Publicado originalmente na Agência Pública
“Vou te esfaquear, te matar e beber o seu sangue, vagabunda, puta”, teria dito Beatriz a Júlia, que é madrasta de sua filha, após ver fotos das duas em uma rede social. Devido às ameaças, Júlia processou Beatriz por danos morais. Ela conseguiu a indenização, porém, também precisou ouvir da juíza que era preciso perdoar a agressora. “Uma boa separação dá certo quando os parceiros dizem um para o outro: eu amei muito você. O que dei para você, dei com muito prazer. Você também me deu muito, vou guardar isso com honra”, disse a juíza do Tribunal de Justiça do Sergipe (TJSE) Camila da Costa Pedrosa Ferreira, na sentença. A frase, segundo ela, é uma “sábia visão de Bert Hellinger”, o criador da constelação familiar.
Segundo a Agência Pública apurou, menções a Hellinger e “lições” da constelação familiar têm sido usadas em decisões na Justiça e também para intimar pessoas a participar de conversas preparatórias para as audiências de conciliação. De acordo com as informações obtidas em diários oficiais e por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), os tribunais de justiça brasileiros já utilizaram a técnica em centenas de processos e gastaram mais de R$ 2,6 milhões em cursos de constelação familiar para juízes e servidores.
A maior parte dos gastos ocorreu entre 2016 e 2019. Os dados do TJCE começam em 2007. Os gastos mais recentes, neste ano, foram feitos pelo TJMG e TJRN.
A constelação familiar é uma prática alternativa que usa dinâmicas para resolver conflitos familiares. São realizadas dramatizações, no geral, em grupos, que recriam cenas sobre questões familiares e costumam envolver membros de várias gerações. Ela não é reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia, que publicou nota em 2023 destacando que a constelação tem “incongruências éticas e de conduta profissional”.
Cinco tribunais confirmaram à reportagem que oferecem a prática: os tribunais de justiça da Bahia (TJBA), de Minas Gerais (TJMG), de Santa Catarina (TJSC), de São Paulo (TJSP) e do Ceará (TJCE). Já o TJSE, citado no início desta reportagem com uma decisão de 2021, informa que não utiliza a constelação familiar como método de conciliação de conflitos.
No TJCE, segundo a assessoria de imprensa do tribunal, a constelação não estaria vinculada à solução de conflitos, mas como um programa de acolhimento do Núcleo de Justiça Restaurativa, que atende “processos ainda não transitados em julgado ou em cumprindo de pena” e “questões de família, sucessões, endividamentos, trabalhista, violência doméstica, casos de crimes que tramitam no Tribunal do Júri e cíveis”.
Outros tribunais informaram gastos com constelação, mas disseram não terem a prática estabelecida por portaria ou regulamentação atualmente.
Tribunais de justiça brasileiros bancam cursos e oficinas de constelação familiar
O Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) é o que acumula os maiores gastos com constelação entre todos os que responderam à reportagem: R$ 1,5 milhão com cursos e palestras a servidores. A reportagem solicitou ao tribunal o número de atividades realizadas sobre o tema e o montante investido, mas não obteve retorno. Os valores apurados pela Pública foram encontrados em publicações do Diário Oficial do TJRO.
Procurada, a assessoria informou que a técnica “não é mais utilizada nas audiências”. O curso mais recente financiado pelo TJRO se encerrou em novembro de 2022, mas a chefe do Núcleo de Conciliação das Varas de Família de Porto Velho, Jaife da Silva Chaves, diz acreditar que o projeto de constelação familiar desenvolvido pela presidência do TJRO tenha sido encerrado por volta de 2019.
Tribunal de Justiça de Rondônia gastou cerca de R$ 1,5 milhão com constelação familiar
Sami Storch, juiz precursor do “direito sistêmico”, se destaca entre os palestrantes. Segundo a reportagem apurou, em 2016 o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) pagou pelo menos R$ 17 mil em diárias, pernoite e inscrições para que seis servidores participassem de um seminário com Storch em São Paulo (SP).
