Por Fernando Augusto Fernandes
Quando da prisão preventiva do conhecido hacker Walter Delgatti Neto, publiquei nesta ConJur artigo intitulado “Prisão de acusado de hackeamento é ilegal e tem motivos políticos”. Agora, diante da condenação a 20 anos, cabe novas considerações.
É preciso, primeiramente, compreender os tipos penais, ou seja, os crimes descritos no Código Penal. Um ponto relevante é que os fatos do processo em tela ocorreram antes de julho de 2019, quando Delgatti foi preso na operação “spoofing”.
Em 2012, a Lei 12.737 introduziu os artigos 154-A e B [1] no Código Penal, criando os crimes de invasão de dispositivos informáticos. A pena por invadir dispositivo informático era de 3 meses a 1 ano. Se o ato resultasse na obtenção de comunicação privada, a pena era aumentada para 6 meses a 2 anos. Importante notar que em 2021 foi editada a Lei 14.155, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro com a assinatura do seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que aumentou essas penas no caput para 1 a 4 anos; no caso da obtenção de comunicação privada, para 2 a 5 anos.
Como a lei penal não retroage, o caso deve ser analisado sobre a legislação anterior, isto é, com as penas determinadas pelo texto original da lei de 2012. Assim, mesmo com aumento de punição — obter informações do presidente da Câmara ou do dirigente máximo do Poder Legislativo (artigo 154 A § 5° , III, IV) — a pena não chega a 3 anos. O principal artigo do caso, portanto, era de menor potencial ofensivo à época dos fatos.
Um detalhe interessante é o fato de que, como o hacker não invadiu um computador, mas baixou os diálogos de uma nuvem, o juiz se embasa para responder o argumento da defesa de atipicidade da conduta (ou seja, que o artigo não é exatamente aplicável ao caso) em artigo nest ConJur, Hélio Santiago Ramos Júnior, que era assistente de Procuradoria de Justiça (MP-SC), defende que o conceito de dispositivo de informática deveria ser ampliado pela jurisprudência.
A tese só esquece que o princípio da reserva legal impede analogia no Direito Penal e que a ideia de aplicação extensiva de termos é burlar o fato de que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Outro tipo penal tratado na sentença é o artigo 10 da Lei 9.296/96, que dispõe sobre o crime de interceptação telefônica não autorizada judicialmente, cuja pena é de 2 a 4 anos. A sentença se equivoca na análise do artigo. Primeiramente, constata-se que embora tenha sido argumentado o crime seria próprio, praticado unicamente por funcionário público, a tese foi afastada corretamente pelo juiz.
Afinal, crimes de funcionário público estão relacionados no artigo 312-A e B do Código Penal: inserção ou facilitação de inserção de dados falsos nos sistemas e banco de dados da administração pública, cuja pena é de 2 a 12 anos. Esse crime é o praticado pelo ajudante de ordens Mauro Cid, quando falsificou atestados de vacina dele e do ex-presidente Bolsonaro no sistema do SUS, ou o que Delgatti cometeu como longa manus da deputada Carla Zambelli ao alterar o sistema do CNJ.
Ocorre que a interceptação exige que a comunicação seja obtida entre a sua passagem de um dispositivo para outro! No caso, as mensagens não foram interceptadas no momento que eram transmitidas, mas resgatadas na nuvem. Assim, não se aplica o artigo 10 da Lei 9.296/96.
Quanto ao crime de invasão de dispositivo informático, realizado antes do aumento de pena, o juiz fixou a punição em 1 ano e 6 meses, diminuindo um mês pela confissão, e aumentou-a para dois anos em razão da colheita de dados do presidente da Câmara, Arthur Lira, e aplicou um aumento por crime continuado (já que foi mais de um ato realizado pelo hacker), chegando ao total de 3 anos.
Esquecendo-se que não foi invadido nenhum aparelho de informática e que a lei não se aplica à recuperação de dados em nuvem, se a sentença parasse por aí talvez se sustentasse. Mas sem considerar a inexistência de interceptação, e a impossibilidade da aplicação dos dois tipos penais simultâneos, condena, ainda, pelo artigo 10 da Lei 9.296/96 (interceptação ilegal) e, em um exercício de matemática, fixa a pena base em 3 anos, e mesmo com a atenuante da confissão e cooperação, o juiz considerou severamente um aumento por crime continuado, totalizando a pena apenas pelo delito referido em 4 anos e 7 meses!
A partir daqui o contorcionismo se torna malabarismo. O Ministério Público constou na acusação, e o juiz condena por organização criminosa com o seguinte dispositivo: “fixando-a em 5 (cinco) 50 anos e 8 (oito) meses de reclusão e 150 (cento e cinquenta) dias de-multa, tornando-a definitiva”.
