Como um tuíte virou uma guerra com milhares de mortos na Ucrânia

Atualizado em 28 de dezembro de 2014 às 11:16

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Publicado na BBC Brasil.

 

O Parlamento da Ucrânia aprovou uma resolução para renunciar ao status de país que não participa de alianças militares. Isto inicia o processo para que o país se converta em um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse que esta decisão é contraproducente e que poderia gerar tensões no futuro.

A tensão entre a Ucrânia e a Rússia, com conflitos em áreas de fronteira e a anexação da Crimeia pelos russos, foi uma das notícias mais importantes de 2014. E o jornalista ucraniano Olexiy Solohubenko, editor de notícias do Serviço Mundial da BBC, analisa o que aconteceu no país durante o ano.

“Imagine que, no México, os moradores do Estado de Yucatán resolvam que não querem ter mais nada a ver com o governo mexicano. Que são diferentes, que falam com um sotaque diferente e têm suas próprias tradições e história.

Além disso, eles convocam um referendo e o governador do Estado de Yucatán se transforma no presidente da República Popular de Yucatán.

E mais: grupos armados estabelecem postos de controle e barricadas. Pessoas morrem. E tudo isso ocorre diante do olhar impassível do resto do continente americano.

Isto pode ser uma fantasia, mas foi exatamente o que aconteceu em 2014 na Ucrânia.

 

E, um elemento adicional aprofunda a diferença entre o caso real e o que estamos imaginando: a presença de uma força externa.

É difícil conceber a possibilidade de que um agente externo possa intervir em uma disputa no México.

Mas, no caso da Ucrânia, isto é real: há um país e um presidente que apoia movimentos separatistas em uma área importante do território. A área a que me refiro é a Crimeia e o presidente é Vladimir Putin, da Rússia.

Terreno fértil

Tudo começou, acredite ou não, com um tuíte de Mustafa Nayem, um jornalista ucraniano famoso, filho de imigrantes afegãos, descontente com o que o então presidente Victor Yanukovich decidiu fazer de última hora: não assinar um acordo de associação com a União Europeia.

A Rússia não queria este acordo e sentia que havia uma possibilidade de a Ucrânia se afastar para sempre da influência do governo de Moscou. E, para evitar tal acordo, os russo injetaram uma quantidade enorme de dinheiro e prometeram ainda mais fundos, algo que Yanukovich aceitou.

Em novembro de 2013, Nayem pediu que seus seguidores no Twitter protestassem na Praça da Independência, conhecida como Maidan. Primeiro, vieram centenas, logo eram milhares… depois eram dezenas de milhares.

Não era o primeiro protesto dos ucranianos.

A tecnologia pode ter mudado, agora existem smartphones, mas o desejo, o espírito era o mesmo de dez anos atrás, na chamada Revolução Laranja.

O protesto tinha como base a não aceitação da manipulação, da intenção de “comprar” o país, fazê-lo voltar para os padrões soviéticos em uma espécie de união com a Rússia.

É importante entender que boa parte dos manifestantes de Maidan pertencem a esta primeira geração que nasceu, cresceu e se educou depois da independência do país. Queriam um novo pacto social que mudasse os conceitos do que é bom e do que é ruim.

Foi neste terreno fértil que caiu o tuíte de Nayem.

A polícia tentou dispersar os manifestantes de forma violenta: mais de cem pessoas morreram em Kiev, no centro de uma capital do continente europeu.

A partir de então começaram as tentativas de acordo, que não conseguiram resultados.

O presidente foi derrotado em algo que a Rússia descreveu como um golpe e os ucranianos chamaram que revolução popular. Foram convocadas eleições, foi eleito um novo presidente, Petro Poroshenko, e um novo Parlamento. E, infelizmente, ocorreu uma nova guerra.

E, para isto, o país não estava preparado.

 

História

O que aconteceu na Ucrânia em 2014 ilustra o fato de que, na Europa, a história nunca desaparece.