A reportagem apurou que os cursos nos tribunais incluem desde palestras e oficinas com carga horária curta até cursos mais robustos, que chegam a 100 horas/aula, com obrigatoriedade de estágio supervisionado para conclusão. Na maioria dos casos, as formações foram ministradas por servidores dos próprios tribunais ou por instituições contratadas.
Dos 27 tribunais estaduais brasileiros, 17 responderam à solicitação feita com base na LAI, dentro do prazo. Destes, 13 informaram dados de cursos, com valores. Já oito enviaram informações incompletas, principalmente sobre os custos, ou apenas encaminharam o pedido a outro órgão.
Apesar de “vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público”, segundo a LAI (Lei 12.527/2011), vários órgãos requisitaram “esclarecimento a respeito da finalidade das informações solicitadas”. O Tribunal do Mato Grosso do Sul (TJMS), por exemplo, indeferiu a solicitação da reportagem com a justificativa de que o motivo não havia sido informado.
No TJCE, em resposta à reportagem, a servidora responsável pela coordenação das constelações alegou que “não é questão da lei” e que iria responder o solicitado, mas gostaria de “saber qual era o objetivo [do pedido]”.
Tribunais têm intimado pessoas a participar de constelações
Segundo pesquisadores ouvidos pela reportagem, o uso da constelação nos tribunais foi facilitado pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 29 de novembro de 2010, que trata da organização dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos.
À Pública, o CNJ afirmou que não há recomendações do órgão a respeito do uso das constelações, embora alguns utilizem a técnica. E que, como o assunto está sendo debatido, por conta de um pedido de regulamentação da prática, o CNJ não tem se manifestado oficialmente sobre o assunto.
Para o pesquisador do uso da constelação no campo jurídico Mateus França, a resolução efetivamente é uma brecha. “Essa resolução não fala diretamente de constelação familiar. Ela institui meios alternativos de resolução de conflitos. A resolução é bastante aberta. Ela diz que se deve buscar meios alternativos de solução de conflitos, e isso entra num objetivo do CNJ de baixar pilhas [de processos]. Nesse modelo de baixar processos a qualquer custo, podemos chegar em coisas muito sérias. Quando a constelação veio com aqueles números superaltos, o CNJ se impressionou”, afirma.
Criados em 2015, a partir do novo Código de Processo Civil, os Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos (Cejusc) são os responsáveis por aplicar essas ferramentas alternativas. Fica a cargo do Tribunal de Justiça de cada estado decidir a regulamentação e as atividades que serão oferecidas. Além das sessões de constelação, há projetos que vão desde rodas de conversa, palestras e oficinas de parentalidade. Em geral, os métodos antecedem a audiência de conciliação, realizada também por um profissional do Cejusc.
Em alguns casos, o encaminhamento para a constelação familiar é feito pelo juiz do caso, em forma de convite ou intimação. A reportagem apurou que as duas formas ocorreram, por exemplo, no TJSC.
Embora o não comparecimento na audiência de conciliação possa ser justificado, a presença em sessões de constelação pode ser interpretada pelo magistrado como “evidência” de boa-fé – e a ausência, como falta de colaboração.
Para Michelle Hugill, servidora do TJSC, “um convite do Judiciário nunca é um convite”. Como a constelação não é oferecida em todos os tribunais e a convocação das partes nem sempre é registrada oficialmente, não é possível afirmar quantas sessões já foram realizadas na Justiça brasileira. Apesar disso, de acordo com as publicações dos diários oficiais, o país já acumula centenas de intimações para a prática.
Para Mateus França, a defesa de que a constelação teria resultados é baseada em poucos estudos de metodologia incerta. O jurista e sociólogo também questiona se “vale tudo” para chegar a uma taxa absoluta de acordos. “Quanto uma técnica como a constelação, que oferece explicações mágicas para os problemas das pessoas, não leva artificialmente ao acordo? Porque essas pessoas talvez acreditem que a melhor coisa a fazer é aceitar o acordo: ‘Talvez eu tenha muita culpa nessa história, tenha questões com meus antepassados que eu não lidei’. O acordo foi feito, o número do acordo está ali, mas será que efetivamente foi feita uma solução adequada para o conflito?”, diz.
