Esta matéria foi financiada através de um crowdfunding do DCM
Martin Granovsky, jornalista do diário Página 12, com quatro décadas de estrada, faz uma observação sobre a singularidade das eleições deste domingo: “A fome nunca foi tema de campanha na Argentina. Agora é”.
A frase sintetiza a principal razão da queda de Maurício Macri nas pesquisas. O aumento da miséria e a perda do poder aquisitivo generalizou-se nos últimos quatro anos.
Quem caminha pelas ruas centrais de Buenos Aires não percebe o que se passa no resto do país. A cidade segue com seu ar europeu, cafés e restaurantes charmosos e cheios de gente e índices relativamente baixos de violência. Mas mesmo a classe média, que votou maciçamente no candidato que prometeu acabar com a corrupção, mudou de preferência.
BÁLSAMO PARA O MERCADO
A eleição de Maurício Macri, em outubro de 2015, foi um bálsamo para o mercado. Em 18 de maio de 2016, a revista Veja noticiava: “Cem dias de Macri realinham a Argentina com o mercado e as grandes potências. (…) A política externa do novo presidente argentino tem recebido elogios, sobretudo por sua aproximação com Washington”.
Três anos e meio depois, o quadro mudou. O Financial Times, bíblia do neoliberalismo, em 13 de outubro último não escondia a decepção: “Macri falhou significativamente na economia e agora busca apelar a valores como tolerância e democracia, que têm pouco apelo para além de sua base social de classe média”.
A previsível vitória da oposição no próximo domingo, representada pela dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner, terá um nítido componente social, ao se voltar para o tradicional segmento peronista, as camadas que perderam renda nos últimos anos. A campanha é centrada na recuperação do emprego e na redução da pobreza.
Embora oculta nas regiões centrais, a queda da qualidade de vida é sentida quando se caminha para bairros de classe média baixa. As placas de “aluga-se” nas portas de estabelecimentos comerciais dão a tônica na paisagem urbana.
CONCENTRAÇÃO ELEITORAL
A província de Buenos Aires, onde está a capital, concentra um total de 11.867.979 eleitores. Estes representam 37% do total de pessoas habilitadas a votar no país. Se somadas às províncias de Córdoba e Santa Fé, teremos quase 70% do eleitorado.
A capital concentra a maior parte dos problemas nacionais. Aqui está concentrada a riqueza e a pobreza extrema. “A Argentina profunda, que em última instância decide eleições, está aqui”, ressalta Granovsky. “As crianças das escolas públicas não conseguem se concentrar nas aulas por causa da fome. Isso pesa para os pais diante da urna”, diz.
BLINDAGEM MIDIÁTICA
“Ao mesmo tempo, Macri contou com uma blindagem dos meios de comunicação que nem mesmo [Carlos] Menem (1989-99) conseguiu”, aponta Martin Becerra, professor de Comunicação da Universidade de Quilmes e autor de “Os donos da palavra”, extensa radiografia da concentração da propriedade midiática no país. “Nenhum dos grandes problemas sociais mereceu atenção dos grandes meios”, completa. Ao contrário, Maurício Macri foi sempre apresentado como o homem que iria resolver os problemas legados pela “pesada herança” do kirchnerismo.
Nas ruas, a decepção com o atual presidente é perceptível. Uma parcela do eleitorado que apoiou Nestor e Cristina Kirchner a partir de 2003 optou por Macri, em 2015, embalados pelo discurso da mudança. Agora, o pêndulo das preferências faz sua volta, em favor da frente peronista.
“Apesar de termos na candidatura de Alberto e Cristina uma reunificação do peronismo, não existe mais um eleitorado fiel a este ou àquele partido, como havia entre os anos 1940-70”, sublinha Julieta Haidar, professora de Relações do Trabalho na Universidade de Buenos Aires. Para ela, a decepção com Macri é tão decisiva na definição do voto quanto a percepção de que, com todos os problemas, nos governos de Cristina a vida era melhor.
REUNIFICAÇÃO DO PERONISMO
A reunificação do peronismo é o dado principal dessas eleições. A corrente principal da política argentina se dividiu durante o governo Menem, nos anos 1990. Depois de vender a companhia de petróleo, o Banco de la Nación, a telefonia, todas as empresas de energia, seu governo leiloou até mesmo o zoológico de Buenos Aires.
A tradicional Central Geral do Trabalho, fundada em 1930, entrou em acirrada disputa interna e, em 1992, houve um grande racha. Saíram as categorias mais prejudicadas pelas reformas, como o funcionalismo público e os trabalhadores das empresas privatizadas. Foi fundada a CTA, aa Central de Trabalhadores Argentinos.
No início deste mês, o congresso da entidade aprovou sua volta à CGT, recompondo grande parte da base organizada do peronismo. Conta-se nas ruas que até mesmo o Papa teria trabalhado nessa direção. É boato, mas um indicativo é real: Sua Santidade sequer planejou uma visita ao país durante a gestão macrista.
RECUPERAÇÃO DIFÍCIL
Mesmo assim, o futuro governo terá de se deparar com mudanças substanciais no mercado de trabalho. Cerca de cinco mil indústrias fecharam as portas nos últimos quatro anos. Martin Becerra conta que a Univeridade de Quilmes está situada a 20 quilômetros do centro de Buenos Aires. “Era uma região fabril”, conta. A maioria das empresas não funciona mais e a instituição pública na qual trabalha agora está ilhada por edifícios vazios. “O emprego de vários estudantes não existe mais, o que cria um problema social muito sério”.
Desde a manhã desta sexta-feira, todas as manifestações de campanha estão proibidas pela legislação eleitoral. Até domingo, como acontece no Brasil, a disputa se dará no boca a boca e no convencimento individual. É pouco provável que surpresas ocorram. Tanto Becerra quanto Julieta Haidar duvidam da possibilidade de fraudes capazes de mudar expectativas já consolidadas. “O voto aqui se dá por cédula impressa. Parece mais atrasado que no Brasil, porém possibilita uma recontagem segura, diante de qualquer questionamento”, sublinha Becerra.