POR VINÍCIUS SEGALLA E PEDRO SIBAHI
A cidade de Curitiba sediou na semana passada o VI Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Estavam ali os especialistas da área. O congresso serve para discutir a evolução da legislação e do fazer processual eleitoral no Brasil, à luz da Ciência do Direito. Analisam as mudanças na legislação que incidiram na eleição anterior, estudam seus impactos e projetam mudanças futuras, em busca do aperfeiçoamento do arcabouço normativo que faz valer a democracia.
Congressos assim não se apegam a casos específicos. Aproximam-se mais de eventos acadêmicos e científicos do que de atos políticos ou eleitorais.
Neste ano, porém, foi diferente. Por quê?
Porque não é possível ignorar o fato de que o líder de todas as pesquisas eleitorais se encontra preso. Preso no decorrer de um processo com algumas características inquestionavelmente inéditas. Por exemplo: o mandado de prisão que o juiz Sergio Moro expediu mais rápido após a condenação do réu em segunda instância, dentre todas as centenas de prisões da Operação Lava Jato, foi o de Lula.
Por exemplo: o processo de Lula, dentre todos da Lava Jato, foi o que mais rápido tramitou entre a sentença em primeira instância e o julgamento em segunda instância.
Por causa dessas tramitações factualmente diferenciadas, mais rápidas do que todas as outras de processos judiciais do mesmo âmbito, chegou-se ao cenário eleitoral atual, em que o líder em todas as pesquisas se encontra preso. Como os cientistas jurídicos poderiam discutir Direito Eleitoral sem levar tamanho fato em conta?
“Existe um elefante nessa sala, que se chama Lula”, resumiu, em bom português, Ricardo Penteado. O experiente jurista, advogado eleitoralista e consultor jurídico não é o que se possa chamar de um intelectual alinhado ao PT. Na realidade, ganhou fama, dinheiro e reconhecimento litigando nos tribunais eleitorais em favor dos políticos do PSDB e da própria sigla. Já defendeu candidaturas de políticos como José Serra, Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin, este último por três eleições.
Sobre Lula e sua candidatura, já logo no primeiro dia do Congresso (13), o que o advogado dos tucanos teve a dizer foi: “Temos uma importantíssima candidatura, tendo em vista a análise histórica. Um candidato que já foi eleito duas vezes e com alta aprovação em seus mandatos. Por força de uma condenação não transitada em julgado, encontra-se encarcerado por uma antecipação da execução da pena.”
O segundo dia do Congresso em Curitiba teve entre seus temas a Registrabilidade, ou seja, quais condições um candidato deve reunir para ter direito de registrar uma candidatura eleitoral. Neste dia, o elefante que Ricardo Penteado apontou primeiro restou evidente para todos.
Ao tratar da possibilidade de se registrar a candidatura de alguém condenado em segunda instância, todos os participantes da mesa de debate citaram o nome do ex-presidente, por vezes de maneira não intencional e até mesmo atabalhoada, como a tropeçar no assunto. Era impossível ignorar. O risco de todo o sistema eleitoral perder credibilidade a depender das decisões da Justiça nos próximos meses pesava no ar.
Esforçando-se ao máximo para fugir do caso específico, os juristas buscaram abordar de maneira genérica a questão da registrabilidade. Assim se expressou Geórgia Nunes, especialista em Direito Eleitoral e procuradora-geral de Teresina (PI).
“Nós não entendemos como pode haver uma mudança na situação fática em relação a eleição de 2016, porque a legislação não mudou. Em obstante se esteja discutindo a registrabilidade de alguém que esteja supostamente inelegível, não vemos como é possível este impedimento ao direito político de se registrar candidato e de defender a candidatura no âmbito do processo de registro.”
Quer dizer: nas últimas eleições, em 2016, não se impediu nenhum candidato de registrar sua candidatura, fazer campanha e disputar as eleições. Aqueles que tinham condenação em segunda instância, e dessa forma estariam inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa, puderam se registrar normalmente e concorrer às eleições. Ao fim do pleito, se tinham conseguido reverter a condenação em segunda instância em seus processos que seguiam correndo na Justiça, puderam ser diplomados normalmente.
De fato, desde que a Lei da Ficha Limpa passou a valer, em 2010, só no Estado do Rio de Janeiro, 1.500 candidatos aos mais diversos cargos, entre deputados, prefeitos e vereadores, registraram suas candidaturas e disputaram as eleições. Já no último pleito, em 2016, em todo o Brasil, 145 candidatos que estavam na mesma situação processual de Lula puderam concorrer e efetivamente foram eleitos prefeitos.
Parece não haver sequer margem para discussão sobre a registrabilidade de qualquer cidadão que se encontre nas mesmas exatas condições dos milhares de candidatos que se registraram nas eleições brasileiras anteriores à deste ano.
Por que, então, isso virou uma questão? Por que se discutiu o óbvio em um congresso que deveria servir para fazer avançar as fronteiras da ciência jurídica?
Porque o entendimento sobre a registrabilidade de candidatos com condenações em segunda instância em processos pendentes é praticamente unânime, mas não é unânime.
No Congresso de Curitiba, apenas uma voz dissonante entre os juristas acerca da questão da registrabilidade de candidatos com condenação em segunda instância. Seu nome: Admar Gonzaga, ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
É exatamente aquele que poderá influenciar diretamente na decisão crucial para a credibilidade da democracia brasileira quem levantou a única voz dissonante às de todos os cientistas do Direito presentes no Congresso. Ele não fez questão nenhuma de usar construções genéricas, hipotéticas. Já foi logo dizendo a que veio, que ficasse bastante claro e antecipado seu eventual julgamento:
“Quando se almeja cargo de presidente da República, não podemos brincar com o país, não podemos fazer com que milhões de brasileiros se dirijam à urna para votar nulo. Não contem comigo para isso. Na hora que ele (Lula) traz uma certidão e uma prova da sua inelegibilidade, e eu sou um juiz, eu posso rejeitar o registro de ofício. A certidão (positivada, que comprova a condenação criminal) tem fé indiscutível. Eu vou perguntar a ele (candidato) alguma coisa? Ele confessou para mim, juiz, que é inelegível. Me desculpem, a decisão vai ser de ofício.”
Não houve jurista entre os debatedores que não se indignasse. Disse a procuradora Géorgia Nunes: “Imaginar um indeferimento por protocolo é chocante, é rasgar o Direito Constitucional de postular candidatura.”
Disse o subprocurador-geral da República, Nicolao Dino: “Tenho dificuldade de imaginar que alguém seja irregistrável [eleitoralmente]. Isso seria negar ao cidadão o direito de postular algo fixado na Constituição.”
“Por que Lula não poderia apostar na sua absolvição (no caso do apartamento triplex da OAS) antes do final do processo eleitoral? Até o final do processo, pode ser que ele seja absolvido. Não dar chance a alguém que está preso por causa da execução antecipada da sentença de postular sua candidatura me parece absolutamente inconstitucional”, completou o advogado do PSDB, Ricardo Penteado.
Assim caminha o Brasil às vésperas das eleições de 2018. Contra o consenso de juristas independentes, há aqueles que, investidos de toga, insistem em fazer valer a própria lei.