Paulo Nogueira Batista Jr.
Fala-se muito em revisão do arcabouço fiscal e da legislação trabalhista a partir de 2023, admitindo-se, claro, que o atual Presidente da República não seja reeleito. Perfeito. Mas não vamos esquecer que seria preciso rever também o arcabouço monetário. Muita barbaridade foi feita nessa área nos últimos anos. (Aliás, em que área não?!)
Passaram a boiada. Não só no tema ambiental, como no campo da moeda e do câmbio. Vou ser modesto, leitor. Nem quero discutir hoje a autonomia do Banco Central (BC), que prevê mandatos fixos e não coincidentes com o do Presidente da República para o presidente e os demais diretores da autoridade monetária. Se for de fato eleito, Lula herdará, para a fase inicial do seu governo, o presidente e a maioria dos diretores indicados por Bolsonaro/Guedes. Porém, Lula e seus porta-vozes já deixaram claro que pretendem conviver com isso.
O candidato não tem ânimo ou não se sente em condições de políticas enfrentar essa parada.
Mesmo assim, há muito que pode e deve ser feito na área monetária. Refiro-me a dois temas interligados: a) a composição do Conselho Monetário Nacional (CMN); e b) a lei do marco cambial.
Ampliação do Conselho Monetário Nacional.
O CMN é o órgão que dá instruções ao BC e toma outras decisões importantes. Fixa, por exemplo, as metas de inflação para o BC e orienta o sistema financeiro. As dificuldades aqui residem, por um lado, na composição inadequada do CMN e, por outro, no seu esvaziamento por decisões recentes.
O CMN tem atualmente apenas três membros: o Ministro da Economia, o Secretário da Fazenda do Ministério da Economia, subordinado ao primeiro, e o Presidente do BC. O Ministro da Economia preside o CMN e a sua secretaria é exercida pelo BC. Quem tem o mínimo de traquejo sabe que exercer a secretaria de um órgão dá controle da agenda e do encaminhamento dos temas, conferindo muito poder e influência. Assim, o BC tem um dos três votos e o comando da agenda. Na prática, dá instruções a si mesmo.
Desde o Plano Real, o CMN era integrado pelo Ministro da Fazenda, o Ministro do Planejamento e o Presidente do BC, com secretaria do BC. Lula e Dilma não mexeram nisso. Houve cogitações de ampliar o CMN em 2004 e 2005, com apoio do Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social, da CUT, da Fiesp e da CNI, mas o assunto acabou não avançando.
Com a fusão dos ministérios da área econômica no governo Bolsonaro, o que era ruim ficou pior. Desapareceu não só o Ministério do Planejamento, mas também o da Indústria e Comércio e até o do Trabalho.
Imagino que um eventual governo Lula desfaria essa ineficiente centralização da área econômica nas mãos de um ministro só, recriando os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O do Trabalho já foi recriado nesse meio tempo.
Pois bem, porque não incluir no CMN, além do Planejamento, os ministérios da Indústria e Comércio e do Trabalho? E, quem sabe, também o da Agricultura? E porque não tornar o CMN ainda mais representativo, incluindo um representante da área empresarial e outro dos trabalhadores e, talvez, alguém da área acadêmica? O governo eleito conservaria a maioria, mas daria voz e voto a representantes da sociedade.
O CMN passaria então a ter oito ou nove membros. Para evitar um possível viés inflacionário, pode-se prever que a secretaria continue com o BC e que o Ministro da Fazenda, além de presidir o CMN, tenha um papel claramente preponderante, algo como o poder de vetar determinadas decisões, por exemplo.
Lembro que na época da ditadura, nesse ponto mais democrática, o CMN era muito mais amplo. Desde os tempos da sua criação em 1964 até 1994, o CMN contava com a presença de ministérios setoriais, de presidentes de bancos públicos e de representantes do setor empresarial e dos trabalhadores. Reverter o esvaziamento do Conselho Monetário NacionalA ampliação do CMN não seria suficiente, entretanto.
Ocorre que, no governo Bolsonaro, o CMN foi esvaziado com a transferência de funções estratégicas para o BC. Veja o absurdo, leitor. Decisões estratégicas foram transferidas para um BC autônomo em relação ao governo eleito.
Pelo novo marco cambial, aprovado praticamente sem discussão pelo Congresso em 2021, o BC ficou autorizado a liberalizar as transações internacionais de capital, a seu critério, podendo no limite decretar a conversibilidade plena da moeda nacional. Ora, medidas desse podem ser defensáveis ou não, há controvérsias entre economistas, mas são inegavelmente de enorme importância, de difícil reversão, e não podem ficar nas mãos exclusivas da combinação de financistas e tecnocratas que costuma comandar o BC – agora com mais independência em relação ao poder político.
O BC ficou também autorizado a ampliar as hipóteses de uso interno da moeda estrangeira, recebendo carta branca para regulamentar contas em moeda estrangeira, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos para sua abertura e movimentação. De novo, cabe frisar, a seu critério exclusivo, sem passar pelo crivo do CMN ou de mais ninguém. O risco é que a economia brasileira possa ser paulatinamente dolarizada, seguindo o caminho infeliz da maior parte dos países latino-americanos.
O BC merece respeito, tem um bom quadro de funcionários e, regra geral, desempenha com competência e seriedade suas atribuições. A lei do marco cambial tem certamente aspectos positivos, de modernização e simplificação das transações com moeda estrangeira. Mas é preciso separar o joio do trigo. Manter as mudanças que trazem eficiência, abandonar as que criam vulnerabilidades para a economia brasileira e trazem o risco de dolarização.
Por competente que seja, o BC não deve poder tomar decisões monetárias e cambiais que afetam o futuro do País, de forma profunda e difícil de reverter, por decisão autônoma, à revelia do poder político eleito. Não funciona assim em parte alguma do mundo, até onde sei.
Caberia devolver, portanto, a um CMN ampliado e mais representativo, as responsabilidades indevidamente transferidas ao BC. Essa revisão do arcabouço monetário seria um passo importante para corrigir distorções introduzidas no passado recente.
Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 13 de maio de 2022.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015.
Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.