Como a Suécia evita a corrupção em empresas estatais. Por Claudia Wallin

Atualizado em 11 de julho de 2016 às 19:51

 

A sede do Serviço Nacional de Auditoria da Suécia
A sede do Serviço Nacional de Auditoria da Suécia

O auditor sueco me ouve com aquela expressão de quem tenta medir o QI do seu interlocutor. A pergunta é – como evitar a corrupção em empresas estatais, e impedir sua utilização como pólos de transferência de recursos públicos para grupos privados bem conectados com o poder político? A resposta, ele diz, é elementar.

“É para isso que servem auditorias independentes, regulares e transparentes sobre as operações das estatais. E quero dizer auditorias verdadeiramente independentes, que façam não apenas um trabalho de fiscalização, mas também de promoção da eficiência”, observa Dimitrios Ioannidis, um dos chefes responsáveis pela fiscalização das estatais da Suécia.

“Se você não faz isso, só pode ficar perplexo com os resultados. E quando descobre a magnitude do problema, vai dizer, ‘oh, isso aconteceu? Mas como isso pôde acontecer?'”

“Ora, aconteceu porque fizeram aquele mau negócio, ou tomaram aquela má decisão, ou realizaram práticas corruptas. E todas essas atividades precisam ser fiscalizadas regularmente, na medida do possível, para tentar conter tais práticas”, conclui o auditor, neste exótico país onde cargos nas empresas públicas não são rifados entre partidos políticos.

Estamos na sede do Serviço Nacional de Auditoria da Suécia (Riksrevisionen), o órgão responsável pela fiscalização das empresas públicas do país. Seus duzentos auditores vigiam com mil olhos um portfolio considerável: são 49 estatais, com valor estimado em mais de 500 bilhões de coroas suecas (cerca de 60 bilhões de dólares).

Mas no modelo sueco de controle das estatais, a mesma mão que abre a ferida também previne e cura: é um sistema que dá ênfase particular a políticas de boa governança, e não apenas ao chicote.

Os auditores do Riksrevisionen têm assim a dupla missão de produzir relatórios de fiscalização, e também de eficiência – que apontam, com regularidade, correções de curso e práticas de boa gestão para melhorar o desempenho das estatais, promover seu crescimento e evitar aberrações  evitáveis.

São as chamadas auditorias de performance. Seu objetivo primeiro não é usar a lupa para caçar deslizes – e sim colaborar para o aprimoramento da gestão das empresas públicas.

Em outras palavras, o que se quer é não ter que punir.

“Não somos um tribunal”, pontua Ioannidis, assessor especial da unidade de governança de estatais no Riksrevisionen e Ph.D no tema.

“Em essência, o que fazemos é refletir. Uma constante reflexão crítica sobre a forma como as empresas estatais estão sendo administradas. Nas auditorias de performance, trabalhamos em um nível mais estratégico, por uma questão de eficiência. De manter a casa em ordem.”

De que forma?

“Fazemos perguntas como, ‘o governo nomeou um conselho de administração relevante, e verdadeiramente profissional, para esta estatal? Os investimentos da estatal das ferrovias estão sendo planejados e organizados como devem? Os riscos estão sendo considerados com prudência?”

“Porque quando as empresas públicas têm muito dinheiro, por exemplo, muitas vezes elas se tornam pouco cuidadosas na tarefa de fazer análises sérias e contundentes sobre cálculos de risco. E estamos falando de dinheiro público. Ou seja, de dinheiro dos contribuintes, que precisam ter confiança no sistema.”

Metas definidas pelo poder político para as estatais são acompanhadas de perto.

“Por exemplo, o Parlamento disse que queria ver a (estatal sueca de energia) Vattenfall se posicionar entre as empresas líderes do mercado. Mas em nossas análises, verificamos que a Vattenfall não tinha uma estratégia satisfatória de longo prazo a fim de poder alcançar aquele objetivo, e apontamos recomendações”, conta Dimitrios Ioannidis.

Os relatórios produzidos pelo Riksrevisionen são submetidos ao Parlamento, que por sua vez envia os documentos ao governo, que tem por obrigação comentar os resultados. Se o relatório recomendar correções de curso, as autoridades têm prazo de quatro meses para informar que medidas já foram ou estão sendo tomadas a fim de aumentar a eficiência de suas operações. O comitê parlamentar responsável analisa então as medidas relatadas, e o Parlamento toma uma decisão final sobre cada caso.

A prevenção da corrupção nas empresas públicas também passou a ocupar um tempo generoso nas reflexões dos auditores suecos.

“Concluímos há alguns anos este amplo estudo sobre o risco da corrupção nas estatais”, ele diz, batendo o indicador sobre o relatório de mais de cem páginas que me entrega.

