Publicado originalmente no Brasil de Fato
Comércio movimentado, ruas, bares e restaurantes cheios. Os dias de glória do Caju, zona portuária do Rio de Janeiro (RJ), coincidiram com o auge do setor naval no Brasil: primeiro nos anos 1970, depois nos 2000.
O bairro concentra o maior número de estaleiros da cidade. Há uma década, os salários chegavam a R$ 10 mil, mesmo para trabalhadores sem ensino superior.
As crianças aprendiam desde cedo o ofício dos pais e cresciam em um ciclo de esperança, alimentado pela descoberta do pré-sal – o “passaporte para o futuro”, nas palavras do ex-presidente Lula (PT).
A Lava Jato derrubou esse otimismo da noite para o dia. Daquela época de bonança, restou a saudade. Os estaleiros estão abandonados, e menos de 5% das vagas de emprego que havia antes da operação foram preservadas.
A reportagem do Brasil de Fato foi até a comunidade Quinta do Caju e reuniu trabalhadores de estaleiros, demitidos nos últimos cinco anos, para um bate-papo sobre a Lava Jato e o futuro da construção naval no país.
“Se eu falar, dá até vontade de chorar. Depois que eu saí da área naval, só estou vivendo de bico: R$ 200 aqui, R$ 300 ali. Eu cheguei a ganhar R$ 10 mil por mês”, afirma Eduardo Streng, que trabalhou na indústria naval por mais de 30 anos.
“Nos anos 1980, tinha mais ou menos 12 mil funcionários aqui. A gente construía duas embarcações em um ano, desde o casco até a casaria”, lembra.
Aos 55 anos, Streng é um dos integrantes do Projeto Emerge, que busca diálogos com a classe política para reativar o setor.
“No Rio de Janeiro, hoje só existem três estaleiros capazes de construir embarcações: o Brasfels, em Angra, o Enseada, aqui no Caju, e o Mauá, de Niterói. Todos os outros estão sucateados”, lamenta.
“Eles estão cortando galpões para vender para ferro velho, e a nossa mão de obra qualificada está fazendo Uber, vendendo bala, cachorro-quente.”
A trajetória profissional de Streng – e da maioria dos colegas – se divide em antes e depois da Lava Jato.
“Eu mantinha minha família. Minha esposa não precisava trabalhar. Hoje, ela trabalha como recepcionista. Tive que tirar meu filho da escola particular, e não temos mais plano de saúde”, compara.
“Quem assumia as despesas da casa foi minha esposa, com um salário mínimo. Isso é triste. A gente perde até a vontade de viver”, acrescenta o trabalhador.
No dia 28 de janeiro de 2015, dez meses após a deflagração da Lava Jato, o governo Dilma Rousseff (PT) fez o primeiro alerta oficial para os prejuízos que a operação poderia causar à economia.
O então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defendeu naquele dia, em entrevista coletiva, que os corruptos fossem punidos “com o rigor da lei”, sem que isso atrapalhasse a “vida econômica dos brasileiros”.
Sergio Moro, então juiz da Lava Jato, não esperou nem 24 horas para dar uma resposta à altura. Em ofício entregue ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ele recomendou a suspensão imediata dos contratos da Petrobras com empresas sob investigação – mesmo aquelas que tinham obras em andamento, ou quase finalizadas.
“A Lava Jato também está ligada a uma estratégia de desmobilização, ou de criminalização, de um governo que podemos classificar como de centro-esquerda, dentro de seus limites”, afirma a doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Juliane Furno.
“Os governos Lula e Dilma alçaram a Petrobras e esse setor como carro-chefe do desenvolvimento nacional e industrial. Toda estratégia de mobilização da indústria local estava vinculada à Petrobras, ao setor de petróleo e gás e da construção pesada”, acrescenta.
Segundo pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) publicada em março, a Lava Jato custou 4,4 milhões de empregos no país, não só por romper contratos, mas por manchar a imagem da indústria naval como um todo.
“Só a redução do emprego direto nas nove empresas de construção que foram proibidas de fazer contratos com a Petrobras, foram 1 milhão de vagas diretas fechadas. Ou seja, 1% de todo mercado de trabalho brasileiro teria sido afetado diretamente, só entre os anos de 2015 e 2016, em função da forma como foi conduzida a Lava Jato”, completa Furno.
“A estimativa é que houve uma contração de renda de em torno de R$ 140 bilhões nesse período, seja na redução da arrecadação tributária, seja na renda via emprego direto, com os trabalhadores demitidos, que hoje consomem menos e contribuem menos com os cofres públicos.”
Estaleiros como os do Caju eram usados principalmente para reparo e construção de embarcações e plataformas e para atividades logísticas relacionadas à extração e refino de petróleo.
