Um caso trágico ocorrido em Novo Hamburgo, RS, ilustra à perfeição o estrago que o fundamentalismo evangélico faz no Brasil, muito além da bancada da Bíblia.
O delegado Moacir Fermino, da Polícia Civil, que investigava a morte de duas crianças esquartejadas, afirmou que havia solucionado o crime por causa de uma “revelação de Deus”.
Em entrevista à Rádio Gaúcha, contou que profetas teriam indicado os caminhos para a investigação, apontando quem ele deveria ouvir. Não por acaso, mandou prender o líder de um templo de umbanda, Silvio Rodrigues.
Rodrigues foi libertado na semana passada, após mais de 40 dias preso sem provas. Ele contou sua história à Rádio Guaíba:
Ainda não havia se passado 12 horas desde que Silvio Rodrigues tinha deixado a prisão, quando ele conversou com a reportagem da Rádio Guaíba expondo sua rotina nos 40 dias em que ficou confinado e como enxerga o erro cometido pela Polícia Civil, que acabou o prendendo erroneamente.
Segundo ele, a busca por respostas acontece até hoje e não sabe quem vai pagar pelos danos causas à sua vida e de sua família.
Há 40 dias, exatamente no dia 27 de dezembro de 2017, Sílvio estava em casa na companhia da família, no templo em que reside/trabalha em Gravataí, quando três carros da Polícia Civil se aproximaram e Moacir Fermino, delegado responsável pela investigação da morte de duas crianças em Novo Hamburgo, afirmou que “era Deus e estava indo prender Satanás”, referindo-se a Rodrigues.
“Por muitas horas fiquei sem entender o que estava acontecendo, quando recebi aquele mandado e ouvia as palavras do delegado dizendo que eu era Satanás. Ninguém me comunicou o motivo da prisão e por qual crime”, lembra.
Já na Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo, Sílvio lembra que viveu os sete dias mais difíceis de seus 44 anos. A falta de higiene da cela onde estava e as poucas informações que recebia, fazia com que ele sentisse como se estivesse entrando em surto psicológico. “Não tenho dúvidas de que psicologicamente estou abalado. Até hoje, 12 horas após ter saído da prisão, é como se não tivesse compreendido ainda tudo que aconteceu e, principalmente, quem vai pagar por todo mal que fez em minha vida e na minha família. Não é de dinheiro que estou falando, é de problemas relacionados principalmente a não ter liberdade nem de sair de cabeça por ameça de morte”, afirma o mestre de magia.
Quando foi encaminhado para o Presídio de Charqueadas, Sílvio começou a ter acesso ao que estava sendo dito sobre o esquartejamento das crianças e sua função no crime. “Eu era chamado de mandante do crime, sendo que eu nunca ouvi falar dessas outras pessoas que foram presas e muito menos das três testemunhas que depois afirmaram estar mentindo. Como ainda não tive acesso ao processo, não consegui saber ainda como que chegaram até meu nome”, esclarece.
O mestre garante ainda que é inadmissível a perseguição religiosa que ainda é feita no Brasil com algumas pessoas. “Como religioso eu perdoo o delegado Fermino, mas não podemos admitir que sejam feitas essas segregações e que erros como esse sejam cometidos simplesmente pelo fato de não aceitar outra crença”, desabafa.
Sílvio Rodrigues entende que o sistema de justiça no Rio Grande do Sul é falho. “Todo mundo foi enganado. A mídia, a população, o Ministério Público, alguns policiais. Isso causa um abalo das estruturas de justiça do nosso Estado. É preciso ter vergonha disso. Sem falar que o assunto foi muito tendencioso e todo mundo comprou essa história e a maneira como ela foi contada. Eu só preciso agora é achar uma forma de respirar”, lamentou.
Sobre a denominação de “bruxo” que foi dada a Silvio, ele esclarece que “somente é bruxo quem faz bruxaria e eu não faço isso. Sou mestre de magia que trabalha uma ramificação da religião africana que é a Umbanda”. Com uma longa trajetória, inclusive internacionalmente, o mestre diz não saber como sua vida será a partir de agora.
“Sou um ser humano, fiz coisas boas durante toda a minha vida, mas quando essa mentira veio à tona nada mais foi lembrado. Virei um criminoso que havia esquartejado duas crianças indefesas e esse pensamento ficou ‘martelando’ na minha cabeça diariamente. Tentei por muitas vezes buscar um norte e tentar pensar que a justiça apareceria, mas a minha vida foi arruinada”, lastima.
Como havia se passado apenas 12 horas desde que deixou o Presídio de Charqueadas, Sílvio garante que não conseguiu conversar com a esposa ainda sobre a possibilidade de mudança de cidade. “É como se eu não tivesse entendido ainda que estou em casa. Os dias que fiquei lá foram terríveis e me fizeram desacreditar de muita coisa. Sofri muito e minha família está sofrendo até hoje. Minha filha volta às aulas e não sei como será o período dela na escola. Preciso primeiro colocar a cabeça no lugar e conseguir enxergar friamente quantos prejuízos essa prisão me causou. Não vai ser fácil limpar o nome, depois de terem destruído ele em tão pouco tempo”, finaliza o mestre.
Sobre o caso
Em 4 de setembro de 2017, duas crianças foram encontradas esquartejadas no bairro Lomba Grande, em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos. As partes dos corpos estavam embaladas em sacolas plásticas e em caixas de papelão em um mato às margens da rua Porto das Tranqueiras.
Segundo a perícia, os corpos são de um menino, entre 8 e 9 anos, e de uma menina, entre 10 e 12. As crianças são irmãs apenas por parte de mãe. Há a suspeita de que elas sejam argentinas, provavelmente da região de Corrientes, e tenham sido trocadas por uma caminhonete roubada.
O suposto ritual teria sido encomendado por dois empresários do ramo imobiliário para atrair prosperidade aos negócios. Os homens, de Novo Hamburgo, teriam pago R$ 25 mil à vista para o bruxo realizar o sacrifício. O homem mantinha um templo em Gravataí, onde os rituais seriam realizados. Durante escavações no terreno onde fica a casa, foi localizado um fêmur de um animal.
Uma testemunha disse que viu parte do ritual. Segundo depoimento, ao passar pelo local, ela teria avistado as duas crianças usando capuz. Essa pessoa teria informado ainda à polícia o nome dos sete investigados – seis estavam em um círculo durante o ritual. Depois, confessou durante acareação que mentiu.
Justiça decreta liberdade provisória
A Justiça de Novo Hamburgo concedeu na tarde do último dia 04 a liberdade provisória a sete homens suspeitos de terem matado duas crianças em suposto ritual de magia negra, com propósito patrimonial. O pedido foi formulado pelo Delegado Rogério Baggio, responsável pelo caso e recebeu parecer favorável do Ministério Público.
A decisão da Juíza de Direito Angela Roberta Paps Dumerque, da Vara do Júri da Comarca de Novo Hamburgo, se refere aos cinco homens que estavam presos e aos outros dois foragidos.
“Considerando que as decisões que anteriormente decretaram prisões temporárias e preventivas se basearam na investigação policial apresentada e postulação do delegado de Polícia responsável pela investigação à época e neste momento, com o aprofundamento das investigações, se observa que as novas informações angariadas ao feito possuem o condão de derruir o conjunto probatório até então existente, revogo a prisão preventiva e concedo a liberdade provisória”, considerou a magistrada por meio de nota.