Democracia e crise: perante as lições de Toffoli, as lembranças de Max Weber. Por Tarso Genro

Atualizado em 4 de novembro de 2019 às 10:39

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SUL 21

O Ministro Dias Toffoli, numa entrevista concedida ao velho Estadão na semana passada (30/10/2019), fez uma constatação que ao final se tornou uma apologia perigosa do que ocorre hoje num Brasil sem rumo e permeado pelo ódio. Afirmou com todas as letras que a “elite política do país”, tomada aqui como grupo preparado (nos partidos) com capacidade de gestão política e institucional do Estado, fracassou. Por isso, a burocracia se ergueu como força dirigente da política nacional.

O Ministro fez esta afirmativa como se as “elites” fracassassem pelos mesmos motivos e também tivessem propósitos políticos idênticos. Tal fato teria despertando na alta burocracia estatal, assim, uma lúcida vontade salvadora para tomar conta da moral pública e das reformas, como se ela -alta burocracia- também tivesse sempre propósitos comuns e tivesse a capacidade de empalmar, por si mesma, a virtudes da república.

Brutal e elementar equívoco, pois se existe falta de rumo na “elite política (tradicional) do país” é precisamente porque a maioria do que se designa como “burocracia” (leia-se alta burocracia do Estado) foi cooptada politicamente através de um golpe midiático-parlamentar, por um grupo de extrema direita, vinculado ao que tem de pior na nossa política “sem partido” que, como se sabe hoje, tem profundas relações com as religiões do dinheiro e com o crime organizado.

Esta é, na verdade, a coligação de fato que deu espaço para que fossem eliminadas as influências das
elites tradicionais sobre o jogo político liberal-democrático, que muito longe de ser perfeito se constituía -na correlação de forças como as do presente- no único processo conhecido, até hoje, de depuração da democracia e de reformismo democrático institucional.

Weber, no seu “Parlamentarismo e Governo”, diz a certa altura: “Este escritor que provém de uma família do funcionalismo público, seria o último a permitir que esta tradição se maculasse. Mas o que aqui nos interessa são realizações políticas não-burocráticas, e os próprios fatos provocam o reconhecimento que ninguém pode na verdade negar: que a burocracia fracassou completamente sempre que devia lidar com problemas políticos.” Weber já farejava o caos político e institucional que exigia soluções políticas que, não respondidas, transformariam os criminosos nazistas em Chefes de Estado.

Os últimos acontecimentos que envolvem a qualidade política da democracia  já mostram as duras consequências pornográficas das formas de exceção, instauradas processualmente no país e no mundo: da defesa da tortura à defesa das execuções milicianas; do convite para assassinar adversários à consagração aberta do retorno à ditadura; dos convites indecifráveis de relações amorosas às promessas de levar os dissidentes para serem executados “na ponta da praia” -entre uma e outra insanidade- indicando que país navega num mar de loucuras, sociopatias, ignorâncias medievais e pobreza de espírito.

Isso não seria possível sem o golpe contra Lula e Dilma, isso não seria possível sem a naturalização da loucura no poder, providenciada pela mídia oligopólica; isso não seria possível sem classes dominantes saudosistas do escravismo; sem a falta de generosidade e ausência de consideração humana de grande parte das classes médias brasileiras.

O contexto desta crise de moralidade da política e de radicalização da violência de classe está bem exposto no “Guerra Híbrida contra o Brasil” (Ilton freitas, Liquidbook, 2019, 158 pgs.) que mostra que o compartilhamento planejado de “fake news”, vídeos, informações aparentemente inocentes promovidas pelo Império que convenceram -em conjunto com a mídia oligopolizada- que o Brasil renasceria tirando Dilma do Governo e demonizando todas as forças de esquerda, inclusive aquelas que se integraram conscientemente no golpismo, por acharem que estavam fazendo o melhor pelo país.

Não conheço pessoas simpatizantes de quaisquer partidos políticos -conscientemente defensoras do regime democrático-representativo- que sustentem algo como o ‘direito à corrupção’. Também desconheço qualquer partido político que, chegado ao Governo -com mais ou menos poder- não sofra em alguma medida, por um certo percentual de seus integrantes, as tentações para corromper-se.

As tentações começam pelas dúvidas dos agentes políticos mais (ou menos) conscientes das suas prerrogativas, sobre quais são os limites entre o “público” e o “privado” e chegam até ao desconhecimento de quais são os limites políticos do Governo legítimo -para a aplicação do seu “programa de partido”- sem invadir os direitos da oposição. No Governo atual não se trata de “dúvidas” ou falta de “conhecimento”, mas de políticas deliberadas de liquidação da democracia a partir de novas relações de poder

Os direitos na democracia liberal estão inscritos -com o mesmo cinzel de legitimidade- na Carta Constitucional. Eles asseguram que qualquer oposição pode ser tornar Governo, mas são direitos que  construíram só um arcabouço ideal-formal -de normas e fundamentos- não são a realidade concreta da vida política moderna, idealizada na constituição democrática.

