Deslocamento do eixo gravitacional da política brasileira. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 28 de outubro de 2024 às 6:45
O ex-presidente Jair Bolsonaro – Foto: Cristobal Herrera

Por Aldo Fornazieri

Definidos todos os vencedores e perdedores, as eleições municipais de 2024 definiram algumas novas características e tendências da política brasileira. A mais notável característica é o fim da bipolarização entre bolsonarismo e lulismo (esquerda, petismo etc.). As eleições marcaram o fortalecimento da multipolarização e do pluripartidarismo, com uma clara inclinação para a centro-direita.

Os candidatos bolsonaristas radicais, com exceção de Fortaleza, foram derrotados por candidatos de partidos de centro-direita (Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia), com o apoio velado ou explícito da esquerda. E a centro-direita, em algumas cidades (São Paulo, Porto Alegre etc.), disputou com candidatos de esquerda. Há um limite eleitoral para o discurso extremado do armamentismo, do machismo e de preconceito, principalmente entre as mulheres.

A mais notável tendência consiste no processo de deslocamento do eixo gravitacional da política brasileira para a centro-direita. A derrota de Bolsonaro para Lula em 2022 havia enfraquecido o bolsonarismo. Esse enfraquecimento agora se amplia e Bolsonaro perde capacidade de atração de aliados porque a sua perspectiva de poder futuro minguou.

Com a vitória de 2022, Lula havia se tornado o novo eixo gravitacional da política brasileira. Mas nesses quase dois anos de governo sofrível e confuso, sem capacidade de conferir um sentido e um rumo estratégicos ao país, e com o resultado das eleições municipais, Lula ficou enfraquecido na perspectiva de poder futuro e enquanto centro de atração de aliados. Lula, ao contrário do PT e da esquerda, não saiu propriamente derrotado das eleições, mas saiu enfraquecido pelas derrotas de seus apoiadores mais fiéis e históricos.

A centro-direita, contudo, tem dois grandes problemas: 1) não tem um líder que a unifique e nem tende a tê-lo; 2) Não há coesão nem entre os partidos e nem dentro dos partidos. Por exemplo: tanto no MDB, quanto no PSD, seus representantes do Nordeste e Norte tendem mais para o campo progressista, enquanto que no centro-sul, tendem mais para o campo conservador. A questão que se coloca é se o Tarcísio de Freitas poderia ser esse líder agregador. Ele saiu fortalecido com a vitória de Nunes, mas com a imagem arranhada ao cometer crime de abuso de poder contra a campanha de Boulos. Mostrou que não tem afeição com a democracia.

O PL, o quinto em número de prefeituras conquistadas, fará uma opção de extrema-direita em 2026. Assim, o PSD, o MDB, o PP e o União Brasil, os quatro primeiros colocados pela ordem, terão papeis importantes na definição do cenário das eleições presidenciais no campo de centro-direita. Gilberto Kassab, que já declarou que estará com Tarcísio em qualquer circunstância, será um dos grandes caciques nesse processo.

Mesmo com todo esse cenário, a questão central da sucessão presidencial de 2026 ainda se concentra em Lula. Mas Lula está numa encruzilhada. Em primeiro lugar, para garantir a governabilidade dos dois últimos anos terá que ceder ainda mais espaço nos ministérios aos partidos de centro-direita. Caso contrário terá grande dificuldade de aprovar qualquer coisa no Congresso.

Em segundo lugar, o governo se mostra fraco, extraviado, sem capacidade de indicar um rumo estratégico. Mesmo que a economia continue num ritmo de crescimento até 2026, não há nenhuma garantia de que isto se traduza em dividendos políticos e eleitorais, exatamente por conta da fraqueza política do governo.

Em terceiro lugar, incidirá sobre a possível candidatura Lula em 2026 o fator idade. Ele terá 81 anos, a mesma idade que o presidente Biden tem em 2024. Esta é uma variável sobre a qual não se terá muito controle para a definição do cenário de candidaturas para a sucessão presidencial. Na hipótese de Lula não ser candidato, o cenário tenderá a ser mais complexo, com a pulverização de várias candidaturas de centro e de direita.

