Por Kakay
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua”
– em homenagem aos que ficaram e aos 600 mil mortos: Sophia de Mello Breyner Andresen, poema “Ausência”
A proximidade do fim da CPI da Covid já anuncia um vazio nas nossas tardes. O Brasil se acostumou a acompanhar, em tempo real, uma investigação sobre fatos que tocavam e tocam, indistintamente, todas as pessoas com caráter, com empatia e com qualquer rasgo de formação humanista.
Não é uma apuração sobre corrupção em empreiteiras, sobre lucro excessivo dos banqueiros, ou sobre a mídia ou qualquer outro tema que, embora relevante, dificilmente mobiliza a atenção do país. Essa comissão parlamentar de inquérito passou a ser uma forma de nós nos solidarizarmos com as famílias e de resistência contra o escárnio criminoso com que se houve o governo federal e os empresários que agiram por cobiça, por estratégia política, por desumanidade ou por serem mesmos bárbaros, enfim.
Instalada quando o país ainda estava mergulhado no mais profundo caos, no final de abril, com milhares de mortes por dia, acompanhar a transmissão da CPI passou a ser um programa obrigatório. As pessoas, as sérias e responsáveis, estavam há 1 ano em desesperador isolamento. Conviviam com mais de 3.000 mortes diárias pelo vírus e com o espantoso número de 395 mil brasileiros levados, muitos deles pelo cinismo cruel de um governo assassino liderado por um presidente insensato e cultor da morte. Aquele mês de abril era o mais letal da pandemia e a CPI da Covid era uma necessidade, uma urgência inadiável.
É preciso registrar e fazer justiça a esse trabalho investigativo que foi realizado. Independentemente do resultado final, a CPI já prestou inestimável serviço ao Brasil. Foi graças, em boa parte, ao trabalho da comissão que o negacionismo assassino foi enfrentado com seriedade e independência. Sem isso, certamente teríamos o aprofundamento do caos e um número incalculável de mortos.
A ideia inicial era investigar a responsabilidade criminal pelos inúmeros desmandos por parte do presidente da República e de seu grupo mais próximo, ligado ao combate à crise sanitária. À época, eu já falava e escrevia sobre a necessidade de enquadrar esses governantes por responsabilidade, por omissão, pela morte de milhares de brasileiros, por assassinato mesmo, e por todo o caderno de crimes contra a saúde pública e também nos tribunais internacionais, por genocídio e extermínio.
Como a previsão de término da CPI era 7 de julho, defendia que fosse feito um relatório parcial com a explicitação desses crimes e o necessário indiciamento do presidente da República, do ministro da saúde e de outros atores políticos. Depois, eu previa, poderíamos seguir com a CPI 2 para investigar a corrupção e outros crimes. E ainda apontava a máxima do direito penal: sigam o dinheiro.
Naquele momento, a popularidade da CPI era tal que foi compreensível a prorrogação dos trabalhos para o 5 de novembro. Continuo achando que foi um erro não terem votado um relatório parcial com a responsabilização direta dos que tinham as mãos sujas de sangue. E depois continuaria a importante investigação sobre os motivos financeiros da política negacionista e fascista que ousou fazer brasileiros de cobaias humanas. Um acinte. Um nojo. Amparando-me em Manuel Bandeira:
“Aceitar o castigo imerecido
não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
trocar num grito de ódio a que o fez.
…
E então morrer sem uma lágrima,
Que a vida não vale a pena
e a dor de ser vivida.”
Naquela época, vivíamos como que aprisionados por um bando de abutres, aves de rapina, que traçaram um círculo invisível de giz e que ergueram muros para nos tirar a visão e o ar. Com essa tática de sufocamento, a intenção do governo era impedir a resistência e, jogando no enfraquecimento do povo brasileiro –éramos párias internacionais–, continuar no processo de saque contra o Brasil.
O ar que faltava nos hospitais e nos tratamentos, de certa forma, também faltava a todos que sofriam pela insensibilidade doentia de um Presidente sádico e sem limites. Era como se a CPI precisasse tirar, a cada dia, véus dos olhos dos brasileiros. Que obnubilavam a capacidade das pessoas de resistir e de enfrentar. E com o país paralisado, a CPI passou ser um espaço democrático e fomentador de esperança na luta contra o caos e a barbárie.
Daí para diante, bati em algumas teclas que, agora, na reta final, vou me permitir repetir, ainda que com o risco de ser chato.
Mas o momento é, de novo, de reflexão às vésperas do relatório final. É quase tarde, mas ainda é tempo. Lembro-me de Mário de Sá-Carneiro:
“Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.”
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CPI enfrenta poderes imperiais
Para ter efetividade e não frustrar o povo brasileiro que a acompanha com sofreguidão há 6 longos meses, a CPI tem que enfrentar o que venho chamando de poderes imperiais, especialmente do presidente da Câmara e do procurador-geral da República. Se o relatório final for simplesmente desconsiderado ou arquivado será a desmoralização do instituto da CPI.
Mesmo que dezenas de autoridades e empresários, que lucraram com a morte e com a dor de milhões de brasileiros, sejam processados e condenados, se o chefe e mentor desse genocídio não for responsabilizado, restará um gosto amargo de frustração na boca de cada um de nós.
Por isso, repito, neste momento de definição e em homenagem aos brasileiros que se foram e aos que ficaram e querem justiça, o relatório final tem que ser analisado, nos casos de imputação de crimes de responsabilidade ao presidente da República, pelo plenário da Câmara dos Deputados. Só a voz coletiva, na manifestação livre e soberana do plenário da Casa do Povo, pode decidir os caminhos a serem tomados. A voz solitária do presidente da Câmara não pode se sobrepor e calar a força e representatividade do colegiado que representa o povo brasileiro.
Da mesma forma, a apresentação do relatório final ao chefe do Ministério Público Federal, que é o dono da ação penal, por imperativo constitucional, e que irá analisar a eventual responsabilidade criminal do presidente da República, não pode simplesmente ser objeto de arquivamento. Em não se convencendo o procurador-geral da República de elementos suficientes para apresentar a denúncia, é necessário dar contorno à ação penal subsidiária, que concederá aos legitimados o direito de provocar a Suprema Corte para analisar se realmente ocorreu ou não crime.
O país que acompanhou atento os trabalhos da CPI é o mesmo que irá cobrar sua efetividade. Será a hora de nós brasileiros nos sentirmos representados pelo trabalho sério levado a efeito pela Comissão ou de nos frustramos por esse trabalho não ter sido submetido ao escrutínio do povo brasileiro representado pelo Congresso Nacional e pela rigorosa análise do plenário do Supremo Tribunal Federal. É hora de cobrar.
Remetendo-me ao velho Machado de Assis, no poema “O Desfecho”:
“Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.”