Meu relato de uma visita a Copenhague.
No filme Butch Cassidy, de 1968, com o qual a dupla Paul Newman e Robert Redford simplesmente arrebatou o mundo, há uma cena memorável. O xerife sobe num palanque e faz um discurso inflamado para convencer os ouvintes a se juntarem aos dois bandidos — Butch Cassidy (Newman) e Sundance Kid (Redford) que vinham roubando sistematicamente trens carregados de dinheiro. Ninguém se voluntaria – até que um homem levanta a mão e pede a palavra. O xerife, com alegria, abre espaço no palanque ao suposto voluntário. Mas o que ele queria era outra coisa: vender bicicletas para a platéia. “Eis o futuro”, diz ele, uma bicicleta nas mãos.
O filme é ambientado no final do século XIX – uma época em que o futuro se chamava, na verdade, automóvel. A bicicleta pareceria, nas décadas seguintes, condenada a ser algo para crianças e, eventualmente, adultos dispostos a pedalar nos finais de semana. Mas eis que, numa das reviravoltas mais espetaculares do mundo moderno, a humilde bicicleta acabou se tornando o futuro do qual o vendedor esperto do filme Butch Cassidy falou. As bicicletas são tão representativas da era que vivemos como a internet e a comida orgânica. Dois fatores poderosos fizeram delas uma paixão planetária: primeiro, a preocupação com o meio ambiente, sacrificado pela colossal carga de gás carbônico originada dos carros. Depois, o cuidado com a saúde: andar de bicicleta faz bem. Isso tudo terminaria por dar um glamour improvável às bikes nos dias de hoje. Em boa parte do mundo, um homem que compareça a um encontro numa bicicleta tende a provocar mais interesse na mulher do que se estivesse com um carrão que denuncia despreocupação com a natureza.
Copenhague, a coloridamente alegre capital da Dinamarca, é, no que diz respeito às bicicletas, o futuro do futuro. Uma em cada três pessoas de Copenhague – cuja população é de cerca de 1,2 milhão de habitantes — se locomove de bicicletas para suas atividades diárias. Em Copenhague você vai trabalhar de bicicleta. Vai passear. Vai estudar. Vai namorar. Vai fazer compras. Vai também, se quiser, simplesmente vagabundear.
As bicicletas tornam ainda mais bela uma cidade já fascinante pelo design inovador de seus prédios. Os ciclistas enfeitam suas bicicletas. Muitas mulheres colocam flores na cesta que, à frente do guidão, é usada para levar a bolsa – ou eventualmente uma criança. Modelos comuns vão ficando mais e mais raros em Copenhague. A moda, hoje, são bicicletas cargueiras – nas quais uma família inteira pode passear num final de semana.
Copenhague é uma cidade cara a mim. Se existe amor à primeira vista entre uma pessoa e uma cidade, este é meu caso. Conheci-a alguns anos atrás, quando fui fazer uma reportagem que explicasse por que a Dinamarca era o país mais feliz do mundo, segundo estudos que combinam dados concretos (salários médios, educação e saúde etc) com uma avaliação em que você diz qual é seu grau de satisfação com a vida de um a dez.
Não foi difícil descobrir os motivos da alegria dinamarquesa. A Dinamarca – como toda a Escandinávia, da Noruega à Suécia, da Finlândia à Islândia – tem um sistema único de capitalismo em que o bem estar das pessoas é uma prioridade absoluta e enraizada. Os escandinavos construíram um consenso pelo qual os impostos altos são considerados o preço justo para que você tenha uma sociedade harmoniosa. Num mundo em que os ricos e as corporações inventaram um sem número de fórmulas legais de não pagar taxas, nos países escandinavos a declaração de renda das autoridades está, por lei, exposta na internet. (Na Inglaterra, sacudida recentemente por escândalos de evasão de impostos, o exemplo escandinavo de transparência está sendo considerado. Um levantamento mostrou que a maior parte dos ingleses gostaria que até a rainha expusesse na internet o quanto tem e o quanto paga de imposto.)
Me encantei com o que vi – e acabei voltando sempre que pude para Copenhague. Também fiz questão de conhecer a Suécia e a Noruega. A novidade para mim, em minha mais recente visita à Dinamarca, foi fazer o que todo mundo em Copenhague faz: andar de bicicleta. Com isso, me integrei como nunca antes à deslumbrante, dinâmica paisagem local.
Um escritor do passado disse, sobre Paris, que é uma cidade tão única que à medida que você numa viagem vai-se aproximando dela as pessoas se tornam mais e mais inteligentes. De Copenhague, você pode dizer que quanto mais perto está dela mais as pessoas são alegres, bonitas e vivazes. Copenhague é uma festa sobre duas rodas.
Não tive que me empenhar para achar uma bicicleta. O hotel em que fiquei tinha, como é comum lá, várias à disposição dos hóspedes para alugar. As ruas são planas, e o espaço concedido aos ciclistas é generoso. Duas pessoas podem ir lado a lado sem problema nenhum. Ultrapassagens são seguras. Você não é obrigado a invadir a área dos carros. Sou um ciclista irritantemente lento para quem está atrás de mim, e por isso fui dezenas de vezes ultrapassado. Um leve toque de campainha, e eu sabia que vinha alguém mais rápido. Mas minha morosidade patética jamais foi objeto de caretas ou xingamentos. A amabilidade faz parte da cultura dos que vivem em Copenhague.
