Publicado originalmente na Amazônia Real:
Por Kátia Brasil e Emily Costa
Uma equipe de agentes da Polícia Federal foi recebida a bala no rio Uraricoera, um dia após garimpeiros integrantes do PCC atacarem também a tiros indígenas Yanomami. Informes recebidos pela agência Amazônia Real de distintas fontes, ao longo desta terça-feira (11), revelam como está sendo tensa a relação de traficantes ligados à facção criminosa de São Paulo dentro dos garimpos de extração ilegal de ouro na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A violenta recepção surpreendeu até mesmo os agentes federais.
“A equipe se abrigou e respondeu à injusta agressão [desta terça-feira] sem, contudo, haver registro de atingidos de nenhum dos lados”, informou, em nota, a PF.
“Não é normal garimpeiros atirarem contra a Polícia Federal.” Esta última informação é de um agente ouvido pela reportagem, que confirmou que o órgão investiga a participação de facções nos garimpos no ataque da véspera aos indígenas Yanomami da aldeia Palimi ú.
Mas esse agente fez questão de distinguir a origem do ataque que a equipe da PF sofreu com o conflito entre garimpeiros e Yanomami. “Possivelmente deve ser uma ação de vingança pela possível morte de seus pares”, disse.
A PF foi além e informou que nos dois ataques, os de segunda-feira (contra os Yanomami) e de terça-feira (contra seus agentes), não foram registrados óbitos em nenhum dos lados. “A PF não confirmou mortes, até porque não encontramos corpos”, disse a assessoria de imprensa do órgão.
O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye ́kuana (Considi-Y), Junior Hekurari, havia relatado que, no ataque de segunda-feira, três garimpeiros morreram, cinco foram baleados e um Yanomami ficou ferido. Segundo ele, os corpos foram levados pelos garimpeiros para o acampamento onde eles trabalham.
Nesta terça-feira, Junior Hekurari voltou à comunidade Palimi ú, acompanhando os agentes da PF. Ele testemunhou o momento dos novos ataques dos garimpeiros. “A gente estava indo para posto de saúde onde o avião estava nos esperando [para voltar para Boa Vista]. Aí os garimpeiros vieram com os motores desligados. Chegando na comunidade começaram a atirar na direção do povo Yanomami. Depois viram a PF e também contra eles”, relatou à Amazônia Real.
Garimpeiros apoiadores de Jair Bolsonaro alegaram, também nesta terça-feira, que o conflito na aldeia Palimi ú começou porque os indígenas atiraram primeiro e seriam motivados por ONGs internacionais. Eles confirmaram que facções brasileiras e da Venezuela já estão dentro dos garimpos. A faccão venezuelana seria o Trem de Arágua. Mas negaram a ligação de garimpeiros com o PCC no conflito da aldeia Palami ú (Leia mais no final do texto).
Um número estimado em mais de 26 mil garimpeiros invadiu a Terra Indígena Yanomami para realizar a extração ilegal de ouro. A região, onde o Exército brasileiro mantém o 4º Pelotão de Fronteira em Surucucu, é alvo de mineradores, empresários, políticos e garimpeiros de várias partes do Brasil desde a década de 1970. Mas o componente “investimento do tráfico de drogas”, segundo uma fonte que conhece a história do garimpo, é algo mais recente e começou com o crescimento do PCC em Roraima, que chegou primeiro pelas unidades prisionais.
PCC fez 12 ataques em Roraima
Em 2017, a facção foi a responsável pelo massacre de 33 presos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. “O PCC cresceu muito e precisou se capitalizar, daí começaram a partir para os garimpos, onde tem o dinheiro fácil”, disse um garimpeiro ouvido pela Amazônia Real, que pediu para não ser identificado.
Segundo a Operação Érebo, da PF, em julho de 2018, o PCC realizou uma série de 12 ataques a prédios públicos, incluindo agências da Caixa Econômica Federal, delegacia e posto da Polícia Militar, em Boa Vista e em outras três cidades de Roraima. Seis meses depois, em janeiro de 2019, o Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) denunciou 44 acusados pelos atentados, todos integrantes da facção.
Contra um deles, que exercia função de comando, a investigação registrou “inúmeros diálogos em que o denunciado discute questões relacionadas à expansão da facção para regiões de garimpo no Estado de Roraima”, conforme transcrição de um trecho da denúncia do MPRR.
