Derrite é condenado a pagar indenização a família por mentir sobre trabalhador morto pela PM. Por Jeniffer Mendonça

Atualizado em 14 de janeiro de 2023 às 14:05
Ismael Marques Moreira de camiseta branca fazendo sinal de "joia" com as mãos
Ismael Marques Moreira, 31, era encanador e deixou esposa e um filho | Foto: arquivo pessoal

Por Jeniffer Mendonça

Homem honesto, digno, trabalhador, bom marido, bom pai, sonhador com diversos planos para a família e que não merecia o que lhe aconteceu. Foi assim que Maria* descreveu o companheiro Ismael Marques Moreira, 31, quando deu seu depoimento à Corregedoria da Polícia Militar, em março de 2020. Semanas antes, em 24 de fevereiro daquele ano, o encanador foi morto ao ser atingido no olho por um disparo feito por um soldado da PM durante uma tentativa de abordagem a um outro homem na comunidade do Flamenguinho, em Osasco, na Grande São Paulo.

Segundo os parentes, Ismael estava construindo uma casa próximo à comunidade para poder conseguir uma renda extra com aluguel e ir morar com a esposa e o filho pequeno no Piauí. Maria relatou que ele sempre ia acompanhar a obra durante suas folgas. Naquela manhã, o encanador trabalhou na obra e foi na casa da sua irmã, que mora na região, para tomar um café, mas, como faltava leite, se ofereceu para ir ao mercado comprar. Foi saindo do estabelecimento, por volta das 8h10, na Rua Padre Vieira, que ele foi atingido. Uma câmera do mercado registrou o momento.

Ismael ainda estava internado no Hospital Regional de Osasco lutando para sobreviver quando o Capitão Guilherme Derrite, então deputado federal por São Paulo pelo PP e hoje secretário de Segurança Pública do estado, fez a seguinte postagem em seu Twitter, às 12h11: URGENTE: Troca de Tiro: PM (ROCAM) X MALA [gíria policial para criminoso] Na FAVELA DO FLAMENGUINHO em Osasco/SP, um criminoso acaba de trocar tiros com a PM e vai curtir o CARNAVAL NO INFERNO. Esse vai aproveitar o Carnaval e já vai usar a fantasia do Capeta.

Reprodução do tweet feito pelo Capitão Guilherme Derrite em 24/2/2020
Reprodução do tweet feito pelo Capitão Guilherme Derrite em 24/2/2020

Ismael passou por cirurgia, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no mesmo dia, às 15h35, por traumatismo craniano deixando esposa e um filho que atualmente tem seis anos. Quando esse tweet chegou ao conhecimento de Maria, ela decidiu entrar com um ação judicial contra Derrite com pedido de indenização pelo duplo sofrimento: perder o marido com quem estava há 10 anos e vê-lo sendo criminalizado com informação falsa em rede social.

Em março de 2022, a 4ª Vara Cível do Foro de Osasco do Tribunal de Justiça de São Paulo acatou a solicitação e condenou o capitão a indenizar a família em R$ 20 mil, com acréscimo de 1% de juros ao mês por demora do cumprimento da decisão, além de pagamento das custas processuais. A juíza Denise Cavalcante Fortes Martins argumentou que notícias falsas “mancham reputações” e que Derrite, ocupando um cargo público, fazendo esse tipo de divulgação “contribui para um cenário degradante de enfraquecimento democrático”.

“Inequívoco, portanto, o abuso no exercício do direito de liberdade de expressão, consistente em compartilhamento irresponsável de informação inverídica, em degradação à honra da vítima, familiar dos autores, com emissão de um juízo de valor calunioso e difamatório de ISMAEL, relacionando sua pessoa com o criminoso que entrou em combate com a polícia”, fundamentou a magistrada na sentença.

