PUBLICADO NO AMAZÔNIA REAL
POR FÁBIO ZUKER
Uma missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19 em populações indígenas de Roraima, que contou com a presença do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e de representantes do Ministério da Saúde, levou 66 mil comprimidos de cloroquina 150 MG para o tratamento de indígenas de nove etnias das Terras Indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol. A ação entregou aos distritos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como máscaras, luvas e aventais. Participaram da missão 24 profissionais de saúde das Forças Armadas e jornalistas de agências internacionais. Quatro aeronaves foram utilizadas pela ação.
A cloroquina vem sendo reivindicada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus, embora o uso da droga seja desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A entidade internacional suspendeu definitivamente os testes com hidroxicloroquina e nem sequer chegou a incluir a cloroquina em seu projeto de pesquisa internacional. Para a decisão, foram suficientes as conclusões negativas sobre efeitos adversos da cloroquina para um possível tratamento de Covid-19, conforme estudos de diversos países analisados pela OMS.
Em entrevista à agência Amazônia Real, o médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), alertou para os perigos no uso da cloroquina entre indígenas: “a prudência, a ética, o bom-senso, falam pelo não uso. Mas, contra todas as evidências científicas, insistem em usar”, disse o especialista, que trabalha com populações indígenas e em isolamento voluntário na Amazônia há mais de 50 anos.
A missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19 em populações indígenas de Roraima aconteceu entre segunda-feira (29 de junho) e quarta-feira (1º de julho). “Trouxemos cerca de 4 toneladas de materiais de saúde para atender à comunidade local. O governo está preocupado com a saúde do brasileiro”, declarou o general Fernando de Azevedo e Silva, em coletiva de imprensa em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami. De acordo com a nota divulgada pelo ministério, o general ressaltou que “nessa localidade não foi constatado nenhum caso de coronavírus entre indígenas”.
Em Boa Vista, o Ministério Público Federal (MPF) foi acionado por Júnior Hekurari Yanomami, Presidente do Conselho Distrital de Saúde indígena do Dsei Yanomami, que requisitou nesta quinta-feira (2) a instauração de um inquérito Policial Federal sobre a missão militar.
“O objetivo é apurar a distribuição de cloroquina às comunidades indígenas, o ingresso nos territórios sem prévia consulta de seus povos – em desrespeito à decisão de isolamento de muitas de suas comunidades -, a violação das regras de distanciamento social, a presença expressiva de meios de comunicação em contato com os indígenas e a eficiência de operação com vultoso gasto de recursos públicos”, disse o MPF em nota oficial.
A missão interministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia da Covid-19, acompanhada pelo general Fernando Azevedo e Silva, enviou aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas insumos para abastecer o Dsei Leste Roraima, para atender 49.706 indígenas de sete etnias dos 34 polos base de saúde, entre eles, Flexal e Ticoça; e de 37 polos do Dsei Yanomami para atender 25.486 indígenas em Surucucu, Auaris, Waikas e Maturacá.
Além dos 66 mil comprimidos de Cloroquina que foram distribuídos pelo governo federal entre os dois Dseis, a missão levou para o tratamento de Covid-19 em indígenas, mais 24.500 comprimidos de 150 MG de cloroquina, 15.708 comprimidos de Azitromicina 600 MG Frasco 15 ml; 10 mil comprimidos de Prednisona de 20 MG; 59.480 comprimidos de Prednisona de 05 MG, além de 78 mil comprimidos de Paracetamol 500 MG, entre outros remédios. Foram também distribuídos de 5.360 testes rápidos (268 kits) para coronavírus.
Os Dseis são estruturas federais vinculadas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. No Brasil, a Sesai atende a população aldeia, um total de 760.350 pessoas através de 34 Dseis no país. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas. O coordenador da Sesai, coronel da reserva Robson Santos Silva estava na comitiva, acompanhando o general Fernando Azevedo e Silva. Em seu site, a Sesai disse que, durante a ação, foram realizados testagem para Covid-19. “Todos os indígenas testados durante a missão deram resultado negativo”. Indígenas do Vale do Javari questionaram a viagem de Robson Silva ao território, no Amazonas.
Os efeitos da cloroquina
O médico Douglas Rodrigues explica que os efeitos colaterais da cloroquina podem inclusive ser prejudiciais ao paciente acometido por Covid-19, pois enfraquecem ainda mais o corpo já sob ataque do novo coronavírus: “a cloroquina tem efeitos colaterais importantes. É um remédio horrível de se tomar. A pessoa passa muito mal, náuseas, dor de cabeça… São transitórios, embora como não tem um remédio que mate o vírus, quem tem que matar é você, o seu sistema imunológico. Você tem que estar bem, pois está sob ataque. Por isso, esses efeitos colaterais, mesmo que leves, tendem a piorar”.