Segundo Michelle Hugill, mesmo que existissem estudos provando que a constelação familiar auxilia na resolução de conflitos, ainda assim o Judiciário não deveria aplicá-la. “Mesmo que se entenda como uma terapia diferente, holística, pseudoterapia, que seja, não é uma técnica, é uma terapia. É diferente da conciliação e da mediação.” Para ela, o papel da Justiça não é fazer terapia. “A gente não pega uma das partes e manda nosso psicólogo atender essa pessoa, não é a nossa função”, exemplifica.
Constelação familiar tem ganhado espaço no Judiciário brasileiro
A visão de Bert Hellinger e das constelações começou a ganhar espaço no Judiciário ao menos desde 2012, quando o “direito sistêmico” se popularizou entre magistrados e servidores judiciais no Brasil.
“O juiz que tem uma postura sistêmica vai olhar o conflito diferente daquele juiz de postura punitivista”, defende Fabiano Oldoni, coautor do livro Direito sistêmico: aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao direito de família e ao direito penal. Para o advogado, juristas com essa filosofia prezam por soluções mais harmônicas e convidam os envolvidos a refletir sobre as causas dos conflitos.
Contudo, Oldoni defende que o juiz não deve constelar os próprios casos, porque “toma conhecimento de questões que depois, se for julgar o processo, ele é parcial”. O advogado acrescenta que, caso não haja um acordo na conciliação, o juiz terá que julgar a ação e, se tiver constelado ou participado da técnica, “ele saberá de coisas que muitas vezes não estão nem no processo”. De acordo com o Código de Processo Civil, a audiência de conciliação, que ocorre sem a presença do juiz, é confidencial.
No TJMG, segundo o Cejusc, as sessões de constelação seguem esse padrão. No entanto, não são todos os tribunais de justiça que possuem regulamentação específica para as constelações familiares.
O TJBA, por exemplo, afirmou que “a sistemática de utilização da ferramenta fica a critério do magistrado, resguardada a voluntariedade do procedimento”. Por esse motivo, o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) da Bahia afirma não ter conhecimento se os autos do processo são repassados para o constelador, nem se alguma informação retorna ao juiz depois da constelação.
“Eu perguntei se eles sabiam se tinha um aborto na família”, disse juíza de paz em caso de inventário
A juíza de paz do cartório do 2° Ofício de Sobradinho (DF) e mediadora voluntária do Núcleo Virtual de Mediação e Conciliação (Denuvimec) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), Mírtala Delmondez, aplica a visão sistêmica nos casamentos que celebra e em inventários. Ela lembra que, certa vez, uma família não conseguia chegar a um acordo e o processo só foi concluído após constelar. Mírtala explica que, pelas regras do “direito sistêmico”, o filho mais velho tem que encaminhar o inventário. Nesse caso, quem liderava as negociações pensava ser o primogênito, mas não sabia da existência de um irmão abortado. Segundo ela, após a revelação, a família chegou a um consenso.
“Essa família tinha três filhos, as irmãs não deixavam que o irmão visse a mãe. Elas estavam com ódio dele, ele, com ódio delas. Aí montamos a constelação. Esse rapaz pensava que ele tinha que fazer o inventário, porque era o homem da família, não porque era o mais velho. E ele estava como se fosse o mais velho, só que ele não era. Aí eu perguntei se eles sabiam se tinha um aborto na família e eles falaram que não. Daí eu falei: ‘Essa peça aqui vocês não sabem quem é, mas, se você sentir no coração, você coloca no campo”. Aí ela [advogada do rapaz] segurou a peça e disse que sentiu que devia colocar. Quando ela colocou, era justamente onde estava travando. Antes desse rapaz, tinha um irmão mais velho que ele. Então ele não era o mais velho.”
Na última década, magistrados fascinados pela prática de Bert Hellinger e inspirados por Sami Storch conduziram iniciativas próprias nos tribunais.
