Publicado originalmente na DW.
Nascida de um golpe militar, em 1889, a República brasileira frequentemente viu, ao longo de seus primeiros cem anos, os militares desempenharem um papel de protagonistas na sua história.
Foi assim em 1930, no impedimento da posse do presidente eleito Júlio Prestes e na ascensão ao poder de Getúlio Vargas. Ou em 1945, quando o Exército depôs Vargas, encerrando a ditadura do Estado Novo. Ou em 1955, quando o chamado golpe do marechal Lott garantiu a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Mas as feridas abertas pela última intervenção militar na política brasileira, o golpe contra o presidente João Goulart em 1964, parecem ter sido mais profundas do que as causadas pelas ações anteriores – não só na sociedade, mas também entre os militares. Depois da ditadura, eles não se envolveram mais na política. Desde 1985, reina silêncio nas casernas.
Especialistas avaliam que, entre os motivos para essa mudança de atitude estão a Lei da Anistia, de 1979, e o desgaste dos governos militares, tanto por causa da repressão política como por terem, ao fim do regime, em 1985, entregue um país em crise econômica.
“Houve um cansaço do poder e uma decisão estratégica ao longo dos anos 1970 de fazer a transição democrática e um recuo para as suas funções constitucionais tradicionais. Eles julgaram que o seu papel político institucional havia sido cumprido, para o bem ou para o mal”, avalia o cientista político Fernando Schüler, diretor-geral do Ibmec/RJ. Por esse raciocínio, a Lei da Anistia seria um selo que permitiu que os militares saíssem do poder e que a elite civil retomasse o controle do país.
O professor Renato Luís do Couto Neto e Lemos, responsável pelo Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política da UFRJ, vê na estabilidade da democracia brasileira um dos motivos para o recolhimento dos militares. Para ele, o arranjo político criado pelo processo de transição, a partir de 1974, e consolidado pela Constituição de 1988 tem sido eficaz na garantia da estabilidade socioeconômica.
“Ademais, é preciso lembrar que um dos principais motivos para o surgimento do projeto de distensão política, por volta de 1973, foi o receio, entre os militares, de um desgaste que a permanência no poder traria para a organização militar”, diz Lemos. “A memória desse desgaste deve funcionar como um ‘sossega leão’ para eventuais candidatos a golpistas dentro da corporação. Mas não como uma imunização definitiva”, avalia.
Desgastes nos planos sociais e econômicos
Apesar de ter permitido o retorno ao país de líderes oposicionistas como Leonel Brizola, a Lei da Anistia também foi uma vitória para os militares, já que os isentou da apuração de responsabilidades sobre os crimes cometidos pelas forças de repressão do regime.
“Houve uma integração à institucionalidade por meio dessa lei, que foi o contrato político pelo qual nasceu a atual democracia brasileira. Uma democracia sem revanchismos, mas dolorosa, porque acabou produzindo muito esquecimento de infrações aos direitos humanos, que foram um dos motivos para o desgaste do regime militar”, afirma Schüler.
A economia também foi outro motivo importante para o desgaste dos militares. Apesar do crescimento durante o chamado “milagre econômico”, a expansão do Produto Interno Bruto não reduziu as desigualdades sociais nem diminuiu a pobreza. “O final dos anos 1970 é marcado por um acirramento da crise econômica, por governos militares desgastados em seu discurso de salvação da pátria”, diz Luiz Antônio Dias, chefe do Departamento de História da PUC-SP.
Outro desgaste ocorreu junto a setores importantes da sociedade civil, como a imprensa. De forma geral, ela apoiou o golpe em 1964, mas boa parte logo em seguida passou a clamar pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Muitas pessoas acreditavam que a intervenção militar seria rápida, como já havia ocorrido em outros momentos da história brasileira, o que não aconteceu.
Dias afirma que, em entrevistas dadas por alguns militares, é muito comum a ideia de que a ditadura se estendeu demais. Além disso, segundo ele, muitos militares se ressentem do “desprezo” por parte da sociedade civil em relação ao que fizeram durante o período em que estavam no poder.
“Eles reclamam que ‘todos’ pediram a intervenção e, hoje, esses mesmos dizem que os militares eram os ditadores e torturadores. É muito forte, entre eles, a ideia de que agiram em nome de uma opinião pública – o que eu contesto em minhas pesquisas”, afirma Dias. “Além disso, a conjuntura internacional deve ser levada em conta, já que os golpes militares, com raras exceções, não são bem vistos. Assim, esse desgaste pode ser visto como uma das causas para o recolhimento”, afirma Dias.