Além dos riscos gerados ao corpo da pessoa contaminada por debilitar sistema imunológico, o médico ressalta os possíveis danos causados pelo uso de cloroquina ao coração. Rodrigues afirma que “o mais sério dos efeitos colaterais é do lado das arritmias cardíacas. Aqui em São Paulo, todos os hospitais retiraram a cloroquina, inclusive para pacientes internados. O Hospital Albert Einstein soltou uma nota, de que estão convictos desta decisão”.
A cloroquina é um medicamento utilizado normalmente para o tratamento da malária, e que em um primeiro momento da pandemia de Covid-19 mostrou-se promissora no tratamento da nova doença. Mas devido aos efeitos colaterais de testes realizados em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, o medicamento têm tido seu uso desaconselhado. Além do Hospital Israelita Albert Einstein que recomendou a não utilização de cloroquina para o tratamento da Covid-19, outras entidades médicas pediram a suspensão do uso do medicamento para casos leves de Covid-19, como fez o Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Douglas Rodrigues ressalta as consequências dos possíveis efeitos colaterais do uso de cloroquina em áreas indígenas: “fazendo isso em área indígena você não tem como monitorar. É um efeito colateral relativamente raro, mas eu não consigo fazer nem um eletrocardiograma básico para afirmar que a pessoa pode ter uma predisposição à arritmia”.
O médico também destaca que não vê “como essa ação possa impactar de forma positiva na saúde dos Yanomami”. Segundo Rodrigues, trata-se de tratamentos de eficácia não comprovada. “O mais importante seria montar estruturas adequadas para manejo dos casos em área e reforçar as equipes permanentes.”
Para o médico Paulo Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, o uso da cloroquina em populações indígenas “vai amplificar a vulnerabilidade por conta da restrição de acesso, do isolamento geográfico, a falta de um médico especialista, a falta de um leito de um hospital disponível e a falta de monitoramento das funções cardíacas”.
Paulo Basta ressalta que “existem estudos que afirmam que o uso da cloroquina, ou associado a outros antibióticos, como a azitromicina, esteve relacionado ao aumento no número de mortes por Covid-19”. Segundo o médico, existem ainda outras consequências graves quanto ao uso inadvertido da cloroquina para o tratamento da Covid-19. Como a cloroquina é utilizada usualmente para tratar da malária, com o seu uso generalizado para tratar a Covid-19 “corre-se o risco de ocasionar uma seleção dos microrganismos”.
“Eles [os microrganismos que causam a malária] podem sofrer mutações, e se criar uma situação em que a malária vivax, a forma mais comum da doença no país, se torne mais resistente à cloroquina. Um medicamento relativamente barato, produzido no país, pode se tornar ineficaz ao tratamento da malária”, alerta Basta.
Outro efeito negativo ao qual o médico Paulo Basta chama atenção é a possibilidade de que o uso ampliado da cloroquina para a Covid-19 possa dificultar o diagnóstico da própria malária: “se o medicamento não for utilizado adequadamente, ele pode ocultar a malária. Porque os sintomas foram ocultados pelo uso da cloroquina”, reflete o médico.
Paulo Basta também é taxativo: “a cloroquina como indicação terapêutica para a Covid-19 já se mostrou claramente ineficaz. E além de ineficaz, coloca o paciente em risco”.
Outro medicamento enviado pela missão que recebe crítica de Paulo Basta é a prednisona. Trata-se de um corticoide da mesma classe da dexametasona, que, conforme estudos da Universidade de Oxford (Inglaterra), reduziram o percentual de mortes em casos graves de pacientes contaminados pela Covid-19. A missão interministerial enviada às terras indígenas de Roraima pretende distribuir 10 mil comprimidos de prednisona 20 mg e 59.48 comprimidos de prednisona 5mg.
Basta chama atenção para os perigos do uso do medicamento: “o uso de corticosteróide é indicado só quando o paciente está [em estado] grave, e está iniciando um quadro de falência respiratória. Aí sim tem a indicação de fazer uso do corticosteróide e nesse sentido foi confirmado que ele salvou vidas. Mas usar prednisona de maneira profilática, como no caso da cloroquina, isso é o absurdo do absurdo: esse medicamento, se ele for utilizado de maneira crônica, sem acompanhamento, ele compromete o sistema imunológico”.