Engendrados na história da Revolução Francesa, os fundamentos da Revolução foram artificialmente (e positivamente), construídos nas filosofias da Igualdade e da Justiça, para serem bases de uma nova ordem. Esta, todavia, abominava a escravidão no alvorecer da indústria moderna, porque precisava permitir que a necessidade econômica construísse -como imperativo moral- a liberdade de trabalho através do regime de prestação assalariada.

Comprar mão-de-obra livre através do assalariamento dispensava a propriedade do corpo da pessoa, pelo dono da indústria, mas permitia apropriação da sua força de trabalho como mercadoria, para gerar
riquezas e fazê-las circular. Era a abertura de um ciclo que criaria a ideologia da “identidade necessária” entre democracia e capitalismo, que agora está no fim, abrindo a época em que democracia e capitalismo se harmonizariam, contratariam e dissentiram, abrindo as pistas para a decolagem do Estado Social, de boa memória e curta duração.

O “Estado Social” é, pois, um estado essencialmente “político” -artificial e frágil- porque ele se contrapõe à exploração máxima que está na gênese do capitalismo. Gramsci (no Vol. 1, das “Cartas”), disse que “Hegel não pode ser pensado sem a Revolução Francesa e sem Napoleão e suas guerras, isto é sem a experiências vitais e imediatas de um período histórico intensíssimo de lutas, no qual o mundo exterior esmaga o indivíduo e o faz tocar a terra.”

São os momentos em que os conceitos são obrigados a por os pés no chão -como agora-  onde aparecem as flores da dúvida surgindo com força: mas a dúvida não é mais se a democracia, como regime das maiorias políticas, é realmente compatível com o capitalismo, mas se o capitalismo consegue sobreviver -dentro de uma democracia “verdadeira”- sem a manipulação permanente dos meios de comunicação oligopolizados e sem a violência miliciana organizada fora do Estado.

Nestes momentos de emergência vulcânica de um novo tempo já se configura um novo “espírito de época”, que se propõe a aparecer -pela proximidade da ditadura militar- como um “passado ainda demasiado presente” que, se desafia os verdadeiros estadistas, põe à luz do dia o atraso, a sociopatia ou a simples mediocridade dos que estão no poder. São os momentos radicais de crise em que os seres humanos de todas as ideologias expelem o que tem de melhor ou de pior, da sua consciência moral e da sua dimensão de humanidade.

José Bonifácio -monarquista constitucional- disse sobre as misérias da escravidão na Constituinte de 1823 que  “a sociedade civil tem por base primeira a justiça e por fim a felicidade dos homens. Mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem e dos filhos destes filhos? (…) Aqui Bonifácio se ergue acima da sua época e enuncia o humanismo moderno, que repele ver o homem como coisa e objeto e se coloca como um Estadista luminar.

Passemos a uma época mais imediata. No seu “La palabra de Behemoth” (Campdrerrich, Ramón, Ed. Trotta) o autor fala sobre a consolidação jurídica e política do nazismo e relata: “em poucos meses, a atividade do partido nazista e seus aliados conservadores tinham varrido da realidade institucional alemã, todos os elementos que poderiam caracterizar um estado de direito”, desde  os direitos fundamentais até a liberdades políticas, através de uma “hábil combinação de manipulação da opinião pública (…) com a violência terrorista  das organizações paramilitares.”

Estamos mais próximos de José Bonifácio ou de Behemoth? Perdeu a sociedade brasileira a capacidade de refletir – pela sua maioria – soluções compostas para emergências, que nos afastem das portas definitivas do inferno? Na época do domínio global do capitalismo financeiro e do mercado, como forças agregadoras de corações e mentes -na qual se dissolve o próprio trabalho como identidade- só a subjetividade humana voltada plenamente para a política pode abrir novos cenários com mais democracia.

A unidade hoje deve ser promovida para fechar as portas do inferno. Já se disse que o fascismo era a “elegância no poder”. O certo seria dizer, porém, que ele é o crime transformado em política de Estado, que nenhuma burocracia ou “leis férreas da economia” poderão bloquear.

Se não formos derrotados em definitivo será porque conseguiremos despertar o que tem de melhor em cada ser humano. Porque o fascismo sempre venceu porque soube acordar em todos, nos pobres e nos ricos, o que eles tem -também como vítimas da nossa história milenar- de mais cruel e animal. Hora da cultura histórica, como diria Benedetto Croce: ela “tem o objetivo de manter viva a consciência que a sociedade humana tem do passado, ou melhor do seu presente, ou melhor, de si mesma.”

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.