“Contraprodutivo”, “imprudente” e “irresponsável” são os adjetivos que descrevem a gestão do coronavírus por Jair Bolsonaro no Brasil, segundo Merike Blofield, diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos do centro de pesquisa alemão Giga Institute for Global and Area Studies.
A especialista em América Latina classifica o Brasil entre os países que pior gerem a crise na região. “O governo (Bolsonaro) envia uma série de mensagens contraditórias”, afirma, o que agrava um quadro que já era preocupante. “Há um perigo com militares no poder na América Latina”.
Na contramão de países como Argentina e Costa Rica, a professora de Ciências Políticas na Universidade de Hamburgo explica que o Brasil se lança num quadro perigoso diante dos apelos ao fim do confinamento social, seja pelo presidente, seja por manifestantes em seu apoio. “Acabar com o confinamento agora provocaria uma saturação desses sistemas de saúde”.
Nesta entrevista para o Diário do Centro do Mundo, Blofield fala do ineditismo que o bolsonarismo representa na história recente do Brasil. Finlandesa, afirma que o país é o oposto ocidental da nação que figura frequentemente entre as democracias mais sólidas do mundo. Desde que Bolsonaro assumiu, explica, a distância entre ambos só aumentou.
DCM: Quais as melhores gestões da pandemia do coronavirus na América Latina?
Merike Blofield: Depende do aspecto da gestão. Há dois países que gerem a crise sanitária muito bem no aspecto social, Argentina e Costa Rica. O Peru também se destaca por algumas medidas.
DCM: Por que esses países têm gerido bem a crise?
Merike: Em primeiro lugar, eles implementaram cedo medidas de isolamento social. Na região, há 50% da população que trabalha no setor informal e altos níveis de pobreza.
Quando você começa a implementar esse tipo de medida, somado aos efeitos econômicos da pandemia do coronavírus, há uma queda drástica na renda. Então você precisa assegurar uma renda suficiente às famílias.
Os países que têm sido capazes de mobilizar e entregar uma assistência econômica são os mesmos países que tiveram a capacidade de gerir a crise nesses últimos dois meses e meio.
DCM: Quais são as piores gestões da pandemia do coronavírus?
Merike: Um país de que ouvimos falar muito pouco e que tem gerido a pandemia muito mal é a Nicarágua. Um outro país, onde nada ia bem antes da pandemia, a Venezuela. Além deles, México e Brasil. Os líderes do México e do Brasil, em especial do Brasil.
DCM: O presidente mexicano mudou de posicionamento, mas Jair Bolsonaro mantém o mesmo. Como você reage a isso?
Merike: Ele (Bolsonaro) está colocando em perigo a saúde da maior parte da população de modo desnecessário.
Você pode ver governadores se opondo a ele, um Congresso juntando-se a essa posição. Por exemplo, já no final de março, eles aprovaram uma lei de renda mínima para ajudar as pessoas durante a crise.
Creio que ele (Bolsonaro) está ficando cada vez mais isolado. Os mais populares, proeminentes, muitos diriam os “melhores” ministros de seu governo saíram nas últimas semanas.
DCM: Por que, apesar do fato de Bolsonaro ter ratificado a renda mínima, você considera que a gestão do presidente é uma das piores da América Latina, junto com Nicarágua e Venezuela?
Merike: Eu não diria isso em relação à Venezuela. O governo (Bolsonaro) envia uma série de mensagens contraditórias. Ele se comporta de modo muito imprudente. Ele vai ao encontro de pessoas em público, manifestantes.
Mesmo a implementação da renda básica emergencial tem uma série de problemas. Muitas pessoas que deveriam receber não estão recebendo. Ele passou o último ano e meio desmantelando as agências governamentais, e agora provavelmente estamos vendo os resultados.
DCM: Você concorda com as comparações feitas na Europa entre a maneira como Trump e Bolsonaro gerem essa crise?
Merike: Sim, são dois líderes populistas que promovem informações falsas, minando o Estado de Direito, atacando os que estão tentando promover o bem público durante a crise.
DCM: De que maneira você vê os pedidos de Bolsonaro para acabar com o confinamento?
Merike: Agora o Brasil está numa explosão de infecções. Então terminar o confinamento agora vai produzir efeitos mais tarde. O número de pacientes nas UTIs é muito diferente de acordo com os estados. Há estados que têm 90% da sua capacidade utilizada nesse exato momento, especialmente na região amazônica.
