Publicado no Brasil de Fato
Em alguns rincões da China, parece que o surto de coronavírus congelou o tempo. Estações de trem em Xangai e Pequim, normalmente apinhadas de milhões de passageiros voltando das comemorações do ano-novo chinês, estão vazias. Restaurantes, shoppings e espaços públicos, desertos. Não seria possível adivinhar, vendo essa incomum quietude, que, do outro lado do país, as engrenagens da indústria estatal chinesa operam a todo vapor, com a convocação do Partido Comunista da China para suas estatais atenderem à atual crise de saúde pública.
Entre as distorções promovidas pelo Ocidente e a projeção de pautas geopolíticas oportunistas sobre a crise, o coronavírus oferece uma oportunidade de entender a economia política da China: uma economia que se empenha para evitar que os interesses do capital privado ditem a política contra os interesses do povo. A mobilização massiva das estatais do país para combater o coronavírus — incluindo a construção de dois hospitais novos em Wuhan no período de dez dias, a produção e distribuição ágil de suprimentos médicos, a garantia de acesso universal e gratuito a atendimento médico e a mobilização em massa de trabalhadores da saúde pública — são uma demonstração da economia política socialista do país no cenário global.
O vírus, identificado inicialmente em Wuhan e agora com casos confirmados nas 23 províncias do país, jogou a China em uma crise. Na sexta-feira, 31 de janeiro, o governo já havia confirmado um total de 11.821 casos diagnosticados na China continental, com 259 mortes.
Enquanto isso, a cobertura midiática histérica do Ocidente estimula boatos e racismo, e os Estados Unidos proibiram a entrada de cidadãos chineses vindos do país. A racialização do vírus, de forma muito parecida com o que aconteceu durante a epidemia de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), jogou a culpa do surto nas práticas culinárias e culturais “anti-higiênicas” do país, revivendo narrativas que persistem desde o século 19, na era das leis de discriminação e exclusão da população chinesa que se proliferaram pelo Ocidente. Um vídeo de 2016 em particular, mostrando a apresentadora de um programa de viagens Wang Mengyun comendo um morcego em Palau, país insular no Pacífico, passou a circular como se fossem imagens de Wuhan, “provando” as origens exóticas da doença.
Muitas pessoas progressistas do Ocidente condenaram o aumento dos casos de racismo e da propagação de estereótipos contra a população chinesa, principalmente depois que um homem chinês morreu de ataque cardíaco em Sydney, na Austrália, quando os australianos em volta dele, com medo de “infecção”, se recusaram a prestar os primeiros socorros a ele. Mas são poucos os que reconhecem o papel bem maior da hostilidade geopolítica ocidental contra a China na proliferação de desinformação, distorção e enganação na resposta que a mídia ocidental teve.
Vários boatos viralizaram na internet, espalhando que a polícia estava atirando em pacientes nas ruas de Wuhan, que uma obra de um hospital na cidade era uma fachada para uma vala comum e que o próprio governo chinês havia fabricado o vírus. Enquanto isso, a cobertura da mídia hegemônica insiste que o Partido Comunista não está agindo bem diante da crise, escondendo informações e impondo restrições autoritárias sobre os cidadãos.
A imprensa tem se concentrado principalmente em denúncias de que oito médicos de Wuhan já sabiam sobre o vírus semanas antes da divulgação de sua existência, mas foram silenciados por membros do partido. O erro foi admitido pelo prefeito e o secretário do partido em Wuhan, ambos alvos de críticas dos altos escalões do partido, e inclusive do Supremo Tribunal Popular da China. Mas essa anedota vem sendo apresentada como uma acusação a todo o sistema político chinês, prova da falta de legitimidade do Partido Comunista da China. Como afirmou o colunista do The New York Times Nicholas Kristof, o mundo agora está “pagando pela ditadura chinesa”. Outro veículo estadunidense, The Washington Post, também classificou os esforços da China para conter o vírus como “um oferecimento do autoritarismo”. Com total falta de empatia pelo sofrimento chinês, o Secretário de Comércio dos EUA, Wilbur Ross, disse torcer para que o surto “ajude” a levar empregos de volta para os Estados Unidos.
Curiosamente, nenhuma cobertura ocidental mencionou que o prefeito e o secretário do partido em Wuhan admitiram publicamente o erro em declarações para a imprensa e entrevistas para programas de TV populares, e que o partido deixou claro que, sem nenhuma sombra de dúvida, exigiriam transparência total e divulgação de informações.
