Esta matéria é fruto de um projeto de crowdfunding do DCM
É possível existir algum grau de imprecisão no indicador da queda de 56% do PIB venezuelano em cinco anos. Num país em que a oscilação do valor da moeda nacional chega ao ponto do dólar se tornar corrente em pagamentos de restaurantes, taxis e pequenos serviços, as estatísticas precisam ser permanentemente confrontadas com as ruas.
Caracas está muito mais tranquila do que a grande imprensa brasileira busca apresentar. Ao mesmo tempo, o número de camelôs, cambistas e gente oferecendo variados tipos de serviços explodiu nas ruas centrais.
Essa é a impressão constatada por quem não visitava a capital da Venezuela há seis anos.
A contração econômica atinge empregados e desempregados. “O salário mínimo aqui é de 40 mil bolívares”, conta Stalin Pérez Borges, 68, um dirigente sindical de 1,65 m, pele morena vincada e ex-diretor do sindicato dos trabalhadores da indústria têxtil. Logo, ele emenda: “essa quantia equivale a dois dólares”.
Assim, mesmo quem tem trabalho regular busca um bico qualquer para fazer frente a preços de gêneros de primeira necessidade equivalentes aos do Brasil.
Uma pergunta óbvia é por que não há revoltas populares e saques com tais níveis de carência?
HÁ ALGUMAS COMPENSAÇÕES, admite Stalin. O Estado distribui mensalmente uma cesta básica com macarrão, arroz, farinha de mandioca (brasileira) e, às vezes, óleo, leite em pó e café.
A isso se soma o Carnet de la Patria, cartão eletrônico que concentra diversos programas sociais, entre eles o pagamento de um bônus mensal à semelhança do Bolsa Família brasileiro.
Na semana passada, o presidente Nicolás Maduro anunciou a concessão de um extra de 250 mil bolívares a seus 13 milhões de portadores (em uma população de 32 milhões).
O montante equivale a quase 13 dólares. Se levarmos em conta que o metrô em Caracas é gratuito, bem como a gasolina em todo o país, e que as tarifas de água e luz são irrisórias, constataremos a existência de uma multiplicidade de pequenos benefícios que criam um colchão social ainda que precário para a população mais pobre.
Não é a toa que centenas de pessoas aglomerem-se em filas monumentais na praça Bolívar, centro da capital, para renovar seus dados do carnê.
Uma pesquisa abrangente realizada no final de julho pelo Instituto Datanálisis com 800 pessoas de estratos sociais diversos mostra que carestia, inflação elevada e baixos salários são as maiores preocupações da população.
Um total de 72,3%% têm tais questões em mente, seguida pela crise econômica (36,2%), falta de segurança (33,9%) e saúde (32,4%). Embora vinculado à oposição, as sondagens do Datanálisis são levadas seriamente em conta pelos círculos oficiais.
A POPULARIDADE DO GOVERNO DESABOU. Para 54,4% dos venezuelanos, Nicolás Maduro é o principal responsável pela crise e 85,1% consideram sua gestão ruim ou péssima.
“As pessoas estão revoltadas, mas não veem saída na oposição”, sublinha Edgardo Lander, ex-professor de sociologia na Universidade Central da Venezuela e intelectual reconhecido internacionalmente. “Não há resposta econômica para a crise atual. Tivemos a queda dos preços do petróleo em 2013-14, mas isso não explica tudo”.
Lander aponta o sucateamento da PDVSA, a outrora poderosa estatal de petróleo, produto que responde por 97% da pauta de exportações do país. Segundo ele, o chavismo baseou sua conduta econômica em fenômeno histórico recorrente.
“É o de aumento exagerado do gasto proveniente de tempos de preços altos no plano internacional, sem se preocupar em capacitar permanentemente a empresa com uma política eficiente de inovação tecnológica e treinamento de quadros técnicos. “A PDVSA chegou a extrair 3,2 milhões de barris diários de petróleo no início da década passada.
Hoje retira do solo algo como 750 mil barris”, destaca. E os ingressos de petrodólares caíram, além de tudo porque a China adiantou pagamentos sob a forma de empréstimos já desembolsados em sua maior parte nos anos críticos dos preços baixos.
APESAR DA REJEIÇÃO A JUAN GUAIDÓ (46,9%) ser muito menor, sua capacidade de mobilizar pessoas caiu, após seus fracassos em 23 de janeiro, quando tentou forçar uma entrada de suposta ajuda humanitária no país – amparado pelos governos Trump, Bolsonaro, Macri, Ivan Duque e Piñera -, e em 30 de abril, quando incentivou um levante militar com o objetivo de golpear Maduro.
As consequências de tais atos se expressam também nas pesquisas. Um total de 59,9% se coloca contra uma invasão militar externa para derrubar o governo (em abril, a marca estava em 47,6%, o que demonstra desgaste acentuado de sua liderança).
A EXTREMA POLARIZAÇÃO vivida pelo país faz com que nenhum líder tenha plenas condições de se apresentar como alternativa a Maduro, seja na oposição e seja no governo. O presidente conta com um apoio adensado em 12, 9% da população. “Trata-se de um contingente que não apenas o aprova, mas sai às ruas e vai à luta em sua defesa”, atenta Lander.
Não há a possibilidade de o governo cair no curto prazo, por mais problemas que tenha o país. Com os sucessivos fracassos de Juan Guaidó, o Departamento de Estado dos EUA já não o sustenta com tanta ênfase quanto há alguns meses.
Qualquer saída para os impasses venezuelanos se darão num quadro de retração econômica da América Latina – atentar para as situações do Brasil e da Argentina – e de aumento das tensões sociais.
A grande incerteza aqui é exatamente sobre o que negociar num quadro em que a oposição não quer outra coisa que não a derrubada do governo e este acusa enfaticamente seus representantes de golpistas a serviço dos EUA.
Um jogo de soma zero.