De modo geral, as eleições marcaram a força do instituto da reeleição associado ao orçamento secreto. Alguns governadores saíram politicamente fortalecidos: Ronaldo Caiado, Ratinho Júnior, Elder Barbalho e Tarcísio, este chamuscado pelo crime eleitoral que cometeu.

Mesmo com a vitória em Fortaleza, o PT e as esquerdas reiteraram sua derrota. Não dá para comparar o resultado de 2024 com o resultado de 2020. Naquele ano, Lula recém tinha saído da prisão. Agora, o PT está no governo com Lula.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva- Foto: Reprodução

As eleições aprofundaram o processo de mediocridade da política. Foram marcadas mais por ataques pessoais do que por discussão de saídas para as cidades e as dificuldades dos cidadãos. O tema do meio ambiente, que expressa a maior crise do nosso tempo e a maior ameaça que paira sobre o presente e o futuro, pouco foi abordado. As altas abstenções indicam a exaustão da sociedade com os partidos e com os políticos, que se insularam no poder e só aparecem nas periferias nas campanhas eleitorais.

Os programas de governo, incluindo os dos candidatos de esquerda, foram pobres. Não inovaram. Não souberam articular os temas das transições ecológica, da transição digital e da transição socioeconômica numa perspectiva inovadora em termos de serviços públicos, de nova economia do bem comum, de oferta de plataformas de desenvolvimento local articuladoras de conexões, empreendedorismo, serviços e fortalecimento de soluções locais.

A candidatura de Boulos foi a mais significativa do campo da esquerda. No primeiro turno foi uma campanha extraviada, confusa, ingênua. Não projetou liderança e nem marca. Não preparou o segundo turno. Boulos entrou no segundo turno praticamente derrotado. Houve uma melhora no desempenho dele nos debates. Mas já era tarde. Em 2020, Bruno Covas fez 59,68% de votos e Boulos 40,62%. Agora Nunes fez 59,35% e Boulos 40,65%. Naquele ano de pandemia, a abstenção foi de 30,81%. Neste ano foi de 31,4%. Tudo praticamente se repetiu. Isto indica que Boulos terá que rever seu perfil de liderança e sua prática política.

A campanha pessolista mostrou-se tributária de algumas propostas de Marçal, o que prova a tibieza do programa do candidato. Sem entrar no juízo moral, a participação de Boulos na live de Marçal mais serviu para lavar a imagem deste. Boulos justificou a participação com o argumento de que dialoga com todos. Mas se deve dialogar com fascistas? Parece um equívoco a tese de que se ameniza a imagem ao dialogar com um radical de direita que não tem escrúpulos, cuja principal método consiste na mentira sistemática.

As esquerdas estão fora do tempo. Erram na forma e nos conteúdos e narrativas. Não dialogam com os anseios e com as aflições do povo, com novo tipo de relações sociais e de trabalho que vem se constituindo com a revolução digital. Propõem soluções velhas para cidades que agridem a vida dos cidadãos, que destroem as formas de vida coletivas.

Não percebem que o enfrentamento do individualismo, da solidão, das incertezas e da desesperança requer novas formas de articulação da cidadania, da articulação de espaços e de proposição de novas modalidades de prestação de serviços públicos. Não conseguem sair das armadilhas retóricas impostas pela direita. E não conseguem superar as suas próprias armadilhas que se autoimpuseram por uma sucessão de discursos equivocados.

Este vazio de inovações e de soluções, essa ausência de acolhimento e de cuidado, esse desprezo pelos afetos e pelos valores vêm aprisionando os políticos e os partidos de esquerda no seu próprio insulamento em face da sociedade. As esquerdas perderam as ruas e os territórios. Os sindicatos já não têm força. Os partidos e os políticos de esquerda precisam se submeter ao crivo da crítica pública através de um debate aberto, ouvindo e dialogando com a sociedade, para que possam se reinventar.

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