A defesa de Derrite entrou com um recurso para reverter a decisão, que ainda não foi julgado. No processo, sustentou que o capitão estava respaldado pelo direito à liberdade de expressão ao fazer um “comentário genérico” e que não tinha se referido diretamente a Ismael por não ter mencionado seu nome nem exposto sua imagem no tweet. O advogado Renato Ramos da Silva, que o representa, não quis dar entrevista e disse que o atual secretário não se manifestaria. “O processo está em segunda instância e ainda não transitou em julgado [recursos não foram esgotados], de maneira que não há como se falar em condenação”, disse.

À Ponte, o advogado da família de Ismael declarou que a esposa não tinha condições de comentar sobre o caso pelo abalo em reviver o sofrimento. “Uma pessoa com cargo público deveria ter mais cuidado em fazer esse tipo de comentário porque o Ismael foi vítima de uma bala perdida e foi comparado a um criminoso”, afirmou Felipe dos Anjos. “Ele [Derrite] poderia ter feito uma retratação, um pedido público de desculpas, mas não fez”.

Em 2021, a família também entrou com uma ação judicial contra o governo paulista com um pedido de indenização por dano moral que ainda não foi julgado.

“Bala perdida”

Prestes a completar três anos, a morte de Ismael ainda está sendo investigada pela Polícia Civil. Em dezembro do ano passado, o delegado Francisco Pereira Lima, do Setor de Homicídios de Osasco, pediu mais 60 dias de prazo à Justiça para continuar a apuração. Desde o registro do boletim de ocorrência, o soldado Marco Antônio Avelino Filho, que fez o disparo, relatou que não abordou Ismael e que só depois que fez os disparos o viu caído no chão. O documento foi elaborado às 9h42, no 10º DP de Osasco, ou seja, quase três horas antes de Derrite fazer a postagem.

Marco pertencia, na ocasião, à Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam) do 42º Batalhão da PM Metropolitano (BPM/M) e disse na delegacia que estava com seu colega, cabo Rogério José de Oliveira, na comunidade do Flamenguinho quando viu um homem em uma motocicleta que teria apresentado “atitude suspeita” ao demonstrar “nervosismo” quando o cabo passou e que, por isso, decidiu abordá-lo.

Ele disse que determinou que o suspeito descesse do veículo, mas não obedeceu e fugiu, o que iniciou uma perseguição da dupla de policiais. O soldado informou que, em determinado trecho da comunidade não era possível as motos passarem, então o homem abandonou a direção e continuou fugindo a pé para dentro das vielas.

Durante a correria, Marco relatou que conseguiu alcançar o homem ao segurá-lo pela camisa e, enquanto tentava imobilizá-lo, o suspeito teria ido para cima dele e um revólver caiu de sua cintura. Os dois teriam entrado em luta corporal e, segundo o soldado, o homem tentou pegar sua pistola e o empurrou, mas Marco disse que conseguiu se “desvencilhar”, fez dois disparos em direção a ele, “não sabendo precisar a qual distância”, e que o suspeito correu.

O soldado pegou o revólver que teria caído da cintura do homem e correu atrás, momento em que disse percebeu que um dos tiros acertou Ismael quando o viu caído no chão. O suspeito fugiu e Marco disse que acionou o resgate. Contudo, devido à demora do socorro, os próprios moradores acabaram levando o encanador ao hospital.

Uma câmera do mercado registrou Ismael deixando o local. Ele caminha e para próximo a uma árvore, parecendo ter se assustado com algo. Depois, ele sai da calçada e, ao chegar no meio da rua, cai. Um homem ao fundo aparece correndo e um policial (com capacete na cabeça) surge atrás. O PM anda de um lado para o outro quando vê Ismael caído no chão.

No depoimento de Marco à Corregedoria da PM, feito em 4 de março de 2020, tem algumas divergências. O soldado não diz que foi empurrado, mas que se desequilibrou no momento que o suspeito tentava pegar sua arma porque “estava utilizando fardamento próprio da ROCAM, inclusive capacete, e devido à diferença de porte físico entre o declarante [Marco] e o indivíduo, o declarante diz que neste momento devido ao desequilíbrio efetuou 02 (dois) disparos”. E afirma que pegou o revólver do chão e o suspeito fugiu.

