Paulo Zapella é designer gráfico e atleta amador. Ciclista experiente, percorre mais de 300 quilômetros por semana de bicicleta. Na terça feira, pedalava na Avenida Groenlândia, uma larga e arborizada via que atravessa o Jardim Europa, uma das áreas mais “nobres” de São Paulo.
No caminho, segundo seu relato, apareceu um senhor entre 40 e 50 anos, camisa social, cabelo meio grisalho, ao volante de um Fiesta Sedan Prata.
Não foi um encontro agradável. Paulo contou a história no Facebook:
..tava eu pedalando de boa no cantinho da r. groenlândia, no pedaço da última faixa da direita, onde estavam os carros estacionados (ou seja, sem interferir em nada o fluxo das outras faixas [não que eu não possa, ok?]), quando um indivíduo emparelha um fiesta do meu lado e solta “e aí, comunista?”. achei que era piada e ri, até o dito cujo começar a dar pequenas jogadinhas com o carro em cima de mim. não abri a boca, continuei pedalando enquanto o cara começou a se alterar cada vez mais e gritar ‘comunista do caralho, filho da puta, vai andar na ciclovia do haddad, seu merda,’ e etc. achei tão bizarro que não esbocei nenhuma reação…
.. ia passar no canto e seguir meu caminho. no momento em que fui passar por ele, o cara acelera e joga o carro em cima de mim, quase colidindo com o outro que tava na faixa do lado (e provavelmente não entendendo nada). parou o carro atravessado no meio da rua e começou a gritar loucamente de novo “E AÍ, COMUNISTA? E AGORA?”. bom, e agora que eu desviei pro outro lado e segui pelo meio do trânsito onde ele nunca conseguiria me alcançar. mas e aí? o que vai acontecer com o próximo “””comunista””” que simplesmente passar pelo caminho desse cara?
quando a rua estiver livre, quando não tiver mais ninguém? eu posso afirmar que nos 30 e poucos anos que eu tô por aqui, este é o momento histórico mais escroto que eu já vivi. e tem muita gente plantando essas sementinhas de escrotismo diariamente. no facebook, nas conversas de bar, nos almoços de família. parabéns pra vocês, os frutos já estão sendo colhidos. vocês são responsáveis por pessoas como eu estarem sendo gratuitamente ameaçadas e agredidas na rua por “pessoas de bem”.
…“não votei no haddad, não voto em ninguém faz muitos anos”
Os dois posts geraram mais de 5.300 compartilhamentos e centenas de comentários. Paulo não reagiu e chegou vivo em casa para contar.
A loucura simplesmente apareceu na sua frente, ele rapidamente entendeu e recuou, exatamente como ensina o bom senso.
O senhor do Fiesta Prata, além de sua óbvia falta de discernimento e desequilíbrio emocional, tinha muito claras suas certezas e justificativas para a sua agressão: aquele homem de bicicleta, em seu surto repentino, era um comunista, um comunista do caralho, filho da puta, que devia andar na ciclovia do Haddad, um merda.
Mas, quais vozes conversam com este senhor no rádio do seu carro, na TV da sua sala e nos sites que visita?
As principais rádios de jornalismo de São Paulo, especialmente a Jovem Pan, estão em uma campanha permanente contra as ciclovias, ciclofaixas, a abertura da Paulista aos domingos, os radares e a redução da velocidade nas marginais, mesmo depois do resultado da diminuição do número de mortes e acidentes.
Haddad virou o inimigo número um dos programas jornalísticos de rádio que tem sua grande audiência nos horários de pico do trânsito.
Se, antes, os ouvintes ligavam e eram solidários uns com os outros, falavam do trânsito e de alternativas de rotas, avisavam de acidentes etc, com o Waze, as dicas de como fugir do trânsito foram substituídos, na sua maioria, por depoimentos raivosos e agressivos de motoristas furiosos, enviados a emissora por Whatsapp e Viber.
Na internet, circulam vídeos de revoltados que dirigem aos berros e uivos em São Paulo, xingando a ciclofaixa, Haddad, planos comunistas, nova guerra mundial, etc. Uma aberração.
Somados, esses comportamentos estão produzindo um chamamento para o pior dos sentidos, a busca de um culpado original por todos os males da sociedade. Paulo conversou com o DCM.
O que você acha que levou aquela pessoa a te xingar de comunista ?
Tá aí uma coisa que eu gostaria de saber, o que se passa na cabeça de uma pessoa dessa, o que acontece no período entre ele me avistar e ele decidir que seria uma boa ideia emparelhar o carro do meu lado e começar a me dizer este tipo de coisa. Por coisas que ando vendo por aí, acredito que, dentro do grupo de pessoas que estão insatisfeitas com o atual governo (neste caso federal e municipal), existe um pequeno grupo que REALMENTE ACREDITA que o Brasil virou uma ditadura comunista, que os “comunistas” estão aí soltos na rua, fazendo todo tipo de barbaridade.
Você já havia sentido algo parecido antes?
Talvez não com a mesma intensidade, não misturado. Ao mesmo tempo que senti muito medo, por ser, naquele momento, um alvo fácil, eu estava dando risada pelo tanto que a situação me parecia surreal.
Você já foi para Cuba, Coreia do Norte, Rússia ou China, enfim você é comunista?
Sou tão comunista quanto o Mickey Mouse.
Se pudesse encontra-lo novamente, o que falaria?
Falaria pra ele não esquecer de tomar os remédios antes de sair de casa. Não há o que argumentar com uma pessoa que está neste nível de paranoia.
Como a sociedade civil pode de alguma forma reagir a este tipo de “loucura coletiva”?
Acho que as pessoas tem que entender o papel delas nesta história toda que está acontecendo. As pessoas tem que tomar cuidado com a mídia que estão consumindo, com como elas estão replicando conteúdo por aí, e com quais bandeiras elas estão levantando. Tem que entender que a partir do momento em que você faz essas coisas todas sem cuidado, você carrega uma parcela, mínima que seja, deste tipo de coisa que vem acontecendo na rua. E a partir do momento que você entende isso, você se pergunta se quer realmente ter um pouco deste peso nas suas costas.