“De muitas formas, a China está definindo um novo padrão de resposta a surtos”, declarou o diretor-geral da OMS.
No outro extremo, a Organização Mundial da Saúde não faz outra coisa que não enaltecer a resposta chinesa à crise. Conforme declarou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, “o governo chinês deve ser parabenizado pelas medidas extraordinárias adotadas para conter o surto, apesar do impacto econômico e social grave dessas medidas sobre a população chinesa”.
Por ousar aplaudir a China, Ghebreyesus passou a enfrentar acusações implacáveis de que está sendo pago pelo Partido Comunista — alegações que começaram quando a organização simplesmente se recusou a declarar o surto como uma “emergência global de saúde” no dia 23 de janeiro, considerando, em vez disso, que o risco era eminentemente interno ao país asiático. Quando novas transmissões do vírus foram confirmadas nos EUA, no Japão e em outros países, a OMS revisou a designação e, aí sim, passou a declarar o caso como uma emergência global. Mesmo assim, o diretor-geral destacou que isso não significa “um voto de não confiança na China”. “Pelo contrário, a OMS continua a ter confiança na capacidade chinesa de controlar o surto”, afirmou.
Ghebreyesus ressaltou que a agilidade e eficiência com que a China detectou o problema, isolou o vírus, sequenciou o genoma e compartilhou as informações com o mundo foram “extraordinárias”, assim como seu compromisso “com a transparência e o apoio a outros países”. O diretor da Organização Mundial da Saúde acrescentou ainda que, “de muitas formas, a China está definindo um novo padrão de resposta a surtos”.
Esse novo padrão que recebeu elogios legítimos da OMS é, efetivamente, uma afirmação do poder e da eficácia da economia política socialista da China. Antes de mais nada, o coronavírus do Partido Comunista é prova de seu ethos incessante de “servir o povo”. Em uma entrevista coletiva comovente no dia 29 de janeiro, Zhang Wenhong, chefe da Equipe de Especialistas em Tratamento Médico de Xangai, anunciou a substituição de médicos civis nas linhas de frente por funcionários do partido. Elogiando os esforços dos socorristas, Wenhong afirmou que “não devemos abusar de pessoas zelosas como elas” e que os membros do partido fizeram um juramento de servir a população que agora precisava ser cumprido. O diretor-geral da OMS também elogiou o conhecimento detalhado do presidente Xi Jiping sobre o surto e o fato de que Ma Xiaowei, diretor da Comissão Nacional de Saúde da China, estava na linha de frente orientando a resposta em Wuhan.
Mas a capacidade da China de responder a essa crise de saúde pública de grandes proporções é prova da realidade do socialismo de características chinesas: embora tenha uma economia de mercado híbrida, o Partido Comunista detém o controle de indústrias estratégicas e, ao contrário de sociedades capitalistas como os Estados Unidos, se mantém independente dos interesses do capital privatizado.
A capacidade da China de responder a essa crise de saúde pública de grandes proporções é prova da realidade do socialismo de características chinesas, em que o partido responde ao povo, não aos interesses do capital privado.
A resposta do partido ao coronavírus deixa isso claro: o Ministério do Comércio está supervisionando a coordenação do mercado regional para garantir o fluxo de produtos essenciais, como grãos, carne e ovos para a província de Hubei e, ao mesmo tempo, coordenando a produção e distribuição de máscaras e outros produtos médicos. As plataformas de comércio eletrônico chinesas proibiram o aumento de preços de máscaras n95 e outros itens necessários. O governo prometeu subsídios para cobrir as despesas médicas de todos os pacientes diagnosticados com coronavírus. O governo de Hubei fez compras massivas para garantir o fornecimento adequado de máscaras, e a empresa estatal de engenharia civil deu início à rápida construção de dois hospitais de emergência para garantir quarentena em Wuhan. A estatal de energia elétrica China State Grid (国家电网) contribuiu com mais de 110 milhões de yuans (R$ 67 milhões) em dinheiro e recursos físicos para a construção de infraestrutura elétrica para atender hospitais em Wuhan, anunciando também que o fornecimento de energia estaria garantido para os moradores de Hubei durante a quarentena, mesmo que eles não pudessem pagar. E a lista segue.
Talvez o mais importante seja que os profissionais da saúde do país foram rápidos em isolar e sequenciar o genoma do coronavírus, e divulgaram a sequência imediatamente para a comunidade internacional. Em outro baque para a economia, o partido anunciou a extensão do feriado do ano-novo chinês até 2 de fevereiro, em um esforço para que os trabalhadores ficassem mais tempo em casa e contivessem a propagação do vírus.
