelo governo Bolsonaro via parlamento oficializou o assalto de uma prerrogativa pública e a partir de então as raposas são, legalmente, as donas do galinheiro.
Mas como somos uma sociedade criativa, conseguimos inovar a porta giratória e criamos uma jabuticaba a partir do emparedamento do STF por um inacreditável tuíte do general Villas Bôas.
A falta de coragem de enfrentar o afônico rugido de um moribundo leão banguela tirou um civil da disputa eleitoral e levou ao poder um ex-militar que, de penada em penada, instalou mais de 6 mil militares em cargos comissionados, em funções civis e que deveriam ser ocupadas por civis.
O aparelhamento de setores do Estado por essa horda fardada nada mais é do que um movimento de porta giratória intraestatal, em que um órgão de Estado, as Forças Armadas, passam a ocupar posições de decisão em outros órgãos do Estado e, claro, passam a impor aos órgãos ocupados os seus próprios interesses, a sua própria pauta.
A CPI da Covid mostrou que o aparelhamento do Ministério da Saúde que possibilitou a ação da quadrilha do Vacinão, formada em sua maioria por militares.
Estudo do Banco Central do EUA diz que, este ano, o custo do compliance para o sistema financeiro estadunidense será ordem de US$ 200 bilhões. Estudo semelhante da consultoria Deloitte aponta que, para o sistema financeiro mundial, o custo será próximo de US$ 500 bilhões e assinala que o custo de compliance dos países emergentes é mais alto que a média dos países desenvolvidos.
Ao apresentar a estrutura de custeio do compliance, o relatório mostra que 5% do custeio são gastos com serviços de consultoria, ou seja, o mercado de consultoria deve abocanhar US$ 25 bilhões, só do setor financeiro.
De olho nesse filão, a maioria dos egressos do Departamento de Justiça se empregam em escritórios de compliance ou fundam sua própria consultoria. A razão para isso é óbvia: compliance tem a ver com cumprimento de leis, que tem a ver com multas e multas, popularmente falando, tem a ver com o famoso “me ajuda a te ajudar”.
A porta giratória e o lavajatismo
Enquanto a Lava Jato importou o modelo de atuação do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ), seus agentes aproveitaram a convivência para aprender, dos americanos, o caminho da prosperidade, do enriquecimento a partir do capital burocrático que adquiriram.
O aprendizado é facilmente verificável: o chefe da operação está até hoje entalado numa suspeita contratação pela Alvarez & Marsal – empresa de consultoria especializada em porta giratória – e há robustas suspeitas de que o emprego milionário foi um prêmio pago pelos serviços prestados ao império.
Isso inclui o recolhimento de mais de 10 bilhões de reais em multas, pagas por empresas brasileiras ao Tesouro estadunidense, a quebra de três gigantes brasileiras da construção civil, a entrega do pré-sal e a ampla desnacionalização da Petrobras.
Ainda como parte do aprendizado, vencida a licença-prêmio, o chefe busca saltar por uma fresta temporal para o mundo político, emulando centenas de oriundos do DoJ que hoje fazem carreira no mundo político estadunidense.
Com sua filiação ao Podemos, levou a reboque Deltan Dallagnol, seu ajudante de ordens e subchefe, que viu na fresta política a solução para uma provável condenação no CNMP – Conselho Nacional do Ministério Púbico -, que mesmo sendo uma confraria entre irmãos, não teria como não o expulsar do serviço público pela enxurrada de provas dos inúmeros ilícitos cometidos por ele.
Mas o aprendizado com os gringos se estendeu também aos subalternos.
O primeiro a vislumbrar o paraíso da consultoria foi o ex-procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, estrela da Lava Jato.
Num diálogo da Vaza Jato, ele aparece dizendo que “nem sei do que está falando, mas meus vazamentos objetivam sempre fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração”.
Por essa e por muitas outras mensagens – tanto as de conhecimento público quanto as da Operação Spoofing ainda não reveladas às quais o DCM teve acesso -, o ex-procurador admite cumprir o papel de vazador oficial do lavajatismo.
Vazar conteúdo para a imprensa amiga é um dos métodos desenvolvidos e extensivamente usados pelos promotores do DoJ e tem como finalidade assassinar a reputação do investigado, quebrar sua condição humana antes mesmo da existência de uma acusação formal.
No mesmo tom de ameaça e movido pela coragem que só os impunes têm, o ex-vazador oficial criou o blogue “Comply or die” em tom negro e cinza, em que vaticina: “empresas, setor público, profissionais liberais e até mesmo celebridades vivem e morrem em decorrência de sua reputação. Sendo assim, esteja em conformidade ou arrisque ver seu negócio perder espaço diante da concorrência ou pior, ser destruído por um escândalo.”
O blogue foi uma preparação para a entrada no negócio da conformidade, o tal compliance, destino escolhido por centenas de procuradores estadunidenses que, oriundos da estrutura investigativa e persecutória do DoJ, trocaram a carreira estatal por polpudos salários em escritórios de advocacia vendendo serviços de blindagem contra tais investigações, atuando como uma espécie de milícia jurídica.
Ele se jacta de ser “considerado por advogados de defesa como ‘o cérebro’ por trás dos acordos de delação premiada. É a maior autoridade em colaboração jurídica internacional da equipe”. Lima “tornou-se um enxadrista experiente na hora de negociar penas com delatores da operação”.
De acordo com o site, a destemida missão do ex-vazador lavajatista é “garantir a segurança jurídica para empresas de médio e grande porte” e o produto-chefe da casa é “potencializar a conduta ética pela implantação de programas de conformidade”. Não está explícito se ele também vende gás e instala gatonet.
Fernandes lança mão de uma frase fake, provavelmente a frase mais fake de que se tem conhecimento, atribuída a Ernest Hemingway e, que por óbvio, nunca foi dita por Hemingway: “Quem estará ao seu lado nas trincheiras, importará mais que a própria guerra (sic)“.
É o capital burocrático, em estado puro, se oferecendo aos necessitados, não necessariamente a preços módicos.