Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
POR LUIS FELIPE MIGUEL, cientista político
O Brasil tem 7 milhões de trabalhadores domésticos – em geral, trabalhadoras. É mais do que qualquer outro país do mundo. E é também um emblema da nossa desigualdade social.
O trabalho doméstico, por suas próprias características, tende a ser pouco formalizado, com responsabilidades e horários definidos de maneira vaga. Isoladas entre si, as trabalhadoras têm dificuldade para se organizar em defesa de seus direitos.
A classe média vê a contratação da empregada doméstica como um dos elementos que definem sua própria posição. Nas carreiras profissionais competitivas, espera-se que as atividades domésticas estejam delegadas a outros – é quase um requisito, como percebem, com espanto, muitos estrangeiros que vêm trabalhar no Brasil.
A maior parte dessa classe média, porém, tem escassa condição de pagar um salário adequado à sua empregada doméstica. A difusão do trabalho doméstico remunerado leva a uma situação em que esse grupo, composto também quase todo por assalariados, se coloca objetivamente na condição de patrões, vendo direitos trabalhistas e garantia de condições materiais mínimas para quem trabalha como ameaças a seus interesses.
Não é à toa que a emenda constitucional que estendeu direitos aos trabalhadores domésticos foi um elemento central para produzir a revolta da classe média brasileira contra a presidente Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo, a empregada doméstica aparece, no discurso da nossa elite, como encarnação perfeita do “inferior” em relação a quem as distâncias sociais devem ser mantidas.
A “empregada doméstica no aeroporto” simbolizava a desordem das hierarquias que as (tímidas) políticas compensatórias do período Lula e Dilma anunciavam.
Em 2011, Delfim Netto – que foi o czar da economia durante a ditadura militar, mas que então se acomodava alegremente na posição de conselheiro dos governos petistas – observou a decadência do trabalho doméstico no Brasil com uma declaração inesquecível: “Há uma ascensão social visível. A empregada doméstica, infelizmente, não existe mais, ela desapareceu. Quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter”.
Depois, ele pediu desculpas. Mas sua frase é uma janela aberta para a mentalidade da elite brasileira – e, em particular, como ela vê a base da pirâmide social.
Delfim se referia a um momento em que, graças à expansão do emprego, muitas trabalhadoras domésticas abandonavam a atividade em favor de postos de trabalho no comércio, na indústria ou nos serviços, que podiam até não pagar mais, mas lhes garantiam maior prestígio social e relações laborais mais impessoais.
Isso mudou em seguida, com a política de ajuste antipovo iniciada no segundo mandato de Dilma, aprofundada por Temer e levada ao paroxismo por Guedes. Desde então, o emprego doméstico, com frequência não formalizado, voltou a ganhar terreno.
A declaração de Paulo Guedes, ontem, é chocante, mas não tem nada de surpreendente. É a marca de um governo que não tem pudor de escancarar aquilo que pensa. E de uma classe dominante que tem, como característica principal, uma absoluta alergia a qualquer forma de igualdade.