É possível imaginar como a resposta ao coronavírus seria diferente em um contexto capitalista: pacientes infectados sem condições de pagar pelo tratamento e pobres demais para faltar ao trabalho, aumento de preços e escassez de máscaras e outros itens para aumentar lucros, empresas médicas patenteando sequências genéticas e tratamentos que poderiam salvar vidas. De fato, a Organização Mundial da Saúde quase afirmou isso: Tedros deixou claro ao anunciar a emergência global de saúde que sua principal preocupação não é o que está acontecendo na China, mas os impactos do vírus se ele começar a se espalhar para países com “sistemas de saúde mais fracos”.
Enquanto nações capitalistas como Alemanha, Japão e os Estados Unidos evacuam seus cidadãos de Wuhan (contrariando a recomendação de autoridades chinesas), ainda é incerto se esses Estados, onde imperam as indústrias privatizadas na saúde, na construção, no setor farmacêutico, alimentício, de transportes e de recursos, terão capacidade de lidar com uma possível disseminação do vírus. Inclusive, durante o surto da gripe H1N1 em 2009 nos Estados Unidos, 250 mil pessoas foram infectadas e hospitalizadas e 12 mil morreram, enquanto o país tinha pouquíssima estrutura para lidar com a crise e centenas de milhares de pacientes tiveram que enfrentar os altos custos do tratamento médico.
A resposta de Hong Kong à crise, por exemplo, pode ilustrar as diferenças entre a ação do Partido Comunista da China e de uma sociedade capitalista. Em Hong Kong, onde é notório o caráter neoliberal do Estado e da estrutura econômica e onde imperam políticas de livre mercado, o governo foi criticado por não conseguir garantir produção suficiente de máscaras, mobilização adequada de trabalhadores da saúde nem manutenção da estabilidade social.
A produção de máscaras de Hong Kong depende de empresas privadas e mão de obra de pessoas presas. O pandemônio começou quando as pessoas imploraram por máscaras em lojas privadas que estavam especulando com o preço dos produtos. Recentemente, o principal secretário de Hong Kong anunciou que a região receberá máscaras produzidas nas fábricas na China continental e obrigará os presos da Instituição Correcional de Lo Wu a trabalharem sem folga e virando a noite para dar conta da demanda. Em contraste, são empresas estatais as responsáveis pela produção chinesa, o que permite o aumento rápido da produtividade com garantia de controle de preços e distribuição para a população.
Curiosamente, em vez de discutir a economia privatizada, as políticas de livre mercado, a ausência de uma produção nacionalizada e o enfraquecimento do poder do governo de Hong Kong como problemas centrais na incapacidade da cidade de tratar a crise, a população desencadeou uma nova onda virulenta de xenofobia, pedindo a renúncia do diretor-geral da OMS pelos elogios feitos ao sistema de saúde e a infraestrutura chinesa, exigindo que apenas moradores de Hong Kong (e não trabalhadores migrantes da China continental e do sudeste asiático) possam comprar máscaras, culpando a “autocracia” e o “autoritarismo” chinês pela crise e incendiando um prédio que havia acabado de ser construído para abrigar pacientes em quarentena.
Embora haja quem distorça a situação para culpar a China por “descaso” com Hong Kong durante a crise, a realidade é que o sofrimento humano na economia neoliberal da região é resultado não do suposto autoritarismo chinês, mas das proteções capitalistas ao livre mercado garantidas e exercidas sobre a China pelo Reino Unido durante as negociações para o “retorno” do território. Talvez a integração de Hong Kong ao sistema político e econômico chinês, condenado com veemência como “imperialista”, pudesse ajudar a aplacar alguns desses problemas.
A insistência da mídia ocidental em distorcer e explorar o temor do coronavírus para atender a sua própria pauta geopolítica é prova do quanto ela está disposta a promover a narrativa do “mundo contra a China”.
Nossa solidariedade está com as inúmeras famílias, trabalhadoras e trabalhadores, cidadãs e cidadãos de Wuhan e de outros lugares que encontraram momentos de alegria, celebração e resiliência em meio a comemorações de ano-novo, marcadas pela crise. Em última análise, o Partido Comunista da China e os trabalhadores de todo o país inspiram grande confiança na capacidade de conter o coronavírus. De fato, quando a batalha terminar e o mundo estiver seguro, teremos que agradecer ao socialismo.
*Qiao é um coletivo que promove a interlocução da esquerda dos Estados Unidos com o trabalho e o pensamento marxista chinês