De bicicleta em Londres

Atualizado em 9 de fevereiro de 2011 às 8:57
O Bishops e o Tâmisa

Quem está cansado de Londres está cansado da vida.

A frase de Samuel Johnson, o Dr Johnson, um dos maiores intelectuais britânicos, não poderia ser mais verdadeira.

Penso nela neste dia em que o sol se esparramou sobre a cidade depois de meses de ausência. Londres começa a viver o sentimento que você tem na véspera de uma festa esperada. O sol está chegando.

Peguei minha bicicleta depois de um bom tempo e fui ao Bishops Park, uma imensidão verde que margeia o Tâmisa aqui pertinho de casa. Ali fica o Fulham’s Palace, que foi a residência dos bispos em Londres. Daí o nome.

Gosto de ir de bicicleta até o final do parque. Você dá no estádio do Fulham, um time intermediário de Londres.

Quando o sol aparece, como hoje, levo alguma coisa para ler num banco do Bishops. Hoje estava com os originais do romance da jovem escritora Camila Tebbet. Ela me pediu que avaliasse. Começo a ler e sei que não é comédia. O personagem principal, um homem de 35 anos, sabe que tem dez dias de vida.

O que eu faria se tivesse só dez dias, penso?

Sexo, sexo e sexo? E os livros que não li? E as palavras que deveria ter dito e não disse para pessoas essenciais? Meus filhos sabem o quanto os amo? Vão se lembrar do pai como eu lembro do meu?

E meu livro, vou terminar? Meus livros, não meu livro: afinal é um de ficção e um outro de não ficção: tenho que concluí-los antes do prazo fatal. Enquanto não viro pó. Não, não vou acreditar em nada apenas porque tenho dez dias. Putz, prometi a Camilla visitá-la em Ribeirão, terra de minha mãe que é grudada na cidade de meu pai, Cravinhos. Mas não vou ter tempo. Dez dias. Duzentas e quarenta horas. Menos de 10 000 segundos, e eles não param de passar.

Socorro!

Enfim, de bicicleta outra vez

Minhas divagações são interrompidas por Anthony, um inglês filho de jamaicanos. Tem 43 anos, é falante e está desempregado. É solteiro. Ele se senta no banco em que me acomodei no parque, e imediatamente começa a falar.

Ele me conta que há cinco anos se converteu ao islamismo, mas não está feliz. Tem sido uma época dura para ele. Cadê Maomé? “Rezo, rezo e rezo e nada de bom me acontece”, ele diz. Pondero que religião não é comércio. Você não dá dez orações e recebe dez dinheiros. Não é assim.

Anthony está evidentemente perdido, mais uma alma solitária no imenso aquário humano de Londres.

Ele me conta que tem uma irmã na Flórida. Aconselho-o a passar um tempo lá. Você tem que mudar de céu algumas vezes na vida. Conto minha própria experiência ao vir para Londres.

E se também ele tivesse apenas mais dez dias de vida?

Ele parece ouvir com atenção meu conselho de viajar. Talvez estivesse esperando encontrar alguém que lhe dissesse para fazer as malas e tentar a vida na América.

Brinco com ele. Cantarolo Three Little Birds, de Bob Marley, e digo a ele que ele poderia viver como cantor na Flórida. Bob Marley Jr. Basta colocar dread na cabeça raspada. Ele ri.

“Não vou esquecer o que você disse”, ele me fala quando me despeço.

Pego minha bicicleta.

Lembro de uma cena em Butch Cassidy em que alguém diz que a bicicleta era o futuro. Foi antes que os carros aparecessem.

Demorou mais de cem anos, mas eis que a humilde bicicleta se tornou o veículo do futuro.

Penso nisso ao pedalar de volta a casa, iluminado por um sol esplêndido. Ainda bem que tenho mais que dez dias, ou não poderia desfrutar da primavera londrina que foi hoje majestosamente anunciada.