Críticas ao sacrifício religioso de animais, autorizado pela Justiça, são por ódio aos negros e pobres. Por Igor Veloso

Atualizado em 6 de abril de 2019 às 7:46
Terreiro vandalizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense

POR IGOR VELOSO

Como diz Ângela Davis “numa sociedade racista não basta não ser racista é necessário ser anti racista”. A luta contra o racismo não é apenas do negro, é uma luta de todos os brasileiros contra as heranças dos tempos escravagistas que mancham a história do nosso país e ainda se perpetuam por formas variadas.

Para  manter a escravidão durante séculos, foi necessário o apoio de todos os setores da sociedade, desenvolvendo-se assim uma  estrutura que Silvio Almeida explica em cada ponto no seu livro O que é Racismo Estrutural. Muitas táticas foram utilizadas, desde a construção do imaginário da população em relação ao homem negro (sempre o bandido, o garanhão, o cafajeste) e à mulher negra (empregada, prostituta)  nas novelas e filmes, passando pela falta de representatividade de pessoas negras – e indígenas – nas instâncias de comando.

A animalização da pessoa negra e a invisibilização de suas luta também foram instrumentos empregados, como comprova a experiência de Leandro Almeida, 35 anos. Homem negro, morador da periferia, só descobriu na vida adulta que a libertação das pessoas escravizadas foi fruto da luta e resistência dos negros. “Não conheci Dandara nem Zumbi na escola, a história que me contaram a vida inteira, e acredito que  boa parte da população ainda acredite nessa balela, é que tudo só se deu pela generosidade da sinhá Isabel”..

Leandro fala com tristeza das atuais ameaças à lei aprovada pelo presidente Lula em 2003,  determinando o estudo da cultura afro e indígena nas escolas. Outra prática bem comum até os dias atuais é tentar criminalizar, diminuir, desqualificar qualquer coisa que venha do negro ou dos povos originários. Aconteceu com o samba, com os saberes indígenas e acontece agora com o funk e com as religiões de matrizes africanas, para citar duas manifestações da cultura popular.

Criminalização da conquista

Essa semana o Supremo Tribunal Federal definiu por unanimidade que o sacrifício de animais em culto religiosos sem excesso ou crueldade não viola a Constituição. Reparem como, nos momentos em que vencem as minorias, imediatamente surgem correntes para questionar a vitória.

Foi assim nas cotas quando contrários diziam que a medida  reafirmava a incompetência do cotista quando, na realidade, o Estado reconhecia sua incapacidade de garantir a mesma qualidade no ensino básico para todos e reservava como ação afirmativa e de caráter reparador vagas nas universidades para negros, indígenas, deficientes e estudantes da rede pública.

O mesmo se passou  no momento do REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) quando setores privilegiados da sociedade insistiam que o aumento de uma dezena de alunos prejudicaria o aprendizado dos demais.

Conforme nos mostra Jesse Souza em suas obras, isso se dá porque as raízes da escravidão ainda permanecem na sociedade, em nosso comportamento, do ódio ao pobre ao gozo na humilhação.

Em tempos que auto-declarar sua religião afrobrasileira  pode lhe custar a vida dependendo da parte do pais onde vive, em dias onde criminosos invadem terreiros com armas em punho e obrigam líderes a negarem sua fé, quebram seus objetos sagrados e ainda filmam as cenas para exibirem a tortura. Só no último ano já são mais de 30 casos de violência registrados só no estado do Rio de Janeiro mas, o povo de terreiro resiste

“Há séculos passamos por todo tipo de perseguição e criminalização. Diferentes argumentos  são utilizados, teorias claramente racistas e hipócritas.” afirma a yalorixá Livra de Oxum.  “De vez em sempre vemos  um caso desse,  terreiros  invadidos,  aluno impedido de entrar na escola por usar trajes da religião, professor  mandado embora porque ensinou história da África. É uma grande vitória essa decisão para o combate ao preconceito que se espalha”.

O questionamento à vitória do povo de terreiro vem até de figuras consideradas progressista, que utilizando discursos bem semelhante ao dos evangélicos extremistas de direita, revelam a hipocrisia da sociedade brasileira que por séculos de refutam  a discutir o cerne da questão, o verdadeiro assunto que é urgente debater: entender por que a morte de um cachorro no supermercado sensibiliza mais que um jovem negro que é estrangulado na frente de centenas de pessoas, dentre elas sua mãe, que gritou desesperadamente até ver seu filho, um jovem com problemas psíquicos  perder a vida. Precisamos falar que essa é uma herança do imaginário construído de que todo preto é bandido.

“Defende os  bichinhos mas não se importa quando um jovem negro é assassinado porque pra você preto vale menos que um animal” falou a jornalista e atriz Maíra Azevedo, também conhecida como  Tia Má, mandando a real em um vídeo em seu instagram no qual afirma: 

” A luta em defesa dos animais é mais do que justa  correta e necessária, não aceitamos nenhum tipo de maltrato, agora você não pode dizer que defende animal e colaborar para morte de gente, você não pode ser leviana, mau caráter e perversa  e sair propagando  inverdades,  sair propagando despautérios que colabora com a intolerância, que  propaga o ódio, quem age assim é leviana mau caráter e perversa, se veste da roupa de militante para agir como meliante  a gente não vai mais admitir esses desrespeito com  as religiões de matriz africana,  nós não vamos mais permitir essa intolerância disfarçada da de militância.”

Muitos membros de terreiros combatem as inverdades que vão sendo espalhadas  sobre sacrifícios de animais domésticos, nada que não  tenha sido feito em toda a história, mas essa vitória não nos tiram. Essa conquista é do povo de terreiro  que resiste diariamente ao estigma que a branquitude tenta impor há séculos. 

Aos que estão abertos ao saber ancestral,  lhes convido  a conhecer um axé, vá de coração aberto, deixe a prepotência de lado para aprender um pouco com esse povo que dribla as opressões com a habilidade de um bom jogador. Garanto que descobrirá que, em nosso abate, não há tortura, tortura há na indústria aviária, indústria de cosméticos que fazem experimentos com animais, tortura há no transporte marítimo de animais vivo. Também descobrirá que na maioria dos terreiros  a carne do animal que não é usada no ritual, serve de comida, tanto para os filhos da casa quanto para comunidade do entorno, muitas vezes desassistida pelo Estado.

“Tudo o  que quando era preto era do demônio e depois que virou branco foi aceito, eu vou chamar de blues,  Jesus é blues”  Baco Exú do Blues. A benção a Bogbosé que leva o nome do nosso axé , ao meu pai Márcio de Ogum e todas minhas irmãs e irmão de santo.