Segundo a reportagem apurou, diversas comarcas do Rio Grande do Sul passaram a utilizar a constelação na conciliação. Isso ocorreu, inclusive, a partir da atuação de magistrados que, na época, ministravam palestras sobre o tema.
Assim como no Rio Grande do Sul, há outros casos de juristas e advogados que buscaram promover cursos e workshops para capacitar funcionários dos tribunais sobre a constelação e o “direito sistêmico”.
Segundo a reportagem apurou, ao menos desde 2016, o TJCE tem oferecido várias formações em constelação. A iniciativa seria uma continuidade de formações oferecidas a psicólogos do tribunal, que começaram em 2007.
Críticos da constelação apontam que prática pode reforçar discriminação contra mulheres
Para a psicóloga Beatriz Coltro, que realiza perícias judiciais no TJSC, um dos perigos do uso da constelação familiar como perícia é tornar a análise muito rasa. Enquanto uma sessão dura em média 50 minutos, os laudos técnicos elaborados pela psicóloga em processos da Vara da Família no TJSC despendem mais tempo. “São várias sessões para escutar o pai, várias sessões para escutar a mãe. Eu utilizo técnicas, testes psicológicos que têm validação pelo nosso satélite, que é um sistema de avaliação de técnicas psicológicas”, explica Beatriz.
Também do TJSC, o juiz Romano Ensweiler considera que as premissas de pertencimento e hierarquia da constelação familiar desfavorecem as mulheres e podem provocar ainda mais danos se aplicadas a casos de violência doméstica. “Se a mulher se indignar com essa situação, na verdade isso vai causar mais problemas. Ou seja, a indignação da vítima traz uma energia ruim e acaba gerando violência. Quer dizer, então, que a vítima tem que aguardar e apanhar calada.”
Em razão desse debate, no final de 2022 o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (Fonavid) orientou que “no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher não sejam utilizadas práticas de constelação familiar ou sistêmica”.
Em resposta à reportagem, o TJMG frisou que o projeto de constelação familiar do Cejusc de Belo Horizonte não atende casos de violência doméstica. Em contrapartida, nem todos os tribunais brasileiros seguem a mesma orientação. Entre março e abril deste ano, em pelo menos dois casos que envolvem violência doméstica houve intimações para a participar do projeto de constelação familiar virtual do TJSP; em um deles, faz-se uma ressalva ao final: “Considerando os relatos de violência doméstica, a presença da autora não é recomendada”.
Existem projetos de lei nesse sentido, como o PL 9.444/2017, que estabelece normas para a constelação sistêmica na solução de conflitos e aguarda parecer do relator na Câmara dos Deputados desde 2021.
Alguns juristas contrários à prática nos tribunais, como o juiz Romano Ensweiler, consideram que uma regulamentação só pioraria as coisas. “Dentro do Judiciário, não tem cabimento. As minhas convicções pessoais eu deixo em casa. Como eu vou criar um curso, implementar algo que não tem como [comprovar]? A regulamentação vai dar um selo de garantia, um selo de seriedade que não existe.”
Após receber mais de 25 mil apoios através do sistema e-Cidadania, portal do Senado Federal que recebe propostas da população e as coloca para votação online, a Sugestão Legislativa n° 1, de 2022, que propõe o “banimento da prática de Constelação Familiar das Instituições Públicas”, entrou em tramitação. A matéria aguarda, desde março de 2023, o parecer do relator Eduardo Girão, senador que sugeriu a homenagem à constelação familiar, que resultou em nove horas de debate em 2022.
A assessoria do senador confirmou que o relatório está atrasado “devido ao momento conturbado que o Brasil atravessa e também pelo fato do parlamentar estar muito focado nas questões que envolvem a CPMI de 8 de janeiro”. A equipe reforçou que “o senador já manifestou, em diversas oportunidades, ser favorável à prática”. No início de julho deste ano, o Conselho Federal de Psicologia enviou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma moção de apoio à proposta de banimento.