Publicado originalmente no Consultor Jurídico
Por Daniel Vital
A ação de ocultar cadáver prevista no artigo 211 do Código Penal só é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado. Quando a ocultação praticada há 49 anos ainda não foi desvelada, não há viés temporário. Não pode, portanto, ser classificada como permanente.
Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acolheu os embargos de declaração ajuizados pelo Ministério Público Federal, mas sem efeitos infringentes, e assim manteve o resultado de trancamento da ação penal pela morte do ex-deputado Rubens Paiva durante a ditadura militar.
O julgamento dos embargos foi iniciado em maio e encerrado na terça-feira (15/9), com voto-vista do ministro Felix Fischer, que acompanhou o relator, ministro Joel Ilan Paciornik.
Ocultação de cadáver foi um dos crimes pelos quais foram denunciados cinco militares. A denúncia foi oferecida em maio de 2014, 43 anos após o desparecimento do ex-deputado, em 1971. Segundo o MPF, Paiva foi morto nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, no Rio de Janeiro.
Em setembro de 2014, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar para suspender a tramitação da ação penal, no âmbito de uma reclamação por afronta à Lei da Anistia (Lei 6.683/79). O caso (Reclamação 18.686) ainda não teve o mérito julgado e está concluso ao ministro Alexandre de Moraes, sucessor na cadeira de Teori na corte.
A defesa também levou ao STJ o pedido de trancamento da ação penal, que teve liminar indeferida em 2015, pelo ministro Gurgel de Faria, e mérito julgado em dezembro de 2019. Na ocasião, a 5ª Turma seguiu o relator, ministro Paciornik, e aplicou a Lei da Anistia para determinar a extinção da punibilidade, conforme o artigo 107 do Código Penal, e o consequente trancamento da ação penal.
O crime de ocultação de cadáver era elemento-chave para a acusação, nesse contexto. Em decisão anterior à do STJ, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou o trancamento por entender que não ocorrera prescrição em relação ao delito, por sua natureza de crime permanente.
O tema tangenciou a análise do recurso em Habeas Corpus pela 5ª Turma, em dezembro, e foi definido em julgamento dos embargos de declaração. O ministro Paciornik reconheceu a existência de divergência sobre o caráter permanente da ocultação de cadáver, ao contrário dos outros núcleos previstos no artigo 211 do Código Penal — destruição e subtração, estes considerados crimes instantâneos.
Segundo o relator, da interpretação da doutrina somente é possível afirmar que a ação de “ocultar cadáver” é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado.
“Dentro das circunstâncias fáticas delineadas, não é de se deduzir que a ocultação, excluindo a hipótese de destruição, como pretende a denúncia, praticada há 49 anos seja dotada de algum viés temporário. Não pode, portanto, a conduta ser classificada como permanente, mas instantânea de efeitos permanentes”, concluiu.
Ação suspensa ou trancada?
Até ser trancada pelo STJ, a ação penal seguia suspensa por decisão do ministro Teori. Ainda assim, ele permitiu, em 2015, a produção antecipada de provas devido à idade avançada e ao delicado estado de saúde de algumas das 15 testemunhas listadas pela PGR.
O ministro Felix Fischer chegou a propor Questão de Ordem para suspender o julgamento do recurso até decisão definitiva do STF na reclamação. A 5ª Turma, no entanto, entendeu que não haveria prejuízo na análise.
Isso porque permanecia risco à liberdade de locomoção dos acusados diante do recebimento da denúncia em primeira instância e ao fato da liminar do STF, de caráter precário e temporário, ter apenas suspendido o curso da ação penal.
Caso não-encerrado
O caso do ex-deputado Rubens Paiva ainda pode ser afetado em pelo menos dois processos. O primeiro, pelo julgamento da Reclamação 18.686 no Supremo. O segundo, pela Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 320, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSol) e que objetiva uma revisão da Lei da Anistia.
O pedido é para que a lei, já referendada pelo Supremo em 2010, não se aplique aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos — militares ou civis — contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos. E que não valha também para autores de crimes continuados permanentes.
Este processo se baseia na condenação do Brasil em julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em novembro de 2010, segundo a qual a Lei da Anistia impede a investigação e a sanção a graves violações de direitos humanos e é incompatível com a Convenção Americana.
Ao analisar o tema em dezembro, a 5ª Turma esclareceu que a decisão da CIDH não afasta legislação pátria anterior ao próprio tratado internacional que a instituiu.
“A meu ver, a concessão da ordem de Habeas Corpus de ofício no caso em tela, para determinar o trancamento da ação penal e reconhecer a incidência da Lei de Anistia, não contraria as obrigações assumidas pelo Estado Brasileiro ao aderir ao Pacto de San José da Costa Rica, mas apenas afirma a constitucionalidade da legislação pátria no que diz respeito à aplicação da lei penal no tempo, a irretroatividade da lei penal mais gravosa e a sua incorporação ao texto constitucional”, apontou o ministro Joel Ilan Paciornik, na ocasião.