“Isto não é o resultado de uma auditoria pós-fato, que acusa – “nossas estatais estão sendo corruptas”. É um estudo feito com profundidade, e que contém recomendações sobre como estar alerta para a possibilidade de ocorrência de práticas corruptas. Trata-se de um trabalho preventivo, que tem a finalidade de assegurar que nossas estatais tenham firmes regras institucionais para evitar a corrupção”.

O relatório advertiu que a prevenção da corrupção não estava sendo entendida como prioridade para as autoridades e empresas públicas suecas. E demandou a criação de diretrizes explícitas para conscientizar o comando das estatais e afiar o controle.   

“O fato de a Suécia ser o terceiro país menos corrupto do mundo não significa que o risco da corrupção seja zero”, pondera o auditor. “E corrupção na esfera pública é prejudicial para a democracia e o Estado de Bem-Estar Social”.

Dimitrios Ioannidis
Dimitrios Ioannidis

Sem Cargos Comissionados e sem Interferência Política

Não há cargos comissionados nas estatais suecas: a direção, os conselhos de administração e toda a cadeia executiva é formada por profissionais da indústria, sem vinculação partidária. O que reduz o risco de ocorrência de fraudes com a conivência de altos executivos das empresas.

“A ambição do governo sueco é que as empresas públicas sejam geridas de forma estritamente comercial, nos moldes de uma empresa privada. Os diretores e conselheiros das estatais não podem ser, portanto, políticos ou amigos de políticos. São profissionais do setor, todos eles. Têm que saber o que estão fazendo”, ressalta Ioannidis.

Nas holdings em que o Estado detém o controle acionário, em geral o governo nomeia um representante para o conselho de administração.

“Mas não é o governo que decide diretamente quem vai dirigir as estatais. A nomeação dos executivos e dos conselhos de administração é uma das mais importantes tarefas desempenhadas por uma unidade autônoma do poder executivo, que é responsável pelas estatais e que sabe que suas decisões são controladas e escrutinizadas”, acrescenta o auditor.

É particularmente interessante, no modelo sueco, o princípio chamado de “Ministerstyre”: trata-se de um código de conduta que proíbe os ministros, assim como o primeiro-ministro, de interferir nas operações das empresas estatais, assim como das agências governamentais.

Quem quebra a regra, é diligentemente reportado ao Comitê de Constituição do Parlamento (Konstitutionsutskotet, ou KU), para uma vergonhosa sabatina pública transmitida pela TV sueca. Porque a lei que protege as estatais contra a interferência política está gravada na Constituição sueca.

“A lei que rege as estatais determina de maneira clara qual é o papel do governo e qual é o papel do conselho de administração, e estabelece princípios muito claros que protegem as empresas públicas de qualquer tipo de ingerência por parte do poder”, diz o auditor.

Freios e Contrapesos

O Riksrevisionen é parte de um robusto sistema de “checks and balances”, os freios e contrapesos que fazem da Suécia um dos países menos corruptos do mundo.

“Se identificamos um mau negócio ou uma má decisão, reportamos o problema e apontamos soluções. Se identificamos uma suspeita de crime, chamamos a polícia e os promotores”, diz o auditor Dimitrios Ioannidis.

A partir da suspeita de alguma prática ilegal, o caso passa a ser investigado pela Agência Nacional Anti-Corrupção (Riksenheten mot Korruption) e pela temida Ekobrottsmyndigheten, a Autoridade para Crimes Financeiros.

A maior investigação em curso é o caso da Telia Sonera, a gigante sueco-finlandesa de telecomunicações na qual o governo sueco detém participação de 37% – e que diante da pressão pública decidiu retirar-se inteiramente dos mercados da Ásia Central, a partir de suspeitas de que teria pago suborno a autoridades de países reconhecidamente corruptos, como o Uzbequistão, a fim de obter licenças de operação naqueles mercados.

Casos como o da Telia Sonera surpreenderam um país pouco habituado a denúncias de corrupção, e que agora aperta seus controles.

Maus investimentos das estatais também estão na mira dos auditores: o Riksrevisionen fez recentemente uma ampla auditoria das práticas de cálculo de risco das estatais, diante da ocorrência de casos em que os investimentos realizados pelas empresas públicas tiveram um impacto negativo nas finanças.

O resultado foi um ácido relatório.

“O governo não está tomando medidas suficientes em suas diretrizes para garantir um eficiente cálculo de risco nas operações das empresas estatais, levando-se em consideração a importância destas empresas para as finanças públicas”, diz o relatório.

Na sequência, os auditores listam uma série de recomendações a serem implementadas. Uma delas é a introdução de critérios rigorosos para a realização das análises de risco, a serem seguidos pelos conselhos de administração das estatais. Outra é a exigência de que os conselhos de administração informem o Parlamento, com regularidade, sobre os riscos envolvidos em atividades que possam afetar o valor das empresas e futuros dividendos para o Estado.