O erro no zero entre 5 e 50 é do próprio texto. Um ato falho digno de estudo de psiquê. Fundamentalmente, ambos os crimes anteriormente citados têm pena máxima ou igual a 4 anos (artigo 10 Lei 9.296/96) ou inferior (artigo 154-A CP). Ocorre que a definição de organização criminosa dada pela Lei 12.850/13 é: reunião de quatro ou mais pessoas para “prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos”. Portanto, sua aplicação somente é possível para crimes cujas penas máximas previstas sejam maiores de 4 anos, não igual. Não cabe a acusação ou condenação por organização criminosa no caso descrito.
Segue o juiz na condenação por lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98, artigo 1º – pena de 3 a 10 anos) fixando em 6 anos e 6 meses! A lavagem de dinheiro é um tipo de receptação especial. Ambos os crimes visam dificultar usufruir-se do fruto do crime anterior. Evidente que, por uma questão de proporcionalidade constitucional, o crime de lavagem não pode ter pena fixada acima da pena do crime anterior.
A aplicação do crime de lavagem de dinheiro era limitada quando se editou a lei pelos crimes antecedentes (tráfico de drogas, terrorismo, contrabando de armas, extorsão mediante sequestro, crimes contra a administração pública, contra o sistema financeiro, organização criminosa).
Com a revogação da lista, aplica-se lavagem em tudo. No entanto, sendo o tipo de pena de 3 a 10 anos, inicialmente cabe afirmar que não pode ser aplicável a crimes cujas penas cominadas sejam menores que 3 anos! Não haveria lógica de proporcionalidade, para dificultar o crime anterior, a pena ser maior, e, no caso concreto, para se punir um crime de menor potencial ofensivo (artigo 154-A CP), aplicar um tipo cuja pena pode chegar a 10 anos!
Algo que precisa ser analisado com parcimônia é a teoria de que pode haver acusação e condenação do crime de lavagem mesmo sem a acusação do crime “antecedente” ou do qual se originam os valores ilícitos. Nessa sentença, nenhum dos crimes que geraram as mensagens resultou valores. Há uma descrição de fraudes bancárias independentes (!) mas sem a acusação desses crimes! Esse é o gancho para a condenação de lavagem. Os crimes bancários que não são objeto da condenação.
Está na hora de o Supremo se debruçar sobre a necessidade da condenação do crime “antecedente” como condição da condenação de lavagem, assim como fez na condição objetiva de punibilidade nos crimes tributários, vinculando a necessidade de existência de débito declarado para o crime de sonegação. Mesmo recentemente, atrelando a área penal à absolvição no processo de improbidade (REsp. 1.847.488/SP, REsp 1.689.173/SC, HC 367.173/SP).
O juiz, ao fim, “passa a régua” e soma todas as penas chegando a 20 anos. A sentença é um claro exemplo do que Lenio Streck denuncia, todos os dias, o absurdo da ideia de que o juiz pode livremente interpretar a lei e de uma “cultura” equivocada da liberdade de decidir.
É oportuno recordar que o juiz sentenciante, Ricardo Augusto Soares Leite, substituto da 10ª Vara Federal de Brasília, surfou na onda da “lava jato”, chegando a proibir o funcionamento do Instituto Lula. Percebe-se claramente que a imparcialidade é um mito, pois não existe. Toda decisão judicial carrega as marcas de quem a profere. Exatamente por isso é preciso impor e criar os limites da lei e da ciência (doutrina) como balizas das decisões judiciais — no exercício daquilo que o já mencionado Lenio Streck chama de constrangimento epistemológico.
Em artigo anterior, abordei o que é o movimento dos cyberpunks, da “militarização do ciberespaço” e o Wikileaks, sem esquecer do jornalista Julian Assange vítima de perseguição e injustiça.
Augusto Thompson, grande advogado criminalista e professor que nos deixou em 2007, dizia: “Sabe a diferença do criminoso político para o não político? É que o não político não sabe que seu crime é político”!
Delgatti mudou a história do país com a “vaza jato” e trouxe ao público as entranhas das relações promíscuas de Sergio Moro e dos procuradores, entre os quais Deltan Dallagnol. Agora, confessa crimes e denuncia novos abusos, conforme assistimos em seu depoimento à CPMI do 8 de Janeiro. No mínimo estranho que essa absurda condenação venha neste momento, mostrando que ainda no Poder Judiciário há movimentos que utilizam o Direito Penal como simbolismo político.
[1] “Invasão de dispositivo informático
Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput .
§ 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico.
§ 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
§ 4º Na hipótese do § 3º , aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos.
§ 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra:
I – Presidente da República, governadores e prefeitos;
II – Presidente do Supremo Tribunal Federal;
III – Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou
IV – dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal.”
“Ação penal
Art. 154-B. Nos crimes definidos no art. 154-A, somente se procede mediante representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços públicos.”
Publicado originalmente no Conjur