Câmera de mercado registrou Ismael deixando estabelecimento (camiseta preta e calça jeans) minutos antes de ser baleado | Foto: reprodução
Câmera de mercado registrou Ismael deixando estabelecimento (camiseta preta e calça jeans) minutos antes de ser baleado | Foto: reprodução

No entanto, duas testemunhas disseram que o soldado disparou enquanto o homem corria. O próprio suspeito, que foi identificado e detido, também disse que ouviu os tiros no momento em que fugia e negou que estivesse armado ou tivesse tentado pegar a pistola do policial. Esse homem acabou preso três meses depois por tráfico de drogas e porte ilegal de arma.

O cabo Rogério Oliveira relatou, tanto à Polícia Civil como à Corregedoria, que não presenciou o momento do embate entre Marco e o suspeito nem viu em que circunstância os tiros foram disparados porque ele não continuou a perseguição no momento em que as motocicletas foram abandonadas. Ele relatou que ouviu dois tiros e que foi até o local depois que o soldado o acionou pelo rádio.

Em um relatório assinado em 2 de dezembro de 2020, o coronel corregedor José do Carmo Garcia, do 42º BPM/M, avaliou que o soldado agiu com “falta de profissionalismo”, contrariando os Procedimentos Operacionais Padrão (POP) da PM, ao “agir sozinho sem o devido apoio”, o que gerou um “resultado desastroso” porque os depoimentos das testemunhas, inclusive do suspeito, “asseveram que o policial militar em comento efetuou os disparos de arma de fogo durante o acompanhamento a pé e, portanto, o abordado já não oferecia perigo e ainda assumiu o risco de atingir um terceiro, o que, infelizmente, ocorreu”.

O POP determina que policiais militares não podem fazer disparos em pessoas durante a fuga que estejam desarmadas ou não ofereçam risco, assim como em furo de bloqueio de veículos, além de se atentar sobre o espaço que está inserido a fim de que não cause risco a si nem a outras pessoas. Ele também não deveria ter feito a abordagem sozinho sem acionar apoio durante a perseguição.

Também existe uma lei federal, a 13.060/2014, que trata da aplicação de instrumentos de menor potencial ofensivo, que não considera como legítimo o emprego de arma de fogo justamente em relação a esses dois pontos: contra pessoa em fuga desarmada ou que não ofereça risco e “contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros”.

O coronel corregedor José do Carmo Garcia entendeu que Marco praticou transgressão disciplinar de natureza grave, atentória aos direitos humanos fundamentais, na seara administrativa e que não havia excludente de ilicitude pela morte de Ismael porque ele assumiu o risco ao disparar. Ele recomendou que o caso fosse remetido à Vara do Júri de Osasco, a abertura de um processo regular para apurar “a incapacidade moral” do soldado permanecer na corporação e a complementação do inquérito.

O que diz a polícia

A Ponte procurou Marco Avelino Filho por WhatsApp, mas ele parou de responder a reportagem quando questionamos a respeito do caso. Buscamos um advogado que o representou em um procedimento administrativo em 2021 e perguntamos se o soldado ainda é seu cliente. Ele não respondeu e só enviou a seguinte mensagem: “Ponte, aquele jornal que mete pau em polícia com notícias falsas né? Jamais vou falar com vcs. Saí daqui”.

Questionamos a Secretaria da Segurança Pública sobre o andamento das investigações sobre a morte de Ismael bem como sobre o relatório do coronel corregedor, já que Marco Avelino Filho continua na corporação conforme o Portal da Transparência, pedimos entrevista com o soldado e com o secretário Guilherme Derrite sobre o caso. Até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu.

*O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada a pedido do advogado.

Publicado originalmente em Ponte.

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