Publicado na ConJur
O general Mourão, candidato a vice-presidente de Bolsonaro, acaba de defender que o país faça uma nova Constituição, mais enxuta e focada em “princípios e valores imutáveis” (sic), mas não necessariamente por meio de uma Assembleia Constituinte. Sim, ele disse isso. Para ele, o processo ideal envolveria uma comissão de notáveis (sic), que depois submeteria o texto a um plebiscito, para aprovação popular. E fechou com esta frase: “Uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo”.
Bingo. É isso. Um candidato a vice-presidente, que quer chegar ao poder pelo voto, despreza a Constituição, o parlamento e o próprio Supremo Tribunal Federal. Isso porque a tese do general Mourão só tem “viabilidade” se, antes, for fechado o parlamento e, é claro, também for fechado o STF, que, por óbvio, haveria de declarar absolutamente inconstitucional uma “constituinte sem povo” (sic), outorgada por uma “comissão de notáveis” (sic), rasgando ao meio a Constituição de 1988. Tão claro isso, pois não?
Ou seja, o general precisaria, para realizar seu intento, de um novo AI-5, especialmente a redação do artigo 11: Todos os atos decorrentes deste ato são insuscetíveis de revisão pelo judiciário (especialmente pelo STF). Os mais jovens nem sabem o que isso quer dizer. Pena.
Incrível como não nos acostumamos a viver em democracia. Há um vírus que está encalacrado em nosso inconsciente. Um vírus que mistura herança escravocrata, patrimonialismo e regimes de exceção. Os períodos democráticos, quando acontecem no país, fazem com que os saudosos se cocem. Essa comichão vai crescendo e vira uma feridinha. Se deixarmos que “evolua”, teremos algo incontrolável.
Peço que os democratas ajudem a convencer a todos os partidos e candidatos — inclua-se qualquer proposta de constituinte, venha do general ou do PT ou PSDB ou do PDT ou de quejandos — que uma democracia se faz, e só se faz, respeitando as regras do jogo. Simples assim. Porque quem acha que precisa de uma nova Constituição cai em uma contradição: se não obedece a esta, mas quer uma nova, por qual razão ele obedecerá a nova?
Parece óbvio ter que dizer o óbvio, que é sempre ladino. Desvelar as obviedades do óbvio é tarefa que se impõe. O problema da fala do general não é o seu conteúdo estrito, mas, sim, o simbólico que ela representa. Parece que ele quer testar o “sistema”. Gestar o ovo da serpente. E atiçar as viúvas do arbítrio.
Chamemos, pois, os democratas. Chamemos os cientistas que podem explicar a todos que a terra não é plana (a linguagem é metafórica — o estagiário levanta a placa com os dizeres: ele-quer-dizer-que-dizer-que-a-terra-não-é-plana é óbvio, isto é… Deixa pra lá, entenda quem quiser entender). Enfim, lembremos de Darcy Ribeiro e seu Tratado de Obviedades; Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas que ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades do óbvio.
Tudo óbvio demais e nada mais tenho a dizer. Mas atentemos para a tempestade perfeita que vem se formando.
Machado de Assis, sempre ele, tem um conto chamado O Espelho – Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana. Quatro ou cinco cavalheiros debatem, uma noite, várias questões de alta transcendência. Quatro ou cinco? É que um deles, o quinto personagem, provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, astuto e cáustico, não discutia nunca. Naquele dia se dispôs a discutir algo, só que “a discussão” era um monólogo: “Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir”.
Pois é. Talvez o general esteja avisando: se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir!