Depoimento de Moro não piora situação de Bolsonaro; imprensa não aprendeu nada. Por Kennedy Alencar

Atualizado em 6 de maio de 2020 às 12:43
Moro depois do encontro com Jair Bolsonaro. Foto: AFP

PUBLICADO NO BLOG DO KENNEDY

POR KENNEDY ALENCAR

Depois de ler duas vezes o depoimento do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, é lícito concluir que ele recuou em relação ao dia em que pediu demissão, quando acusou o presidente Jair Bolsonaro de querer indicar o diretor-geral da Polícia Federal para ter acesso a relatórios de inteligência.

Ora, esperava-se um passo adiante no depoimento. Moro disse, ao depor à PF no último sábado, que o presidente não pediu nada especificamente a ele. Não acusou o presidente de crime.

Mas diz que apagou mensagens porque foi hackeado anteriormente, confirmando que eram verdadeiras as conversas de Telegram reportadas pelo “The Intercept Brasil”. No ano passado, ele lançava dúvida sobre a autencidade das conversas de integrantes da Lava Jato, como revelou o jornalista Glenn Greenwald.

Moro é uma figura que, ao depor oficialmente, confessa a mentira que contou no passado. O depoimento demonstra cuidado jurídico, ao dizer que Bolsonaro não cometeu crimes. Moro diz que não cabe a ele fazer tal julgamento.

É forma de evitar ser acusado de prevaricação ou de denunciação caluniosa. Ele teria testemunhado crimes sem denunciá-los, o que é prevaricação, ou teria acusado falsamente o presidente, o que é denunciação caluniosa.

Bem-orientado por advogados, Moro deu um depoimento morno, apesar da longa duração ter resultado em tão poucas páginas oficiais. Esse tipo de depoimento não deve colocar o presidente em situação mais complicada. Não há nada ali que não seja sabido. Ficou clara a estratégia de Moro para se preservar.

Incrível que a imprensa pareça não ter aprendido nada, porque ela blinda Moro. O ex-juiz e ex-ministro da Justiça é um dos pais dos ataques a jornalistas e veículos de comunicação. Deu corda e informações a difamadores profissionais. Ficou 16 meses no governo vendo o “Gabinete do Ódio” atuar, vendo a família do presidente atuar. Nada fez.

Se o que Moro diz é verdade, há uma organização criminosa no Brasil, Bolsonaro está no comando dela e ele, Moro, integrou a gangue durante 16 meses. Moro teria de fazer uma delação premiada. Mas optou por um depoimento bastante cauteloso do ponto de vista jurídico, esperando que a investigação do Supremo Tribunal Federal faça o serviço por ele.

A imprensa não aprendeu nada. Está, de novo, endeusando uma figura que não tem nada de santa. Moro exerceu um papel repugnante na história do país. Bolsonaro é um presidente criminoso. E Moro é um dos pais da ascensão de Bolsonaro ao poder.

Não dá para analisar a atuação do Bolsonaro sem levar em conta o que Moro fez. O ex-juiz tenta lavar a biografia. Agora, como cidadão comum, sem o poder da caneta, demonstra apreço pelo estado democrático de direito que ele desrespeitou muitas vezes quando vestia a toga.

Moro cansou de ver jornalistas e veículos de imprensa serem atacados nos 16 meses em que serviu a Bolsonaro. O gabinete do ódio agiu debaixo das barbas dele. Moro tentou minar a credibilidade do material do “The Intercept Brasil”. Ele também, quando juiz, usou a imprensa para tentar destruir reputações e intimidar críticos. Nesse sentido, Moro é mais perigoso para a democracia brasileira do que Bolsonaro.

Bolsonaro é um ignorante, um tosco. Moro não. Com sua estratégia de falso herói, o ex-juiz e ex-ministro consegue uma blindagem na imprensa brasileira, que não aprendeu nada com o personagem e o perigo que ele significa para a democracia no país.

Ao ler o depoimento duas vezes, salta aos olhos a hipocrisia do Moro, que ultrapassou os limites. Difícil ter paciência para a criminalidade do Bolsonaro e para a hipocrisia do Moro. Se o país não aprender com isso, vai se dar mal.

Mudando de assunto, mas tocando num ponto importante e que tem a ver com a dupla Bolsonaro-Moro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comemorou nota do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Esse ministro divulgou uma nota dizendo que os militares respeitariam a Constituição depois de mais uma patacoada de Bolsonaro numa manifestação golpista no último domingo.

Ora, o Ministério da Defesa foi criado por FHC para deixar claro para os militares que eles deveriam se subordinar ao poder civil. Hoje, FHC comemora nota de ministro militar em tom de tutela. Esse ministro, Azevedo e Silva, disse que o golpe de 64 foi um marco democrático.

O buraco no Brasil está muito fundo, e o pessoal está cavando mais.

É triste ver a tragédia que se abate sobre o Brasil, com a covid-19, e a gestão irresponsável de Bolsonaro. Em meio a isso, há o endeusamento de um personagem que já deu provas do que é: topou servir a Bolsonaro e ficou 16 meses ao lado de um genocida. Moro e Bolsonaro brigaram para ver quem controlaria a Polícia Federal a fim de tê-la como polícia política. Parece briga de bandido.

Foi Moro quem investigou um porteiro que falou algo incômodo para Bolsonaro no caso Marielle. Foi Moro quem tentou destruir provas da Vaza Jato.

Triste constatar a que ponto o Brasil chegou. Tenho dois filhos aí. Amo o país. Não posso deixar de, como jornalista com 30 anos de estrada, lamentar o que acontece no país, que não merecia a elite que tem, muito menos Bolsonaro e Moro.