Por Leandro Fortes e George Marques
Ao chegar no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, na manhã do dia 30, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin estava, como de costume, empertigado num terno sóbrio, os cabelos ralos milimetricamente alinhados sobre o cocuruto formando um discreto combover, o rosto emoldurado pelo sorriso largo, talvez a marca mais visível de sua recente conversão à esquerda.
De forma organizada, como também é de seu feitio, passou a receber, um a um, os mais de 30 relatórios iniciais dos grupos de trabalho do Gabinete de Transição do futuro governo Lula.
Mestre de cerimônia da transição, “algodão entre cristais”, segundo definição de um dos condutores do processo, no CCBB, Geraldo Alckmin distribui sorriso e gentilezas, ainda em um esforço sofrido para ser aceito e mitigar as desconfianças em torno de sua conversão. Não é por menos. A mais de um interlocutor, o ex-tucano já disse que tem duas missões no futuro governo Lula: retomar os princípios da democracia brasileira e afastar dos aliados a sensação de que ele, em algum momento, possa se tornar um novo Michel Temer, o vice decorativo e dissimulado que se tornou símbolo de traição na política brasileira.
No fim daquela tarde, mais do que qualquer outro por ali, era ele, Alckmin, que havia feito uma das mais surpreendentes transições pessoais da história da política brasileira.
Foi um dia especial para o ex-tucano que, em outros tempos, acusava seu parceiro de chapa, Luiz Inácio Lula da Silva, de pleitear um terceiro mandato para “voltar ao local do crime”. Explica-se: governador de São Paulo por quatro mandatos, Geraldo Alckmin se projetou, na primeira década do século XXI, como a mais importante liderança do PSDB, e, portanto, inimigo natural do PT, dos petistas, de Lula.
Em 2006, os dois disputaram um conturbado segundo turno em que a principal arma do tucano era o discurso anticorrupção, a infalível estratégia udenista adotada contra a esquerda que iria se intensificar, dali para frente, até os limites da selvageria, e chegar, com apoio de Alckmin, ao golpe midiático-parlamentar que iria derrubar Dilma Rousseff, em 2016, e fundar as bases para a eleição, em 2018, de Jair Messias Bolsonaro.
Filiado ao PSB, desde julho passado, o ex-governador de São Paulo nem de longe pode ser considerado um socialista, mas é fato que, levadas em conta as variáveis do passado, a conversão de Alckmin pode ser vista, sob muitos aspectos, como revolucionária. Senão, vejamos.
Geraldo, aliás, como gosta de ser chamado, é médico formado pela Universidade de Taubaté e vem de uma família tipicamente conservadora do interior de São Paulo. Nascido, há 70 anos, em Pindamonhangaba, é sobrinho de um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Rodrigues Alckmin, e primo de um outro vice-presidente da República, José Maria Alkmin, companheiro de governo do marechal Humberto Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar instaurada no Brasil após o golpe de 1º de abril de 1964.
Embora tenha consolidado uma imagem conservadora, ao longo da vida política, Alckmin forjou-se no antigo MDB, oposição consentida à ditadura, partido pelo qual foi vereador, em 1972, aos 20 anos, e prefeito da cidade onde nasceu, em 1976, aos 24 anos – até então, o político mais jovem a chegar naquele cargo, em todo o Brasil. Em 1982, aos 30 anos, foi eleito deputado estadual em São Paulo, também pelo MDB (“o antigo, não este que aí está”, faz questão de lembrar, quando trata do assunto).
O resto é história: eleito deputado federal constituinte, em 1986, já pelo recém-fundado PMDB, juntou-se ao grupo de descontentes formado por Franco Montoro, José Serra, Bresser Pereira, Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas para fundar, em 1988, o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB – o antigo, não este que aí está, do qual iria se desfiliar, em dezembro de 2021, após uma sequência de traições capitaneada por um afilhado político, o ex-prefeito e ex-governador de São Paulo João Doria.