Em dois anos, entre 2014 e 2016, o número de empregos no segmento caiu de 71,5 mil para 40,2 mil, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Como as obras de grande porte foram transferidas para Singapura, China e Coreia do Sul, os poucos empregos que ainda restam nos estaleiros do Caju são para limpeza e conservação e para transformar antigas embarcações em sucata.
Em 2016, o cenário foi agravado por um redirecionamento da Petrobras sob o governo Michel Temer (MDB), que se manteve com Jair Bolsonaro (sem partido): vender petróleo cru e abrir mão do refino, processo que agregava valor ao produto, mas exigia investimento público.
“As embarcações são feitas quase todas lá fora. Quando chega aqui no Rio, só precisa de servicinho pequeno”, afirma Eduardo Streng.
“Eu acho uma vergonha. Se o governo está pensando em gerar emprego, por que a Petrobras não traz essas obras para o Rio? Nós teríamos mão de obra qualificada para fazer tudo aqui”, garante.
Conforme levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), os efeitos da Lava Jato fizeram com que a fatia do Rio de Janeiro no Produto Interno Bruto (PIB) industrial do país caísse de 14,58%, no biênio 2007-2008, para 10,14%, no biênio 2017/2018.
Caju não é mais o mesmo
Nascido e criado na Quinta do Caju, Maciel Benedito tem 55 anos e também sente na pele os impactos da Lava Jato.
Ele trabalhou em vários estaleiros do Rio de Janeiro e de Niterói, começando pela calderaria do Ishikawajima, perto de sua casa. Um tempo de alegria e aprendizado, que hoje aparece distante.
“Os comércios estavam todos abertos. Era um movimento enorme, ambulantes vendendo pastel, cocada, refrigerante. Todo mundo ganhava dinheiro aqui. Lá na frente a gente tinha um restaurante, o Pejô. Eles compraram outro restaurante aqui, para poder pegar a clientela do estaleiro da Enseada. Está parada a obra, acabou. O Caju está abandonado”, admite.
Fora da indústria naval, Maciel tem como fonte de renda um barco, usado para fretes e para pesca de camarão.
Maciel Benedito em frente ao barco que hoje é seu ganha-pão / Vanessa Nicolav
Mais de cinco anos após a demissão, a esperança de vestir novamente o uniforme e voltar ao estaleiro continua viva.
“Eu sonho. Plataforma e navio é o que eu mais gosto, é o que eu sei fazer na vida”, diz, emocionado.
“Consigo fazer um navio, da primeira quilha até o final. O trabalho no estaleiro era uma correria. Eu gosto daquele dia a dia, daquela movimentação. Petrobras, coordenação, isso tudo me deixava feliz.”
Celebrada pela mídia comercial e por parte da classe média, a “maior operação de combate à corrupção” significou para ele um pesadelo.
“Para mim, a Lava Jato não serviu de nada. Puniu a gente, o trabalhador, o pobre”, afirma.
O alvo mais conhecido da operação foi o ex-presidente Lula, conhecido justamente por apostar na indústria naval.
“Quando o Lula entrou, uma das primeiras providências que tomou foi garantir que as obras seriam feitas aqui: conteúdo nacional. O metalúrgico era mais valorizado. Podíamos fazer nosso churrasquinho na laje, tomar nossa cerveja no fim de semana”, acrescenta.
“Hoje, a Petrobras está mandando para fora as plataformas P78 e a P79.”
Almir Marvila tem 58 anos, entrou no setor naval em 1985 e compartilha da mesma nostalgia de Maciel.
“Esse bairro aqui, a essa hora estaria cheio, vendendo peixe frito, cheio de gente nos bares. As ruas estão tão vazias que os carreteiros aproveitam para estacionar as carretas ali mesmo”, diz.
“O que mais me dói e ver os navios vindo lá de fora, com a bandeira da Petrobras, e nós aqui, desempregados.”
Marvila sobrevive de bicos. Quando é chamado a trabalhar em um estaleiro da região, é apenas para “cortar navio” – transformar a embarcação em sucata.
A renda mensal não é nem metade da que tinha na época de ouro do setor.
“Esse Sergio Moro, esse [procurador Deltan] Dallagnol, não se preocuparam com nada, só com fechar os estaleiros. Pergunto: resolveu alguma coisa? Pinheiro [OAS] está solto, Marcelo Odebrecht [Grupo Odebrecht] está solto”, ressalta.
Os executivos citados por Marvila, assim como os demais denunciados pela Lava Jato, assinaram acordos de colaboração e cumprem a pena em prisão domiciliar.
“Quem pagou a conta foi a nossa família. Eu tive que me virar fazendo biscate, arrumando dinheiro aqui e ali, a mulher apertando de um lado, eu do outro. Gostava de tomar uma cerveja, mas sei que se eu gastar aqui, falta para comprar comida em casa”, diz.
