Em agosto passado, a BBC contou como é a ocupação das ruas do México pelo Exército, algo que já dura mais de uma década. Não há previsão de volta aos quartéis.
A adoção das Forças Armadas em atividades como operações policiais e patrulhamento foi decidida pelo então recém-empossado presidente Felipe Calderón e logo ganhou o nome de guerra ao narcotráfico – a estratégia casava com a tentativa dele de melhorar sua situação política, já fragilizada.
No Brasil, tanto o presidente Michel Temer quanto o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, ambos do PMDB, enfrentam crises de popularidade que poderiam ser amenizadas caso a operação com as Forças Armadas fosse bem-sucedida. A história mexicana, no entanto, sugere que o desfecho pode não ser dos melhores.
A partir de 2007, houve uma escalada na participação de militares em ações conjuntas de segurança pública no México – chegando a mais de 52 mil agentes em 2011. Ao mesmo tempo, cresceram também as denúncias de tortura por parte dos agentes. Entre dezembro de 2012 e julho de 2014, foram 1.148 queixas registradas pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México (CNDH).
Por outro lado, a violência que o Exército pretendia combater não deu trégua. Dados do Instituto Nacional de Estatística e Geografia do México (Inegi) mostram um crescimento constante no número de homicídios de 2007 (8.867 mortes) a 2011 (27.213) no país.
E se, entre 2000 e 2008, a cifra anual de assassinatos não ultrapassou os 10 mil, depois de 2010 ela sempre ficou acima de 20 mil. A título de comparação, no Estado do Rio o Exército enfrentará uma situação de 6.262 mortes apenas em 2016 – a maior taxa desde 2010.
“A violência não diminuiu no México. Sobre o aumento no número de homicídios, é importante destacar que muitos deles correspondem à violência de cartel contra cartel, embora isso não torne as coisas melhores. De qualquer forma, a entrada do Exército deveria ter sido uma cirurgia de emergência, mas se tornou um problema permanente”, avalia Gabriel Guerra Castellanos, fundador do Conselho Mexicano de Assuntos Internacionais (COME).
Já para Thiago Rodrigues, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) que estuda há décadas o narcotráfico nas Américas, a repressão militar acirrou os conflitos no país.
“A guerra não só se tornou mais violenta, como se expandiu pelo país”, aponta o pesquisador brasileiro, coautor de um artigo a ser publicado em setembro sobre a recente escalada da violência na cidade mexicana de Acapulco. “A repressão ajuda a depurar o próprio narcotráfico. É como se fosse um cassino: a aposta fica mais alta, a remuneração também, e só ficam os jogadores grandes.”
Mas ainda que especialistas e militares façam duras críticas à estratégia de colocar soldados nas ruas mexicanas, uma pesquisa do instituto Parametría realizada no começo de 2017 mostrou que seis em cada dez mexicanos preferem que os militares façam esse trabalho de segurança pública, enquanto só 18% deram preferência aos policiais.
Outros 20% rejeitaram as duas instituições – esse índice tem crescido nos últimos anos, o que, segundo o Paramatría, pode manifestar a insatisfação com acusações de abusos cometidas por militares.
‘Função desnaturalizada’
Por outro lado, os próprios militares mexicanos passaram a criticar a atuação das Forças Armadas na segurança pública – o sucessor de Calderón, Enrique Peña Nieto, que assumiu a Presidência em 2012, optou por manter a operação dos soldados nas ruas.
A extensão da missão, além da exposição dos militares à violência e a críticas cada vez mais frequentes à atuação do grupo, levou o secretário de Defesa Nacional, o general Salvador Cienfuegos – equivalente ao ministro da Defesa no Brasil -, a fazer uma declaração que surpreendeu a opinião pública no final de 2016.
“Não estudamos para perseguir delinquentes“, afirmou Cienfuegos, em coletiva de imprensa. “Nossa função é outra e está sendo desnaturalizada.”
Na ocasião, Cienfuegos pediu ao governo mexicano que se mobilizasse para aprovar um marco legal que regulamentasse a atuação dos soldados nas ruas e que estabelecesse um prazo para que os membros das Forças Armadas voltassem aos quartéis.
Até hoje essa regulamentação não foi feita, e a ação militar se baseia em um dispositivo constitucional cuja legalidade da aplicação é questionada por alguns especialistas.
“Nossos soldados já pensam se continuarão enfrentando esses grupos (os cartéis do tráfico), com o risco de serem processados por um delito que tenha a ver com violação dos direitos humanos, ou é mais conveniente que os processemos por não obedecerem”, disse Cienfuegos, para quem o combate ao narcotráfico não “vai ser resolvido com balas”.
