O jurista e professor Pedro Serrano concedeu uma entrevista ao programa DCM Ao Meio-Dia criticando duramente Deltan Dallagnol o jornalismo corporativo que ainda defende a Lava Jato.
Advogado do juiz Eduardo Appio, Serrano falou sobre a correição do CNJ na 13ª Vara de Curitiba, no Paraná, e o TRF-4 no Rio Grande do Sul. Ele considera a decisão de fiscalização uma “vitória” contra os abusos da Lava Jato e reflete sobre o “conservadorismo teocrático” de Dallagnol.
Veja os principais trechos.
A teocracia de Dallagnol
Alexandre de Moraes é um homem decente. Não é um teocrata. Cumpre a Constituição e defende a democracia.
É um cara de centro, que não pensa o mundo da mesma maneira que eu. Mas é decente e é tratado dessa forma, com ataques, enquanto esse teocrata [Deltan Dallagnol] diz que homem “é superior à mulher” segundo a Bíblia e é tratado dessa forma reverenciada no Roda Viva.
Essa confusão de valores, essa falta de sentido do que é certo e do que é errado é um problema que a sociedade está padecendo intensamente.
A mídia está doente. Está doente, não há outra explicação. Como é que podem dar algum sentido de seriedade para um homem que diz que a mulher é inferior ao homem segundo o que a Bíblia determinou?
E que portanto não tem sentido haver igualdade entre as pessoas por conta de gênero? Um cara que foi procurador da República, selecionado em concurso, portanto. Que diabo é esse concurso que seleciona esse tipo de gente no sistema de Justiça?
É grave tudo isso que estamos vendo. Há uma doença que não existe só no Estado brasileiro. É uma doença no ambiente social.
Nunca tivemos mesmo legalidade ética ou jornalismo combatente. Nunca fomos muito bons nisso no Brasil. Mas já tivemos um quadro melhor, isso é indubitável. Nesses dois aspectos.
A realidade dura é a seguinte. Os direitos estão em crise, as Constituições também e eu trabalho com isso no âmbito acadêmico. Os direitos deixaram de ser um common ground, um solo comum, sobre o qual se davam as disputas de poder e passou a ser uma clivagem entre direita e esquerda.
Só quem defende direitos hoje é o que se denomina esquerda. A pessoa hoje é chamada de esquerda não por defender direitos sociais ou socialismo ou comunismo, mas é chamada assim por defender direitos mínimos. O que deveria ser comum a todos.
Algum dia vamos recuperar os direitos common ground? Acho que sim, mas nada está garantido nessa história.
Pode ser que o período mínimo de civilização após a Segunda Guerra pode ter ido embora e nós estejamos destinados à barbárie. Tenho a mãe de uma amiga que é espanhola e anarquista dizia que a gente viveu o mundo com uma vida boa, no pós-guerra, na democracia.
Ela dizia que nós não conhecíamos a história. A história “é sangue na calçada”. Talvez esse seja o nosso destino enquanto humanidade. Operando um contra o outro até que tudo acabe em barbárie geral. A história tem essa qualidade. Não é previsível a longo prazo. E a gente não sabe o que vai acontecer.
O problema não é do Direito. É da sociedade nossa. O neoliberalismo radicalizou muito a nossa visão da existência. Falei outro dia de um empresário chamado Salvador Arena, de São Bernardo do Campo. Tudo quanto é operário de metalúrgica queria trabalhar na fábrica dele. Tinha uma excelente assistência médica, odontológica. Pagava os direitos trabalhistas direito.
Perguntei a ele: “Senhor Salvador, por que você paga tudo isso se tem outros empresários que não fazem isso? Sendo que o senhor é conservador?”.
Ele respondeu: “Porque eu sou cristão”. Ou seja, havia uma doutrina.
O conservadorismo no passado era um conservadorismo muito melhor. Hoje nós não temos o conservadorismo humanista, que veio de [Edmund] Burke, de uma série de linhagens de pensamento. O conservadorismo hoje é reacionário. Ele é genocida.
É uma tragédia para a humanidade isso. A humanidade está regredindo.
Nós não temos um plano humanista de vida. O começo do século 21 é a disputa entre o niilismo reacionário e o humanismo. Essa é a luta concreta que temos.
Sobre o jornalismo que “passou a mão” na cabeça de Dallagnol
Qual parte do processo o Lula comandou um ato de corrupção na Lava Jato? Eu conheço todo esse processo. Dei parecer sobre ele para a ONU. Conheço cada olha desse processo. Me diz um ato!
Um momento em que Lula determinou uma prática de corrupção! Ele nem é acusado disso.
Ele é condenado por corrupção, mas não é acusado disso. É de estarrecer isso. É de estarrecer a cara de pau e a forma como os jornalistas [no Roda Viva] passaram a mão na cabeça desse sujeito.
