É uma coisa óbvia, mas mortalmente ignorada.
O texto abaixo foi publicado, originalmente, no site as bicicletas, no aniversário de morte de uma ciclista amiga do autor. Foi mantida a grafia original, com tudo em letra minúscula, em respeito ao estilo do redator.
uma fechada, um tombo, um atropelamento, uma morte. não relato eu, prefiro usar as palavras do meu amigo thiago benicchio:
“Atualizações sobre o caso de Julie Dias, com algumas informações da delegacia:
Na manhã de 02/03, a ciclista Julie Dias pedalava pela segunda faixa da avenida Paulista.
Um ônibus que vinha pela terceira faixa da avenida fechou a ciclista, derrubando-a para a primeira faixa e ela foi atingida por outro ônibus (da viação Viasul).
O motorista do ônibus que derrubou a ciclsita fugiu e foi localizado posteriormente pois o cobrador do ônibus que atingiu Julie anotou a placa.
O motorista do ônibus que derrubou Julie (que estava na terceira faixa) foi indiciado por homicídio culposo, com o agravante de estar dirigindo um veículo de passageiros (precedente importante).
O motorista do ônibus que matou Julie a conhecia e estava transtornado na delegacia.“
como se vê, trata-se de um caso de homicídio. juliana ingrid dias, por nós conhecida como julie dias, ciclista que diariamente fazia o trajeto entre sua casa e o hospital onde trabalhava passando pela avenida paulista, teve sua vida abruptamente ceifada.
julie era uma menina linda. era uma menina inteligente. sempre sorridente. uma daquelas pessoas luminosas que sempre gostamos ter por perto de nós. não consigo lembrar de nenhuma imagem dela em que não estivesse sorrindo pra dedéu.
bióloga. trabalhava em um hospital em são paulo. uma semana atrás doou sangue. fazia parte de um grupo chamado “pedal verde”, no qual ciclistas se reúnem num domingo do mês e plantam árvores pela cidade. semeiam vida.
julie era sobretudo uma pessoa do bem. isso precisa ser ressaltado. conversava com muita gente. pessoalmente, por celular, pela internet. uma pessoa legal. linda, alegre, charmosa, feliz.
a sensação de que há injustiça nos atos do mundo é grande.
pela manhã, um aluno ligou-me perguntando se eu estava bem, pois ouvira a notícia de que um ciclista havia sido atropelado e morto na avenida paulista – e, para os meus alunos, todos os ciclistas sou eu… – e eu já senti aquele frio no estômago.
muitos amigos circulam de bicicleta no entorno da avenida paulista. quem seria?
imediatamente começo a “chamada geral” que sempre fazemos a cada vez que temos uma notícia como essa. todos os que tinham se manifestado na net estavam bem, mas quem faltava?
logo a notícia de que era uma mulher. outro aperto no coração.
quantas amigas queridas não trafegam diariamente pela avenida paulista, indo aos seus trabalhos? nisso alguns colegas já tinham subido à avenida paulista e ido ao 78º DP, pra saber quem era, uma vez que o corpo estava irreconhecível e os documentos estavam naquela delegacia.
um amigo logo confirma quem era.
a angústia então se torna desespero. sim, era uma de nós. não apenas uma ciclista, mas uma pessoa que orbitava no entorno do planeta bicicletada, aquela miríade de grupos, coletivos, atividades e etc envolvendo a bicicleta.
uma amiga. amiga de muitos e muitas. um dia muito triste.
sabíamos quem era mas não divulgamos até que um meio de comunicação divulgasse, com autorização da família.
mas todos nós sabíamos quem era.
no final da tarde fui pedalando à praça do ciclista, onde haveria a concentração pro ato, manifestação, homenagem – chamem como quiser. junto comigo uma amiga.
meu deus, que tristeza! perdi a conta de quantas pessoas choraram em meus ombros e em quantos ombros chorei. de quantos olhos vermelhos me olharam…
a mesma pergunta, sem resposta: até quando?
não é a primeira vez. a ghost bike da julie fica a cerca de 100 metros da ghost bike da márcia prado, também assassinada por um motorista de ônibus há 3 anos.
motoristas parecem não entender que dirigem uma máquina pesada, que mata. como fazê-los entender o óbvio?
pois uma multidão de pessoas reuniu-se na praça do ciclistas. quantos? estimo em pelo menos 500 pessoas, senão mais, bem mais.
todos amigos e conhecidos de julie? talvez não. mas todos movidos por um sentimento de compaixão, de partilha do mesmo risco, de compreensão do risco que estamos sujeitos não por nossa culpa, mas pela desídia, pelo descaso, pela negligência, que não é apenas de motoristas, mas também do poder público, que recusa-se a fiscalizar o trânsito aplicando o artigo 201 do CTB, que determina multa para quem ultrapassa ciclista a menos de metro e meio de distância.
descaso. esse é o termo que se deve aplicar para descrever a omissão do poder público.
ao poder público ciclista de fato não existe, não enquanto ser que trafega. a prefeitura paulistana adora inaugurar ciclo-faixas de lazer, mas pouco faz para efetivar o uso da bicicleta como meio de transporte, legítimo que é.
esse descaso é que permite a ação criminosa de determinados motoristas. que não se esqueça o que aconteceu com a ciclista laura sobenes, quando um motorista de ônibus, confrontado por ter tirado uma fina que quase a derrubou, declara: “você vai morrer e eu só vou assinar um b.o…“
sim, houve um assassinato, como ressaltou logo pela manhã andré pasqualini, falando na rádio cbn.
nos concentramos, e levamos a ghost bike até o local do atropelamento. empurrando as bicicletas. debaixo de uma chuva torrencial e fria, muito fria.
a chuva não desencorajou as centenas de pessoas que por julie ali estavam. chuva fortíssima.
fosse festa, as pessoas sairiam dali. fosse passeio, assim aconteceria. mas não. não era festa. não era passeio. eram os nossos rituais de luto. rituais de luto necessários, e que aconteceram inobstante a tempestade.
vivemos num eterno “quase”, estamos tão acostumados a usar o “quase” no começo da frase…. “quase caí”, “quase fui atropelado”, “quase morri”… hoje faltou o quase no começo da frase.
este não é um post que eu gostaria de escrever, e não é algo que seus tantos amigos queiram ler. amigos que hoje plantaram cerejeiras em homenagem à julie, e debaixo de uma tempestade levaram sua ghost bike até o local de sua morte, instalaram-na, encheram-na de flores, deitaram no chão molhado.
amigos que compartilham a saudade, a dor da perda, a sensação do risco desnecessário, a vida saudável, e a sensação de que as coisas poderiam ser diferentes, melhores, menos violentas.
julie, vá em paz, você que não foi vítima de uma guerra, pois na guerra há mortos de ambos os lados, e aqui só há mortos do lado de cá. não há guerra no trânsito, apenas massacre.
desculpem o tom emotivo. dói escrever. como escreveu o giba: “Sei que chorar não adianta, mas não consigo não chorar.”