Posteriormente, Cienfuegos suavizou as críticas à colocação dos militares nas ruas: em março, ele afirmou que as Forças Armadas continuariam nessa atividade porque “as pessoas não querem que nos retiremos”, e essa era “nada mais do que a ordem do presidente da República”.
No Rio, as tropas militares – que somam mais de 10 mil agentes – marcaram presença no último fim de semana de julho em diversos locais da cidade, inclusive em pontos turísticos. Segundo o jornal O Globo, os agentes chegaram a ser recebidos com aplausos pela população.
“No Brasil, a justificativa do uso militar é o mesma utilizada no México há uma década: o de que as polícias estaduais são corruptas e fracas, então é preciso deslocar uma força muito mais poderosa (para combater o crime organizado)”, afirma Rodrigues, que ressalva que “toda análise comparada é perigosa” e que “o que acontece em um lugar não necessariamente acontecerá no outro”.
Pedido de desculpas
Em uma visita ao México em 2014, o relator das Nações Unidas sobre tortura, Juan Méndez, chegou a defender a retirada definitiva das forças militares de atividades de segurança pública, restringindo sua participação a operações de apoio, com supervisão de órgãos judiciais civis.
Em seu relatório final, Méndez citou os dados da Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México (CNDH) e apontou para a punição irrisória a crimes cometidos por militares.
“A tortura e os maus-tratos (…) são generalizados no México e ocorrem em um contexto de impunidade. (…) Há evidência da participação ativa das forças policiais e ministeriais de quase todas as jurisdições e das Forças Armadas”, diz um trecho.
Em abril de 2016, o general Cienfuegos protagonizou o primeiro pedido de desculpas feito por um representante das Forças Armadas do México por um caso de tortura envolvendo o Exército.
Diante de milhares de soldados, o secretário chamou de “repugnante, lamentável e deplorável” a conduta de militares que apareceram em um vídeo, multiplicado pelas redes sociais, em que a jovem Elvira Margarito é torturada com golpes e asfixia – ligada ao cartel da Família Michoacana, ela sobreviveu e foi encaminhada à prisão.
Por sua vez, no final de 2016 foi publicada uma carta de autoria de militares, alguns inclusive condenados por crimes cometidos durante a guerra ao narcotráfico, em que eles dizem terem sido “usados pelo Estado mexicano”, que não os teria preparado para a função que hoje cumprem nas ruas.
“O senhor Felipe Calderón (…) declarou guerra ao tráfico de drogas e isso teve um término muito infeliz, embora com alguma condescendência se possa aceitar que haja tido boa fé, apesar da confusão gerada e de suas trágicas consequências”, diz um trecho da carta.
Especialistas também questionam as condições de treinamento dos soldados para as missões urbanas. Para Gabriel Guerra Castellanos, a participação direta dos militares na segurança pública era necessária no enfrentamento aos cartéis, mas seguiu uma sequência inversa: primeiro veio a colocação dos militares na rua, e depois a urgência por uma preparação desses agentes.
Ao comentar a preferência dos mexicanos de que o Exército atue na segurança pública no lugar dos policiais, Castellanos aponta que, no país, as Forças Armadas têm historicamente níveis muito altos de aceitação pela sociedade – diferentemente de outros países latino-americanos, ali não houve ditadura militar.
“Em algumas cidades do Sul, ou na Cidade do México, essa atuação militar é mais questionada. Isso por questões ideológicas, ligadas a uma tradição mais democrática e liberal. A situação da capital é muito diferente de outras regiões dominadas pelos cartéis, como no Norte, onde a população aplaude a chegada dos militares”, diz o mexicano.
Thiago Rodrigues destaca que outros países latinos têm experiências anteriores à do México e do Brasil na convergência de ações de segurança nacional e segurança pública. É o caso de Colômbia, Peru, Nicarágua, Guatemala e El Salvador, onde a luta contra guerrilhas forjou a tendência a partir dos anos 1970.
O pesquisador aponta também a influência do “proibicionismo” (termo que define a atuação restritiva dos Estados na proibição de drogas) nesse tipo de ação. Tal regime estaria por trás, inclusive, da Iniciativa Mérida, um acordo milionário firmado entre os Estados Unidos e o México em 2007 pelo combate ao tráfico de drogas. “O modelo militar é o proibicionismo na sua potência mais elevada”, opina o pesquisador.