O trabalhador lê jornais diariamente e sabe que o problema não se restringe ao Rio de Janeiro.
“Tenho acompanhado o estaleiro de Pernambuco, novinho, o da Bahia, o do Rio Grande do Sul, do Espírito Santo… estaleiros novos, e as obras indo lá para fora. Não temos mais aqueles políticos de garra, para brigar por nós.”
Para a doutora em desenvolvimento econômico Juliane Furno, não há como recuperar esses empregos sem investimento público.
“Não existe no mercado privado para construção pesada no Brasil. Não existe, por exemplo, mercado secundário para plataforma de petróleo”, lembra.
“Elas [empresas de engenharia nacionais] dependem das compras da Petrobras. Ou seja, não poder mais contratar com a Petrobras e com o Estado brasileiro, à medida que vão passando pelo processo judicial, significa a morte dessas empresas. Esses empregos dependem do financiamento e da contratação do Estado”, finaliza a especialista.
Mesmo quem conseguiu se aposentar, como o encarregado de movimentação de cargas Eliezio Silva de Oliveira, aposta as fichas na reativação do setor.
“Construção naval é uma coisa que, entrou no sangue, jamais sai. Quero ser inserido de novo no setor para passar meus conhecimentos e para ter uma qualidade de vida melhor”, explica.
Oliveira viveu a primeira crise do setor, no final dos anos 1980, e diz que o Brasil teria todas as condições de se recuperar rapidamente – desde que houvesse vontade política.
“Eles colocam os empregos todos em Singapura, na China. Queria entender o que o governo ganha com isso, se aqui temos mão de obra qualificada para dar conta de toda a demanda”, analisa.
“Às vezes o cara é um ótimo soldador, um grande montador, um maçariqueiro e tanto, e está fazendo Uber. Tem muitos casos. E essa mão de obra está sendo desperdiçada por conta de má administração”, lamenta o aposentado.
O fechamento dos estaleiros causa um efeito dominó e impacta até a segurança de quem vive no entorno.
“Por coincidência, os estaleiros do Rio ficam dentro de comunidades, que hoje são cercadas de violência. E aqui, com emprego bombando, a violência diminui substancialmente. Todos se beneficiam quando tem oportunidade de trabalho”, diz.
“A empresa não pode ser punida. São os diretores. Se eles roubaram, desviaram recursos, eles têm que ser punidos, e não foram até hoje. Foi punido o trabalhador, e com ele, a esposa, o filho, a mãe que mora junto, a sogra”, afirma Oliveira, reproduzindo um argumento que se tornou jargão entre os trabalhadores demitidos em consequência da Lava Jato.
“Tinha que ser feito aquilo, mas não da forma como o Moro fez, fechando as empresas, gerando esse desemprego, esse caos todo.”
Punir os “CPFs dos diretores”, e não o “CNPJ das empresas”: essa é outra analogia recorrente nos depoimentos dos trabalhadores.
O técnico em mecânica naval Bernardo Streng, de 46 anos, é irmão de Eduardo, citado no início da reportagem. Ele começou como jovem aprendiz e foi galgando degraus no setor até a demissão, em 2016.
“Trabalhei em vários estaleiros, no Rio de Janeiro e em Niterói, e eles hoje estão simplesmente sucateados. Eram estaleiros com 4, 5 mil funcionários”, enfatiza.
Sem experiência profissional fora dos estaleiros, ele recorreu aos aplicativos de transporte para assegurar uma renda mensal.
“Estou trabalhando de Uber. É muito difícil para mim, mas a gente tem que sobreviver. Outro dia, peguei o trem, fui até a Central do Brasil, e vi alguns colegas trabalhando de camelô”, conta.
“Eles começaram novos como eu, com 16, 17 anos de idade, tendo uma profissão, sendo soldador, montador, maçariqueiro, mas hoje estão vendendo bala na rua, catando latinha para poder sobreviver. Alguns até foram embora, por causa desse cenário. Isso é muito triste”, finaliza.
As articulações do Projeto Emerge começaram em 2019. Depois de estudos e debates internos, o grupo se diz pronto para a etapa de “diálogo e convencimento da classe política”.
A ideia é apresentar a governadores e ao presidente Jair Bolsonaro uma proposta objetiva e urgente de revitalização do setor.
Embora a Lava Jato tenha paralisado atividades de estaleiros em vários pontos do litoral brasileiro, o projeto concentrará suas ações inicialmente no Rio de Janeiro.
Parte da esperança do grupo reside em uma sinalização do novo governador Cláudio Castro (PSC), substituto de Wilson Witzel (PSC).
No discurso de posse, no início de maio, Castro prometeu dialogar com o governo federal sobre a criação de empregos no estado, a partir da reativação dos estaleiros parados. Até o momento, não houve uma ação concreta nesse sentido.