Há pouco mais de 20 anos, no dia 5 de dezembro de 1994, as três potências nucleares da época, Rússia, Estados Unidos e Ucrânia, junto com a Grã-Bretanha, assinaram um memorando em Budapeste no qual o governo ucraniano aceitava renunciar à sua condição nuclear.

Em troca, a Ucrânia recebia garantias de manter sua integridade territorial, a inviolabilidade de suas fronteiras e o respeito à sua política interna. Nada disso se concretizou.

E, para piorar a questão da integridade territorial, a Rússia anexou a Crimeia em março.

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A Crimeia, no sul da Ucrânia, sempre foi um ponto sensível para a Federação Russa. É o lugar de onde o Império Russo travou suas muitas guerras contra o Império Otomano.

Alguns analistas afirmam que, se prestarmos atenção ao presidente Putin, é possível notar que ele não quer reescrever a história, mas fazê-la voltar para as fronteiras que marcam o passado imperial russo. A instabilidade na Ucrânia foi uma oportunidade que o presidente russo não perdeu.

Para a Ucrânia foi muito difícil reagir: havia vendido a maior parte de seu arsenal bélico e reduzido seu enorme exército de 400 mil soldados nos anos 1990 para cerca de 130 mil em 2013.

O governo russo aproveitou para atacar, para tomar um território que também era um local estratégico do ponto de vista militar. E fez exatamente isso alegando apoio popular.

Logo vieram os movimentos separatistas no leste do país. Algumas regiões seguiram o exemplo da Crimeia e convocaram referendos, o que levou à proclamação de novas repúblicas, não necessariamente reconhecidas, mas, segundo muitos, financiadas e apoiadas pela Rússia.

A Rússia negou que estivesse envolvida militarmente, mas muitos cidadãos russos estão lutando ao lado dos rebeldes.

Vítimas

A área que estas “repúblicas” controlam é muito pequena, mas o número de vítimas é alto.

Até o começo de dezembro, mais de 5 mil pessoas haviam morrido.

As baixas ocorrem entre civis, soldados ucranianos, forças rebeldes e efetivos russos.

A tragédia também teve repercussão internacional. A mais palpável foi a morte dos estrangeiros inocentes que estavam no voo MH17 da Malaysian Airlines e que foi derrubado na Ucrânia no dia 17 de julho, em circunstâncias que ainda não foram totalmente esclarecidas.

 

As sanções econômicas também fizeram a Rússia buscar apoio de países que não estão necessariamente aliados com os Estados Unidos, incluindo Argentina, Venezuela, Cuba e Turquia, além de países que fazem parte da União Europeia, como Hungria e Itália. Com este dois, a Rússia tenta desequilibrar a postura adotada pela União Europeia em relação às sanções aplicadas aos russos.

Enquanto isso, dentro da Rússia, o sentimento contra o Ocidente como resultado do apoio dos Estados Unidos ao governo ucraniano é inédito.

Muitos também afirmam que aquilo que era apenas uma possibilidade teórica há uns três ou quatro anos, uma nova Guerra Fria, agora já está ocorrendo.

Estagnação

Hoje, a situação é de estagnação e é difícil ver como resolver isto sem recorrer à força militar.

Economicamente, ninguém saiu ganhando. Do lado humanitário, todos são perdedores. Do lado político, alguns observadores acreditam que, se a Rússia realmente quisesse, o conflito acabaria em breve.

Mas, neste momento, parece não haver nenhuma vontade política para isto.

O acordo com a União Europeia, que deu início aos protestos, foi firmado e já entrou em vigência.

É possível que o movimento iniciado por aquela geração da praça Maidan tenha sido “sequestrado” pela intervenção russa, que o transformou em um conflito armado pelo controle do território? Não acredito nisto.

Os manifestantes conseguiram entre 50% e 60% do que reivindicavam. O inesperado foi a guerra, as vidas perdidas, parte do território ucraniano perdido, todos os custos que ninguém poderia prever. Estes foram os outros 40%.

Mas a história frequentemente não se mede por pontos percentuais. Ela simplesmente acontece.”

 

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