Fui passado por todo tipo de ciclistas: jovens, crianças, mulheres e velhos, por gente de bermuda e também por executivos com paletó, gravata e a clássica maleta. Copenhague é, hoje, um lugar visitado por autoridades de muitos países interessados no futuro de que falava o vendedor do filme Butch Cassidy. É visível o orgulho com que os nativos falam de sua terra como a “capital mundial” dos ciclistas.
Não foi por sorte que isso aconteceu. No passado pré-automóveis, Copenhague tinha boas trilhas para o ciclismo. Mas, como aconteceu em toda parte, o advento do carro no começo do século XX desalojou as bicicletas. Copenhague, nos anos 60, era igual a todas as outras metrópoles: congestionamento, barulho de buzinas, o ar poluído pelos milhares de escapamentos. A crise do petróleo dos anos 1970 – os produtores árabes elevaram barbaramente os preços em represália ao apoio dos Estados Unidos a Israel nas guerras no Oriente Médio – teve em Copenhague um efeito colateral imensamente positivo. Ter e sobretudo manter um carro foi ficando mais e mais complicado. Adveio daí o estímulo para que a cidade encontrasse em suas próprias raízes a resposta para o drama urbano provocado pelo petróleo escasso e caro. Copenhague redescobriu a bicicleta, e nunca mais a largou.
Uma prestigiada autoridade municipal – o nome do cargo é “embaixador das bicicletas” – comanda a equipe que zela pela segurança dos ciclistas. Um acidente em algum ponto é o bastante para que se investigue se foi um acaso ou se há mesmo um risco. A prioridade, na rua, são os ciclistas: os faróis abrem antes para eles.
Nestes dias, há um intenso debate sobre se vale a pena ou não tornar obrigatório o uso de capacete. É realmente raro você encontrar alguém de capacete. Existe uma enorme resistência, entre os ciclistas, ao capacete. Inicialmente, me pareceu bizarra a discussão. Mas depois entendi melhor o ponto dos opositores. Primeiro, afirmam eles, os motoristas de carro têm mais cuidado com gente sem capacete. Faz sentido? Faz. Pelo menos em Copenhague e em outros centros extremamente amigáveis para os ciclistas, como Amsterdã. Em São Paulo, e na maior parte das cidades do mundo, Londres e Paris incluídas, seria uma aberração. Mas lá não.
Depois, foi constatado em pesquisas que o capacete tira de muita gente a vontade de andar de bicicleta. Há aí, evidentemente, uma questão estética também. Poucas coisas são mais ridículas que um capacete de bicicleta. As bonitas descendentes de vikings que desfilam sua graça e energia física pedalando pelas ruas de Copenhague podem, até elas, se tornar objeto de riso e não de admiração. Não que eu fosse ficar mais feio do que já sou, mas também desprezei o capacete. Se a exigência vai vingar ou não, é coisa que só vou saber na próxima vez que for a Copenhague, algo que haverá de não demorar. Copenhague é uma cidade para a qual você não diz adeus, mas até breve.
A temperatura não é um obstáculo. Mesmo no inverno, que lá é cruel como um cossaco russo, os copenhaguenses pedalam como se estivessem no Leblon. Mas os brasileiros não temos a mesma relação com o frio. Então, é bom você escolher com cuidado o período de sua viagem a Copenhague, caso queira ter lá a experiência soberba de se locomover como os nativos — e se sentir na vanguarda da humanidade, no futuro do futuro. Julho, agosto e setembro são os melhores meses para isso. É o verão, e você vai encontrar temperaturas na casa dos 20 e poucos graus, às vezes até um pouco mais. Abril, maio e junho – a primavera — são para os valentes que não têm medo de enfrentar ventos e frios nórdicos. Os demais meses, para andar de bicicleta, é para os copenhaguenses – e habitantes heróicos dos trópicos.
Isso não quer dizer que você deve descartar Copenhague fora do verão. Com ou sem bicicleta, é uma cidade que apaixona. Me lembro, na primeira vez que fui, do caso de um lixeiro que trabalhava pela manhã e treinava à tarde a equipe de handebol da escola pública – e excelente – em que suas duas filhas adolescentes estudavam. Ele era tratado com o mesmo respeito dedicado a um médico, ou a um advogado, ou a um engenheiro.
Quis entender isso. Na Escandinávia, soube, vigora a “Janteloven”. Isso significa “As leis de Jante”. Jante é o nome de uma cidade fictícia criada por um escritor que teve uma formidável influência sobre os escandinavos. Entre as “leis de Jante”, a mais importante era a que estabelecia que, a despeito de diferenças de patrimônio, escolaridade etc, ninguém era melhor que ninguém. Eu não sou melhor que você e nem você é melhor que eu. É uma quase utopia igualitária e próspera numa humanidade caótica, predadora, socialmente injusta nos limites do paroxismo. Por isso Copenhague , a maravilhosa capital do país mais feliz do mundo , é parada obrigatória para mim em qualquer estação, sob quaisquer circunstâncias – de bicicleta ou não.
O texto acima foi publicado, originalmente, na edição de setembro da revista Viagem & Turismo.