Foi um golpe do destino que tirou Geraldo Alckmin da posição subalterna em que vivia entre as grandes estrelas do PSDB, no início dos anos 1990. Como presidente estadual do partido, entre 1991 e 1994, ele fez um trabalho de formiga que iria ser decisivo para o longo período de hegemonia política do PSDB no estado de São Paulo. Sistemático e organizado, fundou diretórios tucanos na maioria dos municípios paulistas e levou os fundamentos do partido para além da capital. Graças a isso, virou vice de Mario Covas, em 1994, e foi designado pelo falecido governador para fazer aquilo que iria estigmatizá-lo como político de direita: privatizar as estatais paulistas.
Foi reeleito, junto com Covas, em 1998. Em 22 de janeiro de 2001, tornou-se governador interino quando o titular, vítima de câncer na bexiga, foi afastado para tratamento médico. Em 6 de março do mesmo ano, com a morte de Covas, tornou-se efetivo e governou São Paulo, pela primeira vez, até 2003. De lá para cá, teve mais três mandatos, perdeu duas eleições para a prefeitura de São Paulo e duas eleições para presidente da República.
A primeira, em 2006, inaugurou a inflexão do PSDB para a direita de fato, não mais como coadjuvante ideológico do PFL (depois, DEM, depois, unido ao PSL, União Brasil), após a parceria que governou o Brasil, entre 1995 e 2002, com Fernando Henrique Cardoso à frente. Católico ligado à ultraconservadora Opus Dei, braço da extrema direita dentro do Vaticano, Alckmin enveredou-se na narrativa antiaborto, anticomunista, antiesquerdista, antiLula, enfim. Foi para o segundo turno com o petista empunhando o escândalo do mensalão, junto com a mídia, mas foi derrotado, principalmente, por conta da pecha de privatista. Conseguiu a proeza de ter menos votos no segundo do que no primeiro turno.
A segunda tentativa de se eleger presidente, em 2018, foi um vexame total. O Brasil já não era uma arena entre PT x PSDB. A Operação Lava Jato, embora aparentemente tivesse potencial para beneficiá-lo, criou um clima de ódio e desprezo pela política alimentado, diuturnamente, por uma mídia criminosamente empenhada em derrubar Dilma e retirar o PT, depois de quatro mandatos, do poder. Alckmin montou uma chapa com a inacreditável Ana Amélia Lemos, senadora eleita pelo PP do Rio Grande do Sul que, ao tempo da campanha contra Dilma, vestia-se de verde e amarelo, no plenário do Senado, inaugurando um modelito que iria ser radicalizado, pouco tempo depois, pelo empresário bolsonarista Luciano Hang, o Veio da Havan.
Sob a batuta do então juiz Sergio Moro, organizado criminosamente com uma geração de procuradores federais de péssima reputação comandados por Delta Dallagnol, Lula acabou preso, em 7 de abril de 2018, no lastro da Lava Jato, coroando o processo mais violento de perseguição judiciária já visto no mundo. O atual presidente eleito passou 580 dias em um cárcere da Polícia Federal, em Curitiba, sem que jamais uma única prova tenha sido apresentada para justificar a sentença de Moro contra ele.
Alckmin e Ana Amélia bem que tentaram surfar nas circunstâncias. Abraçaram o discurso anticorrupção e se regozijaram da prisão de Lula. Em uma postagem de Twitter feita no dia em que Lula foi levado para Curitiba, o então governador de São Paulo escreveu: “Tenho a convicção de que isso simboliza uma importante mudança que vem ocorrendo no Brasil: o fim da impunidade. A lei vale para todos”. Tarde demais. O veneno da mídia, aliado a uma virulenta campanha de mentiras e notícias falsas, inundara a campanha de ódio, kit gays e mamadeiras de piroca. Desse esgoto emergiu Jair Bolsonaro e, com ele, o movimento de massas de extrema-direita que o elegeu, em 2018, ao vencer o candidato do PT, Fernando Haddad, no segundo turno. Alckmin ficou em quarto lugar, com 4,76% dos votos, o pior resultado de um candidato do PSDB à presidência da República.
