Pelo que se vê das decisões dos magistrados que estão à frente da Lava Jato, não é exagero dizer que a condenação de Lula já estava decidida antes mesmo que o procurador Deltan Dallagnol apresentasse em power point a primeira denúncia contra o ex-presidente.
Mas quem lê a edição desta semana da revista Época, do grupo Globo, pode chegar a outra conclusão: a culpa pela condenação de Lula é de sua defesa, que estaria dividida.
Segundo reportagem de sete paginas — uma enormidade para uma revista que encolheu nos últimos meses e se tornou encarte do jornal O Globo —, Cristiano Zanin Martins, à frente dos processos de Lula desde o primeiro dia, estaria se desentendendo com Sepúlveda Pertence, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.
O texto cita um fato público para chegar a uma conclusão equivocada: houve mesmo divergência entre os advogados, mas não pelas razões apresentadas.
O fato público: o G1, do mesmo grupo que edita O Globo, publicou na semana passada texto com o título que destacava um suposto pedido dos advogados de prisão domiciliar para Lula.
Esse pedido nunca existiu formalmente e, por isso, Cristiano Zanin Martins divulgou nota para informar que a defesa de Lula reiterava o pedido de liberdade plena ao ex-presidente.
Alguns dias depois, Lula recebeu o pastor Ariovaldo Ramos na prisão e disse a ele que, de fato, não queria prisão domiciliar nem outra forma de cumprimento de pena.
A ele, só interessava a liberdade plena.
Quem tem certeza da própria inocência e uma biografia a defender não negocia meia prisão ou meia liberdade. Luta pelo reconhecimento público de que não é criminoso.
Ramos, ao deixar a Superintendência da PF em Curitiba, fez essa declaração, provavelmente a pedido do próprio Lula.
Foi um claro endosso à nota de Zanin, mas também é enganoso imaginar que Lula tenha querido apenas prestigiar o advogado.
Quem acompanha os desdobramentos dos processos judiciais a que Lula está sendo submetido sabe que o ex-presidente sempre rejeitou qualquer outra hipótese que não seja a absolvição.
A nota de Zanin, portanto, não saiu da cabeça dele, nem foi uma afronta a Sepúlveda Pertence, que ele reconhece como um dos mais respeitados juristas e cuja contratação apoiou.
Foi uma manifestação de lealdade a Lula, seu cliente.
Por sua vez, Sepúlveda Pertence agiu como ex-presidente do STF ao supostamente concordar com a prisão domiciliar a Lula.
Com cultura de magistrado, ele entendeu que, transformando o regime fechado de cumprimento (antecipado) da pena pela prisão domiciliar, estaria beneficiando o cliente.
Na verdade, se estivesse defendendo qualquer outro pessoa, seria um golaço de advogado, pois, de fato, quem não gostaria de cumprir pena em casa em vez de permanecer trancado em uma sala de 15 metros quadrados?
Todos, menos Lula. Melhor: Lula não concorda com o cumprimento de pena em lugar nenhum. Se o trancam ou se o mandam para casa, o fazem por conta própria, não com anuência ou pedido dele. Soberba? Jamais. Então por quê?
Porque Lula não é mais apenas uma pessoa física, ele é um ser histórico na plenitude da expressão.
Ou, como Lula disse em seu último discurso, ele é uma ideia. E ideias não podem ser encarceradas.
Por isso, não faz sentido que ele peça prisão domiciliar, que poderia parecer reconhecimento de culpa.
Se o STF quer conceder a domiciliar, que o faça, mas não pode ser este o pedido da defesa.
A defesa de Lula é de alta complexidade, porque não envolve apenas questões jurídicas. Seus advogados trabalham com a lei em uma mão e a biografia de Lula na outra.
É uma situação que lembra muito uma passagem da peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes.
A certa altura, Branca diz ao noivo, que estava preso e sendo torturado, que dissesse tudo que seus algozes queriam. Só assim eles deixariam de torturá-lo.
Augusto, o noivo, responde com uma frase lapidar:
“Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar. Nem mesmo em troca do sol. Nem mesmo em troca da liberdade.”
Este é o ponto.
No cenário da vida real, a prisão domiciliar de Lula é muito mais uma solução para a Justiça do que para o ex-presidente.
Lula é muito maior do que o cárcere e seus carcereiros. A cada dia, fica mais evidente que é alvo de perseguição.
