Decisão de Celso de Mello é vergonhosa, juridicamente equivocada e dá sobrevida ao lavajatismo. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 18 de agosto de 2020 às 7:55
Dallagnol e Celso de Mello: o novo e o velho trabalhando para que tudo fique como está, sem justiça

Celso de Mello livrou Deltan Dallagnol do julgamento pelo Conselho Nacional do Ministério Público com um argumento que não resiste a uma análise mais aprofundada dos fatos.

O decano do STF aceitou a alegação dos advogados de Dallagnol de que o afastamento do coordenador da Lava Jato feriria o princípio do procurador natural.

Ou seja, por esse princípio, não teria sido Dallagnol que escolheu comandar as investigações que receberiam, mais tarde, o nome de Lava Jato.

O caso teria parado em sua mesa porque ele já estava ali quando as primeiras diligências começaram. Portanto, como titular do posto e autor da ação, ele agora seria inamovível.

O princípio é excelente, fundamental para a garantia do devido processo legal, já que impede remoções de caráter político e também que uma autoridade saia por aí buscando inimigos a quem processar.

Ocorre que Deltan Dallagnol não era o procurador natural do caso quando este teve início, em fevereiro de 2014.

Na verdade, o caso começou em 2006, com um inquérito que se arrastou ao longo do tempo, sem um fato definido a ser investigado.

Mas esta é outra história, já contada na série da reportagem “Como a Lava Jato se transformou num instrumento de perseguição a Lula”, publicada pelo DCM.

Com o nome Lava Jato, a investigação teve início em fevereiro de 2014, quando Sergio Moro decretou a prisão de uma série de pessoas que usavam os serviços de um doleiro em Brasília, Carlos Habib Chater, dono de um posto de gasolina, o Torre.

Um dos que usavam os serviços de Carlos Habib Chater era Alberto Youssef, que tinha negócios com Paulo Roberto Costa, na época já ex-diretor da Petrobras.

Até então, o procurador natural era outro, como narra o então procurador-geral da república, Rodrigo Janot, em seu livro, “Nada Menos que Tudo”. Janot foi quem assinou a portaria que criou a força-tarefa da Lava Jato.

Segue relato na página 39 do livro:

Youssef e outros três doleiros menores já estavam presos, mas ainda não havia qualquer sinal das delações dele e de Costa. Outro detalhe: o procurador do caso, Pedro Soares, seria substituído por outro, Deltan Dallagnol. Até hoje não entendi por que Soares saiu do caso, mas, se era vontade dele, tudo bem. Dallagnol seria o substituto natural. Decidi criar a força-tarefa de Curitiba. Dallagnol teria carta branca para montar o grupo e para tocar livremente a investigação. Era a primeira vez que se criava esse tipo de força-tarefa no Ministério Público Federal.

Pedro Soares (talvez o nome seja outro, Janot teria se equivocado) não está mais em Curitiba, mas a assessora de imprensa da Justiça Federal na ocasião, Christianne Machiavelli, diz ter em seu poder uma cópia do parecer em que esse procurador (natural no caso) se manifesta pela incompetência do juízo de Curitiba para levar adiante a investigação.

Essa posição teria contrariado Moro — que perderia o caso — e então entrou em cena Dallagnol, que, como registrou Janot, seria o substituto de Soares.

Se a preocupação de Celso de Mello é com o procurador natural e, por extensão, com juiz natural, o STF faria bem ao sistema de justiça se julgasse uma das muitas ações que já foram protocoladas lá questionando justamente a violação desse princípio.

A Lava Jato nunca poderia ter ocorrido em Curitiba, seja porque os fatos descritos como criminosos não ocorreram naquela jurisdição — o posto de gasolina é em Brasília, Youssef morava e tinha escritório em São Paulo e a sede da Petrobras era no Rio de Janeiro.

Ou seja porque o inquérito que lhe origem, de 2006, começou com a denúncia de que um deputado federal pelo Estado do Paraná, José Janene, continuava lavando dinheiro.

O caso, portanto, deveria ter sido enviado para o Supremo Tribunal Federal já na sua origem, pois o alvo da investigação era uma autoridade com foro por prerrogativa de função — Janene, deputado federal, hoje falecido.

Na decisão que livra Dallagnol dos processos no Conselho Nacional do Ministério Público, Celso de Mello retoma, lamentavelmente, a prática que caracterizou toda a Lava Jato e levou a um ato de extrema violência contra própria democracia, com a deposição de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade: dois pesos e duas medidas.

Se Celso de Mello, na época, tivesse 10% da preocupação com as regras do devido processo legal, como salienta na decisão que beneficiou Dallagnol, a democracia seria preservada. A investigação não teria avançado em direção ao alvo traçado desde o início, como registra Janot, protagonista daquele período que inaugurou este tempo de treva:

Quando vimos o conteúdo das delações conduzidas por Curitiba e começamos a destrinchar os anexos das “bombas atômicas que iam arrebentar Brasília” , tivemos uma grande decepção.

“Isso tá uma merda, não tem nada, tá raso esse negócio!”, eu disse numa conversa com Pelella e Vladimir Aras, assessores próximos. Aras se lembrou, então, de um diálogo que teve com Souza, menos incensado que Dallagnol, mas, certamente, o principal estrategista da força-tarefa no Paraná. Segundo ele, Souza disse que a intenção da força-tarefa era ‘horizontalizar para chegar logo lá na frente’ , e não ‘verticalizar’ as investigações, e que, por isso, teríamos dificuldade em fundamentar os pedidos de inquérito.

O que seria “horizontalizar para chegar logo lá na frente”? Não entendi direito o conceito. Creio que meus colegas também não. Só depois de muito tempo, quando vi Sergio Moro viajando ao Rio de Janeiro para aceitar o convite para ser o ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, é que me veio de novo à cabeça aquela expressão.

Horizontalizar implicaria uma investigação com foco num determinado resultado? Eu não quis imaginar isso lá atrás e também não quero me esticar nesse assunto agora, mas isso ainda me incomoda um bocado, sobretudo quando penso em dois episódios separados no tempo, mas muito parecidos.

Estou falando dos vazamentos de trechos de depoimentos de Youssef e do ex-ministro Antonio Palocci na reta final das eleições presidenciais de 2014 e 2018, respectivamente.

As declarações de Youssef, segundo o qual Lula e Dilma sabiam das falcatruas na Petrobras, eram destituídas de qualquer valor jurídico. Youssef não compartilhava da intimidade do Palácio do Planalto e não tinha provas do que dizia. Mas, mesmo assim, eram de forte conteúdo político, e não há dúvidas de que tiveram enorme impacto eleitoral.

A divulgação de parte da delação de Palocci teve reflexo menor. O tema abordado já não era novo. Mas não é demais supor que também ajudou a municiar um dos lados do jogo político. Esses dois casos, a meu ver, expõem contra a Lava Jato, que a todo momento tem que se defender de atuação com viés político.

Assim como Moro, Dallagnol sempre foi um político travestido de procurador e, com isso, corrompeu o sistema de justiça. Ele tinha alvo político, como suspeita Janot.

O Conselho Nacional do Ministério Público poderia sinalizar amanhã que esta página vergonhosa da nossa história — tão vergonhosa como os anos de arbítrio pós-64 — começaria a ser virada.

Celso de Mello — assim como Fux, mais cedo, em outra decisão que blindou Dallagnol — não permitiu.

O lavajatismo ainda vive.