Outras frases do tipo seriam usadas, curiosamente, tanto pela direita e como pela esquerda, esta incomodada com a presença do ex-tucano na chapa petista, durante a campanha de 2022. Mas era tarde. O processo de conversão Alckmin já estava em pleno andamento e tinha sido absorvido, por influência de Lula, pela cúpula do PT e por grande parte da militância, sob o argumento de que o inimigo, naquele momento, era comum a todos os democratas. Assim, Geraldo foi se tornando, aos poucos, uma solução palatável para a luta eleitoral que se avizinhava.
Ainda está para se provar o efeito eleitoral real da presença do ex-tucano na chapa com Lula. Parte da aposta dizia respeito à necessidade de se fazer a aliança para garantir a eleição de Haddad em São Paulo, o que não aconteceu. Mas o fato é que, do ponto de vista simbólico, trazer Alckmin para o centro do palco eleitoral, ao lado do PT, possibilitou a Lula ampliar até o limite da irresponsabilidade a frente de forças e partidos que lhe garantiram uma vitória apertada, no segundo turno.
Alckmin, é justo dizer, deu todo tipo de demonstração de lealdade, participou ativamente da campanha, deu declarações públicas de arrependimento por ter chamado Lula e o PT de ladrões e fez um mea culpa sobre a crença que tinha na Lava Jato. Sem falar na inaudita performance em um evento do PSB, onde ensaiou cantar a “Internacional Socialista”.
Em certo momento, dirigentes do PT se mostraram até preocupados com a radicalização do chamado “picolé de chuchu”. Alckmin abraçou Lula e vice-versa. Em 2015, quando o caçula do ex-governador, Thomaz, morreu em um acidente de helicóptero, aos 31 anos, um ensaio de civilidade política já os tinha unido. Em nota assinada por Lula e pela falecida primeira-dama Marisa Letícia, o petista escreveu: “Nessa hora de dor e tristeza por uma perda irreparável, prestamos nossos sentimentos e nossa solidariedade para o governador Geraldo Alckmin, a primeira-dama Lu Alckmin, para a esposa, os irmãos e filhas do jovem Thomaz Alckmin. (…) Diante de uma tragédia onde não há palavras que possam confortar pais, esposas e filhos, estendemos nosso abraço e nossa fé que os entes queridos permanecerão para sempre conosco na paz de Deus e em nossos corações.”
Mesmo o apelido que tanto o irritava – e a todos que o cercavam – foi sendo absorvido até virar marca política. Foi o jornalista e colunista José Simão, na campanha eleitoral de 2002, ao governo de São Paulo, que popularizou a alcunha de “picolé de chuchu”. Uma alusão ao jeito sem graça, interiorano, alheio a festas e de oratória anódina ainda característica da performance política de Alckmin. Característica, aliás, que mudou a olhos vistos, desde que ele passou a andar com Lula. A súbita alegria do vice-presidente eleito em atos de campanha chamou a atenção da mídia e virou memes na internet, em mais de uma ocasião. A dupla passou a se intitular, divertida, de “risoto de lula com chuchu”.
A amigos, Alckmin já confessou que a entrada na chapa de Lula foi o seu segundo resgate político. O primeiro, foi em 2009, quando estava desempregado, depois de perder a eleição para prefeito de São Paulo, um ano antes, e o então governador de São Paulo, José Serra, o levou para ser secretário estadual de Desenvolvimento.
O resgate feito por Lula foi muito mais sublime. Alckmin havia sido traído por João Doria, levado ao PSDB por ele, mas que não o apoiou na disputa presidencial de 2018. Depois da derrota, caiu em um ostracismo vertiginoso e chegou a fazer bico dando dicas de saúde, vestido de jaleco branco, no programa “Todo Seu”, apresentado pelo cantor da Jovem Guarda Ronnie Von, na TV Gazeta. O nome do ex-governador foi ventilado para a chapa de Lula em discussões internas do PT, diante da necessidade de trazer a centro-direita para a guerra contra Bolsonaro. Quando foi avisado da disposição de Alckimin de se juntar à chapa petista, Lula virou-se para Fernando Haddad, portador da notícia, e disse: “A política é uma coisa extraordinária”.