Por que ele aponta Lula no Power Point? Porque Lula era o presidente da República. Isso não é individualização de conduta. Isso faz referência ao cargo que Lula exercia. Não a conduta dele. Qual foi a conduta de Lula?
Qual foi o horário e o dia que Lula mandou praticar corrupção na Petrobras? Ele aponta isso na acusação dele? Não. Não há individualização de conduta.
Ele não aponta dia ou horário e com quem Lula falou para comandar corrupção.
Não houve individualização de conduta para comprometer Lula. É mentira o que Dallagnol esteve falando no Roda Viva. É desinformação com ajuda dos jornalistas.
O caso Lula é o maior exemplo dos abusos, é fácil para as pessoas entenderem. Qual dia e horário Dallagnol aponta que Lula cometeu crime de corrupção na Petrobras?
Isso é individualização de conduta. Ele fez? Não! É mentira! Isso que ele falou no Roda Viva é mentira!
Tem que ser apontado como isso: Uma mentira. O jornalismo passa a mão na cabeça dele porque se enrolou nessa biografia. Em troca de informação sigilosa, veiculou essa mentira como se fosse verdade. É esse o grave problema do jornalismo brasileiro.
Falta de ética mínima na forma de divulgar informações de interesse público! Isso é grave! É muito grave.
E continua havendo esse tipo de comportamento. E eu estou falando do caso de Lula na Lava Jato, mas todos os casos foram assim. Foi tudo indutivo. A conduta de Lula visitar um apartamento triplex não é crime.
Eu posso visitar o apartamento que eu quiser. E tinha um contrato que não estava assinado. Isso não é prova de nada.
Não houve individualização de conduta e nem de prova mínima. E quem fala isso não sou eu. Quem fala isso é a ONU. É a corte de juristas da ONU.
17 juristas de 17 países diferentes, sem interesse no Brasil, unanimemente, falam isso.
“Appio não passou aquele trote”
Nós fizemos uma petição para o corregedor do CNJ e tinham três pedidos. Um é uma correição extraordinária na 13ª Vara de Curitiba da Lava Jato e no TRF-4. A correição quer dizer uma auditoria em todos os casos documentados e nas condutas.
Também pedimos que o CNJ conduzisse ele a investigação em relação ao [juiz Eduardo] Appio e pedimos que ele retornasse ao cargo. E isso demora mais tempo.
O que o CNJ decidiu não é só em relação ao nosso pedido, mas de outras questões disciplinares envolvendo a Lava Jato.
Desde a vitória do Lula, como falei com o Kakay, foi a maior porrada na Lava Jato. Appio será ouvido pelo pessoal do CNJ, com duas pessoas do meu escritório.
Retorno do juiz Appio ao cargo é algo mais demorado mesmo. Tem que ouvir o primeiro tem uma série de questões a se tratar. É uma vitória da democracia e da Constituição.
Óbvio que nós não sabemos o que que vai resultado essa auditoria. Ela será conduzida sigilosamente como a lei determina. Agora as coisas entrarão em um ritmo mais lento, porque é uma correição em centenas de casos.
Acho que esse pessoal da Lava Jato acabou dando um tiro enorme no pé. Não quero fazer crítica a todos os jornalistas, mas o jornalismo brasileiro no assunto da Lava Jato chega a ser ridículo.
No Roda Viva, Dallagnol fala que homens são necessariamente superiores às mulheres por causa da Bíblia. A Globo é identitarista no discurso pelo menos superficial. Mas não falou nada a respeito do Deltan Dallagnol nesse caso.
Se fosse um cara progressista ou qualquer um de esquerda, isso seria manchete da Globo. Tem uma coisa gozada nesse jornalismo, de passar pano mesmo.
Mesmo que o bolsonarismo e o lavajatismo tenham cometido as maiores atrocidades.
Tentei demonstrar para a jornalista do UOL [Fabíola Cidral] que concedi entrevista que o assunto não era o trote, e tentei falar isso para o público. Appio não fez aquilo. Não passou aquele trote.
E nós vamos demonstrar isso no processo. Mas, na imprensa, eu não quero focar nisso.
O assunto não é a ligação. Se ele tivesse dado o trote, a conduta de punição não seria essa. Seria uma advertência.
E o afastamento foi sem prova nenhuma de que foi ele que fez isso. O exame técnico fonético que fizeram para falar que a voz dele é aquela é problabilístico.
É um absurdo. Ele foi afastado imediatamente do cargo sem direito à defesa. E isso aconteceu porque, óbvio, o motivo não é o telefonema.
É o fato dele ter aberto as investigações para apurar os abusos da Lava Jato.
Confira a entrevista na íntegra.