O número de denúncias de tortura, castigos, maus-tratos, ameaças e outras violações de direitos sofridas por pessoas encarceradas triplicou de janeiro a julho deste ano. O período coincide com os primeiros meses do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) no estado de São Paulo. Segundo a Defensoria Pública estadual, foram relatados 211 casos, correspondentes a 3,45 vezes mais do as denúncias recebidas em todo o ano passado (61).
Esses relatos chegam ao órgão por meio de familiares e também em visitas dos defensores às prisões. E incluem informações sobre o ambiente degradante nas unidades prisionais, para além de violações de direitos humanos.
Os defensores também recebem denúncias sobre o medo de castigos. “O ‘pote’ é o castigo, é uma ala da cadeia, normalmente pior ainda que a cadeia, em que os presos são colocados lá, individualmente, e permanecem por 30 dias, às vezes, infelizmente, até mais”, disse o defensor público do Núcleo de Situação Carcerária, Diego Polachini.
Fora os informes de condições desumanas, como as relatadas em carta coletiva por presos do Centro de Detenção Provisória de Caraguatatuba, no litoral norte, divulgada neste mês. “O local em que é preparada a nossa alimentação tem condições inadequadas, com ratos andando por todos os cantos da cozinha e deixando rastro de urina”, diz trecho trecho de uma carta,.
Em outro, relatam redução extrema da quantidade da alimentação e até a oferta de comida estragada. Durante um mês, os detentos receberam leite azedo e tiveram corte na salada e no suco servidos. “E [está vindo] feijão podre três ou quatro vezes por semana e arroz cru, sem nenhuma condição de comer.” Sem contar os relatos de negligência médica, que acabou em morte de um detento soropositivo.
Familiares que denunciam são desqualificados e perseguidos
Segundo a coordenadora do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), a advogada Carolina Barreto Lemos, os familiares são ponto de apoio dos órgãos de combate à violação de direitos nos territórios, como presença constante e também como porta-vozes das denúncias às autoridades competentes. “Não se faz prevenção e combate à tortura sem os familiares, porque eles já fazem esse trabalho de certa maneira nas suas visitas ao sistema. A própria presença delas ali já funciona como vetor de prevenção e combate à tortura”, disse.
E justamente por isso, segundo ela, essas famílias são alvo de campanhas de desqualificação, na tentativa de desacreditar, retaliar e até criminalizá-las. E há represálias, como a suspensão de visitas e de castigos aos detentos, além de ameaças.
As tentativas generalizadas de perseguir os denunciantes e inibir possíveis denúncias também são registradas pela Defensoria de São Paulo. “Muitas vezes, os familiares que estão na fila para entrar no presídio têm que passar por procedimento muito longo, de revista, de scanner. Esse processo em si já é péssimo, mas esses familiares são constantemente ameaçados de ‘gancho’, que é a impossibilidade de visitação”, disse Polachini.
O Mecanismo e a Defensoria Pública de São Paulo já receberam diversos relatos de violações contra familiares e detentos que fizeram alguma denúncia. “O clássico é a pessoa denunciar, chegar na visita seguinte e a unidade falar que a visita foi cancelada, que não tirou a senha, inventam justificativas para a pessoa não conseguir entrar e fazer a visita. Isso é recorrente em vários estados do Brasil”, disse Carolina Lemos.
Há ainda a deslegitimação de familiares em espaços públicos. “Por exemplo, se é uma pessoa que denuncia muito, ela vai sofrer o processo discriminatório dentro de órgãos, a recusa de que participe de reuniões. Até de pessoas expulsas de reuniões.”
Judiciário e Ministério público deveriam fiscalizar presídios, mas não o fazem
Familiar de um rapaz encarcerado no interior de São Paulo, Valéria* afirma que toda e qualquer denúncia feita por um preso só sairá da unidade se for por meio de um familiar, e ainda assim escondido. “Se depender de carta escrita por eles e destinada à Defensoria, jamais chegará ao seu destino pois os funcionários barram. Então os familiares são esse elo essencial”.
Na sua avaliação, a Defensoria Pública é tudo que as famílias e custodiados têm. E mesmo assim, existe uma defasagem imensa de defensores, que são sobrecarregados e sucessivamente não conseguem fazer todo o necessário para o combate à tortura e crueldades no sistema carcerário.
Para o defensor Polachini, o Ministério Público e o Poder Judiciário deveriam realizar a fiscalização no sistema prisional, mas raramente ocorre uma inspeção completa, em que entram no presídio e falam com os presos. “Muitas vezes, esses presos são escolhidos pela própria direção, então, é uma observação muito enviesada”, disse.
“Seria muito importante os funcionários e diretores serem responsabilizados por seus atos, mas os próprios juízes não dão continuidade a denúncias de espancamentos, morte por falta de socorro, então, eles sabem que nada acontecerá a eles criminalmente e assim, a cada dia, o sistema carcerário está mais agressor, opressor e tem mais e mais óbitos”, avaliou.
Publicado originalmente no Brasil de Fato.
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