“Fazemos recomendações tanto às empresas como ao governo, ou ao Parlamento. Como por exemplo, sugerindo a complementação de uma lei. Desta maneira, podemos ser parte de um processo de aprimoramento das estatais”, diz o auditor.

Os critérios de supervisão das estatais são os mesmos aplicados às empresas privadas. Como é de praxe, todas passam por auditorias internas e também externas, estas conduzidas por grandes empresas internacionais como a PricewaterhouseCoopers e a Ernst & Young – que já foram alvo, aliás, de vários processos por barbeiragens. Em 2001, o escândalo contábil da distribuidora de energia americana Enron chegou a levar a gigante Arthur Andersen à falência.

Os auditores independentes do Sistema Nacional de Auditoria da Suécia completam, assim, o ciclo da fiscalização financeira das empresas públicas. E cobram resultados:

“Normalmente, dois anos depois de termos auditado uma estatal e identificado problemas, voltamos a fazer uma nova auditoria para averiguar: a empresa adotou as correções de curso recomendadas? Melhorou suas rotinas de gestão? Em seguida, publicamos o resultado na internet.’

Independência e Transparência

A independência dos auditores do Riksrevisionen é a pedra angular do sistema.

“Somos um órgão independente, que fiscaliza não só as estatais como toda a cadeia do poder executivo, e que responde ao Parlamento com o objetivo de fortalecer os princípios democráticos”, diz Dimitrios Ioannidis.

Não era assim: há pouco mais de uma década, tanto o Parlamento como o governo tinham seus próprios órgãos de auditoria, que fiscalizavam as empresas públicas e agências governamentais.

“Houve então um grande debate, e concluímos que aquele não era um sistema verdadeiramente independente de fiscalização. Porque um auditor do Parlamento, por exemplo, tinha o poder de iniciar investigações que podiam atender apenas aos interesses dos membros do Parlamento. Foi então que decidimos criar o Riksrevisionen, em 2003, como um órgão essencialmente independente. Porque até governos precisam ser supervisionados, e a supervisão deve ser imparcial”, aponta Ioannidis.

A independência do Riksrevisionen é garantida pela Constituição sueca. Os três auditores-gerais que comandam o Serviço Nacional de Auditoria são nomeados pela Comissão de Constituição do Parlamento, cumprem mandatos de sete anos de duração e não podem ser re-eleitos.

“Pode-se presumir que ter três auditores-gerais no comando, em vez de apenas um, tem o potencial de reduzir eventuais interferências externas. E são três auditores-gerais que não podem ser facilmente destituídos, e que têm independência para fiscalizar”, observa o auditor.

E destaca: a transparência é o elo fundamental que rege todo o sistema sueco.

“E quando falo em transparência, quero dizer uma transparência ampla e funcional, que garanta acesso irrestrito a informações e documentos. Para que tanto o Parlamento como os cidadãos tenham informações efetivas sobre o que acontece dentro das estatais.”

Os auditores atuam como uma espécie de farol para os contribuintes, no revolto mar de balanços e balancetes produzidos por cada autoridade pública. Seus veredictos sobre a atuação de cada órgão são publicados regularmente na internet, fortalecendo assim o controle social.

“Sem dúvida. Os cidadãos podem acompanhar o que se passa nas estatais, a mídia pode reportar sobre a situação das empresas com dados fundamentados. O governo também responde aos nossos relatórios, e faz comentários. Às vezes o governo discorda de alguma recomendação, e faz uma argumentação contrária. Dá-se então um diálogo público, que é a forma saudável de comunicação quando se trata de interesses públicos”, diz  Ioannidis.

Os auditores do Riksrevisionen se debruçam agora sobre um vasto projeto de análise comparativa sobre as práticas e o desempenho de todas as 49 estatais suecas, incluindo oito sociedades de economia mista.

“A regra número um para fiscalizar as estatais são as regras da lei. Leis são feitas para serem cumpridas. E em nossa Constituição, a Lei do Orçamento manda que o patrimônio público deve ser administrado com eficiência e boa governança. Porque trata-se do dinheiro dos contribuintes”, completa o auditor sueco.

O próprio Riksrevisionen é, por sua vez, fiscalizado por empresas internacionais de auditoria: a auditoria interna do órgão sueco é realizada pela Price Waterhouse Coopers, e a auditoria financeira é feita pela BDO, uma das maiores do mundo no setor.

”A idéia é garantir a total confiança da sociedade nas autoridades públicas”, diz Claes Norgren, que acaba de encerrar seu mandato de sete anos à frente do Serviço Nacional de Auditoria sueco.