Rachel Sheherazade continua firme em sua cavalgada para cavar um pênalti no papel de vítima da falta de liberdade de expressão — esse conceito elástico utilizado principalmente para ofender, achincalhar e fingir indignação quando a responsabilidade é cobrada.
Rachel, que diz estar de férias, reclamou que sofre uma “pressão política muito forte” para que “seja calada”. “PSOL e PCdoB entraram com representações contra meu direito de opinião e tentam cercear minha liberdade de expressão chantageando a emissora onde trabalho”, declarou.
“É clara a tentativa de censura por meio de intimidação. Não é possível que, em plena democracia, a mordaça prevaleça”.
Ora, é a plena democracia e o estado de direito que foram postos em xeque com sua defesa de justiceiros. Os dois partidos moveram representações na Procuradora Geral da República para que ela e o SBT respondam por apologia ao crime.
O procurador-geral, Rodrigo Janot, declarou que viu “com muita preocupação” a denúncia. Janot, aliás, conseguiu a proeza de declarar que não assistiu ao vídeo, num caso único de alguém vivo que passou ao largo de uma nova invenção chamada YouTube.
“Volto segunda-feira, se Deus quiser”, disse a apresentadora, que é evangélica.
Há uma inversão de papeis. Quem foi linchado foi o rapaz que depois acabou preso a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço. Rachel está em João Pessoa tomando sol e água de coco.
Se sua arrogância não fosse tão grande, teria material para refletir sobre a violência com a ajuda do papa, a quem já definiu como um “sacerdote inspirador, humilde e sem vaidade”, numa das raras vezes em que não semeava o ódio na televisão.
Francisco escreveu uma carta a amigos argentinos em que se referiu ao linchamento, em Rosário, de David Moreira, de 18 anos. David foi morto após um espancamento promovido por dezenas de pessoas. Fora flagrado roubando a bolsa de uma mulher.
A barbaridade acabou gerando outras em diversos locais do país. Lá também há gente defendendo que, na ausência de segurança do governo, os cidadãos tomem uma atitude. Cristina Krichner foi obrigada a fazer um pronunciamento.
“A cena doeu em mim”, escreveu Francisco na carta. “‘Fuenteovejuna’, eu me disse. Sentia os chutes na alma. Não era um marciano, era um rapaz de nosso povo; é verdade, um delinquente. E me lembrei de Jesus. O que ele diria se estivesse de árbitro ali? Quem esteja livre de pecado que dê o primeiro chute”.
(“Fuenteovejuna” é a obra prima do dramaturgo espanhol Lope de Vega, gênio do século 17. Fala de um comendador que é justiçado pelos habitantes da vila com aquele nome. Quando o juiz pergunta quem é o assassino, todos eles combinam de responder “Fuenteovejuna” e assumem coletivamente o assassinato)
“Me doía tudo”, prossegue Francisco. “Me doía o corpo do rapaz, me doía o coração dos que o chutavam. Pensei que esse garoto foi feito por nós, cresceu entre nós, foi educado entre nós. O que falhou? O pior que pode acontecer é que nos esqueçamos da cena. E que o Senhor nos dê a graça de poder chorar… chorar pelo rapaz delinquente, chorar também por nós”.
Rachel Sheherazada chora por si própria em sua martirização canastrona.