O texto abaixo é de Lou-Ann Kleppa, professora de Linguística da UNIR, Universidade Federal de Rondônia.
O modelo de desenvolvimento adotado no Brasil aposta no trânsito por vias asfaltadas (ao invés de apostar na malha ferroviária, por exemplo) e na produção de energia elétrica a partir de usinas hidrelétricas. O detalhe é que o Brasil não é um país pequeno, nem homogêneo.
Quem observar o mapa rodoviário do Brasil notará que o litoral, sul e sudeste são bem servidos de estradas, ao passo que o Norte conta com poucas linhas (não as azuis, que representam os rios) no mapa. A mancha verde que se vê no mapa é muitas vezes interpretada como sendo uma representação de árvores, nunca de gente (em torno de 30 milhões de pessoas habitam a Amazônia Legal).
Em Rondônia, o observador atento perceberá que as maiores cidades do estado (exceto Rolim de Moura e Guajará-Mirim) estão distribuídas ao longo da mesma estrada: a BR 364 que sobe até Porto Velho e faz uma curva para oeste, acompanhando o Rio Madeira em direção ao Acre.
Na fronteira com a Bolívia, há uma bifurcação: a BR 364 segue a oeste, enquanto a BR 425 desce para Guajará-Mirim – e termina ali. Entre a usina de Santo Antônio e a de Jirau, ambas no Rio Madeira, tudo está alagado, interditando o acesso por terra à bifurcação mencionada, isolando assim o estado do Acre e Guajará-Mirim do resto do Brasil pela via terrestre.
Recentemente lograram reabrir a BR 421 (paralela à BR 364), que não está pavimentada porque as obras tinham sido interditadas através de ação judicial impetrada pelo Ministério Público Federal de Rondônia no início deste mês, já que a estrada atravessa o Parque Estadual de Guajará-Mirim – que é área de proteção integral e residência de índios da etnia Karipuna e índios isolados (sem contato). Como se vê, a Floresta Amazônica nunca foi desabitada.
O modelo de desenvolvimento que aposta na locomoção por vias asfaltadas se efetiva aqui na Amazônia apenas pelo consumo de veículos automotores. Há um mínimo de infraestrutura (que se deteriora com o tempo, porque não há manutenção nem finalização de obras viárias) para um número crescente de veículos motorizados. A opção de locomoção entre o Acre/Guajará-Mirim e Porto Velho seria Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – que foi abandonada há quase um século.
O crescente consumo de veículos poluentes tem um grande impacto sócio-ambiental. Segundo o autor do Mapa da Violência 2013, Julio Jacobo Waiselfisz (que analisa dados coletados até 2011), a taxa de mortalidade no trânsito em Rondônia cresceu 80,1% entre 2001 e 2011. Em 2011, Rondônia aparece em segundo lugar no ranking dos estados em que mais morreram motociclistas (18,6 em 100 mil habitantes) vítimas de acidentes de trânsito no Brasil e em terceiro lugar no ranking dos estados em que mais morreram ciclistas no trânsito (3,2 em 100 mil habitantes).
Já que as bicicletas não são registradas (nem se paga licença anual), não há dados que comprovem se a frota de bicicletas aumentou ou diminuiu ao longo dos anos. A frota de motocicletas, em contrapartida, aumentou expressivamente: conforme o Anuário Rondônia 2012, disponibilizado pelo Detran-RO, a frota de motocicletas praticamente quadriplicou entre 2003 e 2012.
Em Porto Velho, especificamente, a taxa de óbito por acidentes de trânsito aumentou 122,9% entre 2001 e 2011. Em 2011, Porto Velho ganhou a primeira posição das capitais com a maior taxa de óbito em acidentes de trânsito por 100 mil habitantes: 56. Conforme o Mapa da Violência 2013, a tendência observada nas outras capitais é que a violência no trânsito seja menor nas capitais que no estado, em virtude de campanhas educativas, fiscalização do trânsito e uma série de medidas para acalmar o tráfego.
Não há radares fiscalizadores de velocidade na cidade de Porto Velho, a frota de agentes fiscais no trânsito é insuficiente (o mais comum é que ocorram blitzes específicas para controlar motociclistas) e o Dia Mundial Sem Meu Carro na Cidade (22 de setembro) de 2011 não contou com campanhas de educação para o trânsito, mas foi comemorado com plantio de árvores nas imediações do aeroporto.
Consultando o Anuário Porto Velho 2012, também disponibilizado pelo Detran-RO, pode-se verificar que a frota de automóveis, caminhonetes, utilitários e motos aumenta exponencialmente a partir de 2007. Neste ano, havia 0,32 automóveis por habitante em Porto Velho, índice maior que aquele registrado para o Brasil (0,13) e para a capital de São Paulo (0,22). A construção da usina de Santo Antônio foi iniciada em 2008, a de Jirau em 2009.
Essas duas são as primeiras usinas a fio d’água construídas em rios amazônicos – que apresentam características peculiares, como por exemplo uma enorme carga de sedimentos. É sabido que o Rio Madeira tem a maior carga sedimentária do mundo. Philip Fearnside, renomado pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) que disponibilizou em seu site uma resposta dada, mas não publicada pelo Jornal A Crítica, de Manaus, afirma que “os sedimentos amontoados, justamente no início do reservatório em Abunã [a montante da usina de Jirau, na fronteira com a Bolívia], devem represar a água rio acima, aumentando a inundação [na Bolívia].”
As outras usinas construídas em rios amazônicos pressupõem um grande reservatório e queda d’água – o que não combina com a topografia local, que é bastante plana. Nesse sentido, Samuel foi a maior catástrofe ecológica e econômica planejada e executada pelo setor elétrico no país: a água foi se espalhando pelos lados e tiveram que conter a água com diques.
Comparada com Samuel, a usina a fio d’água se apresentou como única opção. Mas usina hidrelétrica não é a única opção para se produzir energia elétrica no Brasil, assim como vias asfaltadas não são a única opção para o transporte no Brasil.
Outra peculiaridade dos rios amazônicos é de ordem sistêmica: na estação das chuvas (novembro a março), os rios enchem; na estação da seca, formam-se “praias” (bancos de areia), inclusive no rio Madeira, maior afluente da margem direita do rio Amazonas. Para direcionar o volume variável de água para as turbinas das usinas, Santo Antônio e Jirau possuem reservatórios – que não são pequenos.
O reservatório de Santo Antônio foi dimensionado para alcançar 271 km2 e o de Jirau foi projetado para medir 302,5 km2. Retomando as palavras de Fearnside, “se os níveis dos reservatórios tivessem sido rebaixados ao máximo para aproximar-se do rio natural, a inundação lateral teria sido menor.”
Isso significa que “a inundação de vários trechos da rodovia BR-364 beirando os dois lagos [formados pelas hidrelétricas] também deve ter sido agravada pela presença das barragens.” Os especialistas estão dizendo, portanto, que houve retenção de água por parte das usinas (no intuito de produzir mais energia).
Uma usina de fio d’água que pode ser tomada como referência é a do Danúbio, em que há dez turbinas. Santo Antônio tem projeção para funcionar com 44 turbinas – e se tivesse autorização para elevar a cota (nível do rio), a perspectiva era de aumentar mais 6 turbinas. Jirau tem projetadas 50 turbinas. Estes números são tão assustadores quanto os números de vítimas fatais no trânsito de Porto Velho.
Alternativas para locomoção e geração de energia verdadeiramente limpa existem, mas são mantidas como inalcançáveis diante do modelo importado que se pretende implantar aqui – e parece funcionar tão bem fora da Amazônia, mas aqui gera impactos irreversíveis.