Assim como alertou Douglas Rodrigues, para Paulo Basta, “o que a pessoa precisa é ter o sistema imune forte, para combater o vírus”.
MPF questiona fala de general
Nesta quinta-feira (2), Júnior Hekurari Yanomami, Presidente do Conselho Distrital de Saúde indígena do Dsei Yanomami, requisitou junto ao Ministério Público Federal a instauração de um inquérito Policial Federal sobre a missão militar. No ofício, ele solicita a averiguação “sobre a distribuição de cloroquina para tratamento de supostos contaminados por Covid-19”.
Júnior Yanomami expôs preocupação com a entrada dos membros da missão interministerial na terra indígena. “Ao tempo em que solicito informar também a este órgão do Ministério Público Federal que, o Secretário Especial de Saúde Indígena e Coordenador da Funai de Brasília, estiveram presentes no Hospital de Campanha – APC, e no dia seguinte deram entrada na Terra Yanomami, o que nos causa preocupação, devido ser um local de tratamento para contaminados do Covid-19”.
O ofício enviado ao Ministério Público Federal questiona também a realização dos testes dos membros da missão: “alegaram a realização do teste rápido para Covid-19 em todas as pessoas que participaram da ação, incluindo jornalistas que vieram de outros países, porém o teste rápido é indicado apenas entre o sétimo e décimo dia do início dos sintomas, como febre e tosse. Não é recomendado para uso em toda a população, uma vez que não consegue diagnosticar o início da doença, como explica o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta”.
Em nota, também publicada hoje, o MPF expressou preocupação com a fala do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, de que a pandemia está controlada na Terra Indígena Yanomami e com a ausência de qualquer medida de proteção territorial em operação que supostamente busca enfrentar a disseminação da Covid-19, cujo principal fator de risco é o garimpo ilegal.
“Diante da aparente tentativa de minimizar a gravidade da pandemia que se alastra diariamente na Terra Indígena Yanomami, o MPF ressalta que aguarda decisão do Tribunal Regional Federal da 1a. Região em recurso interposto na ação civil pública que busca obrigar o Poder Executivo Federal à única medida eficiente de proteção: a elaboração de um plano emergencial de ações para monitoramento territorial efetivo da Terra Indígena Yanomami, combate a ilícitos ambientais e extrusão de infratores ambientais que possam transmitir a Covid-19, inclusive à comunidade isolada Moxihatëtea, está exposta a um risco concreto de genocídio”, disse o MPF.
A Polícia Federal já investiga um conflito, que aconteceu no dia 14 de junho, quando dois indígenas Yanomami foram mortos por garimpeiros na comunidade Xaruna, que fica região da Serra do Parima, município de Alto Alegre, em Roraima. Segundo a Associação Hurukara, 20 mil garimpeiros estão dentro do território ilegalmente.
O que diz o governo federal
A reportagem da Amazônia Real procurou os ministérios da Saúde e da Defesa para esclarecer o envio da medicação cloroquina aos povos indígena de Roraima e o questionamento do MPF sobre o ingresso dos militares sem a anuência dos povos indígenas de Roraima. Em resposta, o Ministério da Defesa disse “que não tem qualquer conhecimento sobre o procedimento aberto pelo Ministério Público Federal em Roraima”.
Sobre o envio da medicação Cloroquina pela missão interministerial de reforço no combate à Covid-19 em populações indígenas de Roraima, o Ministério da Defesa disse que, em parceria com o Ministério da Saúde e a Funai, vem realizando importantes ações de apoio à saúde dos indígenas, com atendimento médico e entrega de mais de quatro toneladas de material de saúde, e confirmou a entrega da medicação. “Os comprimidos de cloroquina, medicamento usado há mais de 70 anos para o tratamento da malária, doença infecciosa, que nos seis primeiros meses de 2020, já registra 48.681 casos só na região Amazônica”.
“Assim, causaria profunda estranheza que o Ministério [MPF], que muito devia se preocupar com o bem-estar dos indígenas, busque criar obstáculos a tal apoio”.
Em relação ao questionamento do MPF do ingresso em território indígena, o Ministério da Defesa disse que a comitiva esteve “em visita oficial ao Pelotão Especial de Fronteira Surucucu, Organização Militar do Exército Brasileiro, na qual acompanharam o atendimento aos indígenas, antes da visita ao Hospital de Campanha de Boa Vista. Além disso, todos os integrantes da comitiva foram previamente testados por PCR e sorologia, com resultados comprovadamente negativos, antes da realização da visita ao Pelotão”, finalizou a nota. (Colaborou Emily Costa e Kátia Brasil)