Escrever sobre filosofia aplicada ao dia a dia foi uma das tarefas mais divertidas de minha carreira. Eu tinha uma coluna na revista Vida Simples. O nome era autoexplicativo: “Os Sábios e Nós: como eles podem nos ajudar”. Revi, há pouco, alguns dos textos. Publico abaixo um deles. É um elogio da imprevidência. Há aí algo de provocador, mas existe bem mais que isso. Faça sua previdência, cuide da poupança, mas não se deixe esmagar por preocupações sobre o futuro. O texto:
O sábio é um imprevidente. Vive apenas o dia de hoje. Não pensa no futuro. Não planeja nada. Não se atormenta com o que pode acontecer amanhã. Eis um conceito comum a quase todas as escolas filosóficas: o descaso pelo dia seguinte. Mesmo em situações extremas.
Conta-se que um filósofo da Antiguidade, ao ver o pânico das pessoas com as quais estava num navio que chacoalhava, sob uma tempestade, apontou para um porco impassível e disse: “Não é possível que aquele animal seja mais sábio do que todos nós.” Era possível, sim.
O futuro é fonte de inquietação permanente para a humanidade. Daí a recomendação reiterada dos filósofos para que o tiremos da cabeça para nos concentrar apenas no presente – tememos perder o emprego, tememos ser traídos numa relação amorosa, tememos perder o cabelo e ganhar rugas. Tememos, para resumir, o colapso dos nossos planos. É mais inteli-gente, portanto, dada a deletéria carga de aflições associada ao planos, simplesmente não tê-los. O medo do dia de amanhã impede que se viva o dia de hoje. A imprevidência é uma das maiores marcas da sabedoria, escreveu Epicuro.
Neste ponto a filosofia ocidental encontra eco em outras tradições. A essência do zen budismo é viver o que se consagrou como o aqui, agora. No zen, martela-se o conceito de que o passado, como ficou para trás, já não existe. E o futuro, como ainda está por chegar, também não. Vivamos o presente, então. No cristianismo essa idéia também é potente. Uma das passagens mais líricas e belas do Novo Testamento afirma que a cada dia bastam seus problemas. É nessa passagem célebre que Jesus, aos que se inquietavam com o futuro, cita os lírios do campo, tão calmos, tão calmos em sua beleza deslumbrante. E afirma que nem Salomão, “em toda a sua magnificência”, se vestiu como qualquer um deles.
Somos tanto mais serenos quanto menos pensamos no futuro. Como tantas outras coisas, é mais fácil escrever essa frase do que praticá-la. Mas um bom ponto de partida para todos nós é refletir sobre ela. Vivemos sob o império dos planos, quer na vida pessoal, quer na vida profissional, e isso traz muito mais desassossego do que realizações. O mundo neurótico em que arrastamos nossas pernas trêmulas de receios múltiplos deriva, em grande parte, do foco obsessivo no futuro. E não estamos falando num futuro paradisíaco, mas num amanhã cheio de trevas e riscos e perdas. Há um sofrimento por antecipação cuja única função é tornar a vida mais áspera do que já é.
Epicuro, como já foi dito, saudou a imprevidência como um gesto essencial de sabedoria. Volto a ele. Epicuro, numa sentença que o tempo fez antológica, disse que nunca é tarde e nem cedo demais para filosofar. Para refletir sobre a arte de viver bem, ele queria di-zer. Para buscar a tranquilidaqde da alma, sem a qual mesmo tendo tudo nada temos a não ser medo, medo e medo. Também nunca é tarde demais e nem cedo demais para lutar con-tra a presença descomunal e apavorante do futuro em nossa vida. O homem sábio cuida do dia de hoje. E basta.