Um delegado, ouvido pela reportagem sob condição de sigilo de sua identidade, afirmou que “no caso específico desse garimpo [na TI Yanomami], a gente tem informações de que realmente existem algumas facções tentando dominar a extração de renda para a Orcrim [organização criminosa]”. Segundo ele, a infiltração da facção no garimpo começou “há uns três anos”.
Um garimpeiro, com muitos anos de trabalho em Roraima, confirmou que o PCC está, de fato, agindo na TI Yanomami sob as vistas do governo estadual. “O PCC está controlando até a subida dos rios, exigindo pedágio. Tem bandido demais. O governo não regulamenta a compra de ouro, aí fica sem [o garimpeiro] para quem vender, acaba sendo aliciado por esses criminosos e traficantes. Isso é uma pouca vergonha”, disse ele, que pediu para não ter o nome revelado, pois teme represálias dos traficantes.
Já um segundo garimpeiro que atua com as famílias desses trabalhadores afirmou que membros da facção PCC atuam pelo rio baixo Uraricoera e Alto Parima. “Então são essas duas regiões que mais tem produzido ouro. Eles trabalham com balsas e máquinas de barranco e mais lá em cima no Alto Parima. Mas quem domina lá é o PCC”, garantiu ele, outro com nome preservado. “Hoje não é mais só ser garimpeiro que vai entrar lá e dizer que vai trabalhar sem a permissão dele, que quem domina lá é a facção.”
A presença da facção do tráfico de drogas nos garimpos da TI Yanomami tem deixado muitos trabalhadores apreensivos ou com medo. “Olha, eu digo pra eles: ‘isso é problema de governo do estado, prefeito de município e do próprio governo federal. Eu não tenho poderes para isso e nem vou me comprometer. Primeiro, eu não tenho poder, e não tenho armas para brigar com esse pessoal e você sabe que eles são criminosos, que estão prejudicando a cada dia mais os próprios garimpeiros e os índios, e tão querendo tomar dos índios as próprias aldeias deles, as próprias lideranças deles lá”, disse o garimpeiro que atua com as famílias dos trabalhadores da atividade de mineração.
Bolsonaristas falam de facções
Um dia após o ataque na TI Yanomami, organizações ligadas à extrema direita e ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se apressaram em desmentir a possível participação de garimpeiros ligados ao PCC. Isso porque o conflito pode estragado os planos do presidente. Ele já sinalizou que planeja realizar uma viagem para Roraima para visitar a região do Cotingo, onde existe um projeto antigo de construção de uma hidrelétrica, contestada pelos indígenas Macuxi e Wapichana, além de uma área de extração de minério.
Em entrevista à Amazônia Real, Jailson Mesquita preferiu responsabilizar organizações não-governamentais internacionais pelo clima de tensão na região. Ele falou como coordenador do Fórum de Roraima, uma organização que tem representantes de associações e cooperativas de garimpeiros, e partidos políticos de extrema-direita e centro-direita, entre eles o Avante, da base do governo Bolsonaro.
“O conflito não foi com facção. Essa situação foi provocada depois que dois aviões de ONGs chegaram na aldeia Palimi ú, que é conhecida como ‘Americana’. Eles [os indígenas] tinham uma boa relação com os garimpeiros. Pediam armas para os garimpeiros, cobraram 600 reais por cada canoa atravessar o rio. De uma hora para outra, o comportamento desses indígenas mudou. O conflito foi orquestrado pelas ONGs. Eles aumentaram a passagem das canoas para 2 mil reais. Depois eles [os indígenas; não aceitaram mais nada”, disse.
Na versão de Mesquita, antes do conflito os indígenas da aldeia Palimi ú “estavam com o ânimos acirrados”. “Quando os garimpeiros chegaram para dialogar, foram recebidos a bala. Se os garimpeiros tivessem com fuzil 7,62 não tinha jeito, tinham matado, no mínimo, dez pessoas. Eles [os indígenas] atiraram primeiro”, afirmou.
