No primeiro trimestre deste ano, entre janeiro e 20 de março de 2023, 918 trabalhadores foram resgatados em condições semelhantes à de escravidão. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), houve uma alta de 124% em relação aos primeiros três meses do último ano. O número é recorde para um primeiro trimestre em 15 anos.
Os estados de Goiás e Rio Grande do Sul lideram os casos deste ano no país. Em Goiás, 365 pessoas foram resgatadas, já no Rio Grande do Sul foram 293 pessoas, sendo 207 só em Bento Gonçalves, em vinícolas ligadas a Salton, Garibaldi e Aurora – empresas líderes do ramo.
No ano passado, 2.575 trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados de condições análogas às de escravo. Entre eles, 35 eram crianças e adolescentes e 87% estavam em atividades rurais. Ao todo – a partir da criação do sistema de combate à escravidão no Brasil, vigente desde 1995 – os números de resgatados somam mais de 60 mil trabalhadores e trabalhadoras vítimas da superexploração capitalista.
As principais atividades econômicas fiscalizadas usando mão-de-obra análoga à de escravo nos últimos anos, estão ligadas ao agronegócio, como: cultivo de cana-de-açúcar, de alho, café, maçã, soja, criação de bovinos, entre outras.
Débora Nunes, da direção nacional do MST afirma que a recorrência do trabalho análogo à escravidão no campo no país, se estrutura do ponto de vista histórico, desde a sua formação social, política e econômica, elementos que estão presentes do Brasil colônia até os dias atuais, onde prevalecem também as condições precarizadas do trabalho. “A escravização de trabalhadores integra o tripé da concentração da terra do grande latifúndio e produção da monocultura, sobretudo para exportação.” – sinaliza a dirigente.
“É definido como trabalho análogo ao escravo, os seres humanos condicionados ao trabalho forçado, em jornadas intensas, em condições degradantes e inclusive de restrição de locomoção, de ir e vir. Uma vez que nessas propriedades, os trabalhadores são forçados a adquirir dívidas, no atendimento a necessidades básicas, desde alimentação, do próprio deslocamento, passagem; fazendo com que esses trabalhadores fiquem sem poder ir embora, de voltar para suas cidades, para suas casas, em nome de supostas dívidas que nunca acabam, que sempre são agigantadas.” – denuncia Nunes.
Segundo Débora, tal recorrência dessa realidade no campo ocorrem “porque as relações sociais, elas ainda estão aos moldes do que era o Brasil colônia, como reflexo de uma elite que não consegue conceber e não consegue aceitar a possibilidade de um outro formato, de um outro modelo de organização do campo, onde de fato, as pessoas possam viver de forma livre, de forma digna, cumprindo papéis importantes que historicamente os camponeses cumpriram e cumprem no campo, mas de forma livre, de forma humana e de forma saudável.” – pontua.
Nos últimos anos, o projeto de desmonte do governo Bolsonaro, como reflexo ao apoio das elites nacionais e interesses de ruralistas, desmantelou a fiscalização e extinguiu no seu primeiro ano de governo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Por isso, o retorno da atuação da fiscalização do trabalho, a partir do governo Lula, tem reportado o aumento das operações e consequentemente do número de trabalhadores resgatados de condições degradantes sob domínio de supostos empregadores.
Diego Moreira, dirigente nacional do Setor de Produção do MST, declara que “é de extrema importância que o Estado brasileiro volte a fortalecer políticas, fortalecer mecanismos de identificar, de resgatar, devolver a dignidade roubada, arrancada desses trabalhadores e trabalhadoras através da exploração do trabalho análogo ao escravo. E possa ter mecanismos de condenação desses e dessas que o exerce.” – destacou.
“E que essas áreas, onde são resgatados, possam ser destinadas para a União transformá-las em indenização a esses trabalhadores e trabalhadoras, transformando também essas áreas em assentamentos da reforma agrária. Para que essas áreas que foram espaço palco do trabalho escravo, possam se voltar para a produção de alimentos, para a geração de emprego e dignidade, renda para o povo brasileiro, para os trabalhadores.” – enfatiza Moreira.
Reforma Agrária Popular e Cooperação Agrícola
E é nesse sentido que ambos dirigentes destacam a atuação do MST, não só no enfrentamento, na denúncia, mas também na superação desse modelo precarizado e de superexploração da mão de obra no campo, no meio rural, numa perspectiva de construção da emancipação.
E nessa perspectiva, o MST tem construído ao longo dos seus 39 anos, outros paradigmas e outras relações, uma nova sociabilidade, compreendendo que a reforma agrária pode produzir não apenas as condições possíveis de existência das famílias camponesas, mas através disso, novas relações de trabalho e com o meio ambiente.
“Nós enquanto MST, já temos uma larga experiência na implementação das cooperativas, cooperativas de produção, cooperativas de trabalho, cooperativa de comercialização, para que, através do trabalho cooperado, nós possamos e construindo relações sociais de produção digna tanto entre trabalhadores, quanto com a natureza” – assinala Diego.
Hoje, o MST conta com 160 cooperativas, 120 agroindústrias e 1900 associações em todo o Brasil, que potencializam a produção de alimentos saudáveis nos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária, construindo relações de trabalho dignas e melhorando a renda das famílias camponesas.
Dessa forma, o Movimento vem desenvolvendo ao longo de quase quatro décadas, experiências que vão justamente na contramão dessas relações de superexploração, dessas relações de trabalho precarizadas no meio rural, mencionam os dirigentes.
“Contudo, é essencial reforçarmos que o Estado brasileiro tem um papel essencial na garantia de políticas públicas, no fomento a outras formas de produção que não sejam as grandes extensões de terra, que não sejam as commodities, pensando no mercado externo. Mas de fomentar novas formas de organização no campo, na produção de alimentos saudáveis, com a agroecologia como matriz produtiva, para alimentar o povo brasileiro.” – cita Nunes.
Para tanto, é necessário potencializar a formação de cooperativas, o desenvolvimento do trabalho cooperado. “Mas que esses trabalhadores também, para além de ter dignidade nesse trabalho cooperado, possam ter moradia com a implementação de agrovilas, espaços comunitários onde haja o exercício do lazer, onde se tenha cultura, educação, saúde” – dimensões importantes para além do trabalho, aponta Diego.
“Então, a construção da reforma agrária popular existe como forma de garantir através da terra as condições para que as pessoas não só sobrevivam, mas para que elas possam existir com dignidade, tendo acesso à Terra como forma de trabalho, acesso a políticas públicas de moradia digna, de crédito, de estruturação da produção, de ter acesso a políticas públicas de educação, de cultura, enfim, aquilo que é e de direito do povo brasileiro” – complementa Débora.
Nunes menciona que é necessário muita organização para que se cobre dos Poderes do Estado brasileiro tais políticas, “que sem sombra de dúvida, é uma contribuição fundamental e essencial, não apenas para mudar a realidade do campo, mas também para que a gente possa contribuir na superação de problemas estruturais que existem, que persistem na nossa sociedade, já que grande parte desses problemas têm raízes justamente na forma como a questão agrária se estruturou e persiste até os dias atuais.”
A expectativa enquanto Movimento “é que possamos logo, através de ação do Estado e da sociedade brasileira, virar essas páginas tristes da nossa história, que ainda nos persegue como uma ferida que não quer sarar, que é esse tema da exploração do trabalho escravo, que mostra essa face triste da burguesia agrária brasileira, que nunca abriu mão de explorar mão de obra escravizada.” – cita Moreira.