Acabar com o confinamento agora provocaria uma saturação desses sistemas de saúde, o que seria muito perigoso e contraprodutivo. Especialmente em algumas áreas do Brasil, é cedo demais para fazer isso. É mais uma manobra política do que baseada em evidências de saúde pública.
DCM: Como você reage às manifestações contrárias ao confinamento em apoio a Bolsonaro?
Merike: De um modo geral, esse não é o momento para fazer esse tipo de manifestação. Elas estão colocando as pessoas em perigo. Manifestar-se é um elemento fundamental da democracia, mas agora estamos numa circunstância extraordinária, de uma pandemia. Em especial, manifestações em apoio a um presidente que está se comportando de modo irresponsável durante a pandemia, é algo insensato. Contraprodutivo, eu diria.
DCM: Você acredita que esse tipo de manifestação é comparável ao que se vê nos Estados Unidos ou na Alemanha?
Merike: É um mesmo fenômeno, no qual as pessoas dizem que o vírus não é tão perigoso enquanto os especialistas em saúde pública dizem o contrário; que as medidas de confinamento são um ataque às liberdades individuais. O que é interessante nos Estados Unidos e no Brasil é que as manifestações são em apoio ao governo atual.
Nos Estados Unidos, são contra os governadores, mas são apoiadores do governo federal. Na Alemanha, elas se opõem ao governo federal. As políticas de governo (federal da Alemanha) são muito diferentes das que são adotadas nos Estados Unidos ou no Brasil.
DCM: Na sua análise, por que ainda há um apoio a Bolsonaro?
Merike: Eu penso que ele tem uma base muito sólida de apoio, em torno de 33% (da população). Eu não sei quantas dessas pessoas o apoiariam independentemente do que ele fizer. Eles o veem de um modo religioso. Qualquer coisa que ele disser, vão defender. Quem criticar, verão como alguém tentando destruí-lo. É um fenômeno similar ao que ocorre nos Estados Unidos, mas essa base no Brasil parece ser menor.
DCM: É um perigo para a democracia?
Merike: O que é perigoso para a democracia é quando não há discussão baseada em evidências e quando atos ilegais ou antiéticos do poder executivo minam o Estado de Direito e concentram poder.
DCM: Bolsonaro deve ser o primeiro líder político a perder o poder durante a crise do coronavírus?
Merike: Há motivos para ser destituído, mas não sei se o será. Não posso responder (risos).
DCM: Como você vê o papel do exército nessa crise no Brasil?
Merike: Eu penso que em qualquer democracia os militares deveriam ter um papel restrito à Constituição. Alguns setores do exército no Brasil almejam-no, outros não. Há um perigo com militares no poder na América Latina.
DCM: Tendo em vista sua pesquisa acadêmica, o que ocorre atualmente no Brasil é algo novo?
Merike: Sim, no período que concerne a História que testemunhei ao longo da minha vida (risos). Desde que o Brasil se redemocratizou, não havíamos visto o fenômeno de um líder de tipo Bolsonaro. Os presidentes dos anos 1990 e começo do século XXI eram relativamente competentes. E é claro que a crise do coronavírus é um grande choque. Combinando os dois, você tem uma tempestade no Brasil.
DCM: Sendo uma finlandesa, de um país onde a democracia consta frequentemente como uma das mais consolidadas do mundo, comparando as duas situações atuais, entre Brasil e Finlândia há uma enorme distância?
Merike: São países tão diferentes. De um certo modo, eles representam dois extremos dentro do mundo ocidental. Para o melhor e para o pior. Considerando indicadores de desenvolvimento humano, índices de igualdade social são a questão chave, uma grande desigualdade social e econômica no Brasil, o que exerce um papel no desempenho negativo e mais baixo nos indicadores de desenvolvimento humano. Isso gera um impacto no funcionamento da democracia.
DCM: Nos últimos anos, essa diferença tem sido ampliada ou diminuída?
Merike: Indicadores no Brasil pioraram nos últimos anos por conta da crise econômica, mas também por políticas públicas, especialmente desde que Bolsonaro assumiu; a situação piorou em relação à pobreza, às desigualdades socioeconômicas, às condições dos povos indígenas, ambientais, na floresta amazônica. Nesse sentido, eu diria que a distância nesses indicadores está aumentando.