Para Mesquita, a Polícia Federal tem que apresentar os responsáveis pelo crime. “Os garimpeiros alegam que levaram armas de caça e revólveres calibres 38, 22. Eles estão errados também. Aqui ninguém vai proteger. A Polícia Federal deve penalizar quem cometeu esse tipo de crime, que é um atentado contra a vida.”
Perguntado sobre a infiltração de facções criminosas, entre elas o PCC, nos garimpeiros da TI Yanomami, Jailson Mesquita desconversou: “Essa questão aí é a mesma questão de você me perguntar quantos evangélicos têm no garimpo. O membro da facção não anda escrito na testa e nem ele sai apresentando carteira de identidade”.
Mas o coordenador do Fórum de Rondônia confirmou que há membros de facções na TI Yanomami. “Eles [os garimpeiros de facções] foram pra lá como qualquer trabalhador. E lá [na TI Yanomami] não existe essa questão que eles estão demarcando território. Inclusive lá eles convivem como qualquer outro garimpeiro comum”, disse.
“Eles têm uma relação como qualquer outra classe social. Eu até estranho essa questão aí [da facção do PCC], porque a história é totalmente ao contrário. A imprensa, me permita uma crítica, jamais quis dar a atenção para o problema. Antes de haver esses garimpeiros aqui, as facções venezuelanas atravessavam a fronteira, inclusive a Guarda Nacional da Venezuela, armados e de helicópteros, assaltavam os garimpeiros do lado brasileiro e nunca ninguém abriu a boca para falar sobre isso”, disse Mesquita.
Relatos assustadores
Conforme revelado com exclusividade na segunda-feira pela Amazônia Real, a chegada do PCC na conflagrada área de garimpo na TI Yanomami trouxe variantes até então ignoradas pelas autoridades. E com potencial para tornar a situação insustentável para os indígenas. As distintas e até contraditórias versões nos relatos acima mostram a intrincada e delicada realidade enfrentada pelos Yanomami, que nunca estiveram tão ameaçados quanto agora.
Diante de uma situação que se agrava a cada hora, é compreensível que a maioria das fontes ouvidas pela Amazônia Real, entre agentes públicos, garimpeiros e indígenas, tenham pedido para não ter seus nomes revelados. A chegada de forças policiais só fez a tensão aumentar.
“Há relatos assustadores sobre a relação milícia, armamentos pesados e conflitos internos entre essas facções, que subiram o Uraricoera com metralhadoras, roupas do Exército para acertarem as contas e matarem outros garimpeiros”, informou um servidor ligado à saúde indígena Yanomami, que pediu para não revelar seu nome por medo.
A Terra Indígena Yanomami possui um alto índice de doenças como o novo coronavírus, a malária e a desnutrição. Os garimpos ilegais devastam as florestas e, segundo especialistas, o aumento das doenças tem relação com esse tipo de invasão. O território tem mais de 9,4 milhões de hectares entre os estados do Amazonas e de Roraima. Como se os problemas já não fossem suficientes, em 2020, o Ministério da Defesa levou lotes de comprimidos de cloroquina para os Yanomami.
Em resposta à Amazônia Real, o Exército informou que a presença dos militares nas terras indígenas “é benéfica à defesa dos direitos daqueles brasileiros ante a possíveis agressões culturais e físicas”. Disse ainda que, ao ser informado do conflito na TI Yanomami, o Comando Militar da Amazônia (CMA) deslocou um helicóptero para apoiar com logística e segurança a ação da Polícia Federal e da Fundação Nacional do Índio (Funai). “O Exército Brasileiro tem um comprometimento histórico com a unidade nacional e é garantidor, em última instância, da lei e a ordem. Nesse sentido, tem o dever de evitar fissuras no seio da sociedade brasileira”, disse em nota a 7ª Seção de Comunicação do CMA.
Neste ano, a Justiça Federal de Roraima determinou que a União retirasse os invasores do território sob pena de pagamento de multa de 1 milhão de reais. Até o momento, o governo federal ignorou o cumprimento da decisão. “Esse tipo de conflito tem sido alertado pelo MPF em diversos procedimentos, inclusive com ações na Justiça Federal pedindo um plano de retirada de garimpeiros, temendo possível genocídio. A Justiça já até decidiu a favor do MPF e da retirada do garimpo ilegal na TIY”, disse o MPF. Em 2020, em um outro conflito, dois indígenas morreram.