Basta ver que, depois que foi preso, a rejeição a uma candidatura dele a presidente caiu e sua liderança se manteve.
Ao mesmo tempo, a imagem do Poder Judiciário está cada vez mais negativa e, nesse ponto, é preciso reconhecer que, ao contrário do que informou Época, a estratégia de defesa técnica e firme do escritório de Cristiano Zanin Martins foi correta.
Ao lado de Zanin, tem papel destacado na defesa de Lula Valeska Teixeira, que também é advogada experiente e esposa dele.
Os dois não são criminalistas de formação e talvez esteja aí uma vantagem da defesa, combinada com a experiência e prestígio de José Roberto Batochio, ex-presidente da OAB, ele sim figura de peso no direito penal brasileiro.
No que diz respeito apenas à experiência de Zanin e Valeska, a atuação deles em casos empresariais complexos, nos quais situações que podem ser entendidas como criminais esbarram em questões civis e meramente tributárias, permite a Lula uma abordagem mais abrangente das acusações.
Em vez de discutir apenas questões penais, seus advogados vão ao âmago das denúncias, discutem o mérito das acusações.
Por exemplo, essa experiência mais abrangente permitiu incluir no processo criminal documentos que desmontavam a acusação de que Lula recebeu o triplex do Guarujá como propina.
O escritório vasculhou cartórios até encontrar documentos que mostravam que a OAS havia dado os imóveis em garantia de operações bancárias e no processo de recuperação judicial.
Moro desprezou a prova, mas até o trabalhador mais simples sabe que o ex-presidente teria que ser burro se aceitasse como propina um apartamento penhorado.
Qualquer estagiário sabe que, no direito penal, o ônus da prova cabe a quem acusa.
Mas, com Zanin e Valeska, o ex-presidente fez o caminho inverso dos processos criminais: apresentou provas de inocência.
Não era esse o objetivo, mas, tornando públicos a inconsistência e as incoerências das acusações, os dois contribuíram muito para inverter as curvas de popularidade de Lula e de Moro.
Quando começou a Lava Jato, Moro tinha 90% de aprovação. Hoje, segundo a última pesquisa Ipsos, apenas 37% dos brasileiros aprovam a atuação do juiz.
Nenhum criminalista toparia ir à ONU para denunciar o Estado brasileiro pela prática de lawfare, isto é, o uso do aparato legal para derrotar um cidadão, visto como inimigo.
ONU aceitou a denúncia, e é difícil que não seja convencida de que a parcialidade escancarada de setores do Judiciário brasileiro — cujo símbolo maior é Moro — não seja vista como uma estratégia de guerra para destruir uma liderança política.
O time que defende Lula há mais tempo — como Batochio, Zanin e Valeska — tem consciência de que a defesa do ex-presidente não se limita ao ambiente dos tribunais — não por vontade deles, mas pela aliança notória que existe entre policiais, procuradores e juízes com a velha imprensa.
Enquanto uns seguram, outros batem.
Sepúlveda entrou no processo quando a condenação pelo TRF-4 já estava consumada. É o advogado perfeito para a batalha que se trava no Supremo.
Fez o que qualquer jurista da sua envergadura faria: procurou convencer os ministros da inocência de Lula.
É claro que quer a sua liberdade, mas, não a conseguindo, concordou com uma medida possível. O STF é um tribunal político, e não só a corte suprema do Brasil.
Por isso, é natural que tenha se melindrado com a nota do escritório de Zanin.
Mas Lula, demonstrando que, mesmo preso, não perdeu a conhecida habilidade política, percebeu e por fez Sepúlveda saber que gostaria que o visitasse.
Deve agradecer pela defesa que faz no Supremo, seu empenho pela liberdade dele, e lembrar que os dois são muito maiores que aqueles que querem lhe conceder meia liberdade ou meia prisão.
No fundo, ambos sabem que “há um mínimo de dignidade que não se pode negociar”.
.x.x.x.
PS: Quanto à reportagem de Época, sem fonte com nome e sobrenome, apenas com aspas de “um petista”, fica nítido que a velha imprensa persiste na estratégia da cortina de fumaça. Centra o foco na defesa de Lula quando, na verdade, deveria abordar a escandalosa manobra de Fachin para manter Lula preso e, também, para o antecipar o veredito sobre sua inelegibilidade. O escândalo está aí, mas Época gasta sete páginas para falar de um mal estar entre advogados.