Por Kakay
É difícil definir o que nos foi levado primeiro. A esperança, dirão alguns; a alegria, outros; o futuro, quase todos. Mas algo permeia quem ainda tem lucidez e uma expectativa nos invade. Há um estranho e indefinido sentimento de perplexidade no ar. O Brasil deixou de ser o país que, mesmo com profundas contradições e o fosso abissal de desigualdade, acalentava o sonho da mudança para se tornar mais justo e igualitário.
Aqui dentro e no exterior, o Brasil secou. E virou uma pátria triste, sem ar, sem charme. O futuro não chegou sequer a ser sonhado, foi tragado pela mesmice e pela obviedade de um bando de bárbaros que assaltou as instituições e saqueou o Estado.
Nos dias de hoje, o grande trunfo é ter vivido e poder ter histórias para contar. O passado é nosso companheiro nos infinitos momentos de solidão. Quem foi feliz começa a se achar poderoso e a imaginar uma hipótese de viver com o crédito de vidas passadas. O futuro deixou de ser um capital, a juventude é um susto contido, e a vida, enfim, é uma incógnita diária.
Nesse contexto, todos nós temos que nos reinventar para enfrentar e conviver com a extrema direita obtusa, vulgar e criminosa que está no poder. É indescritível o número de absurdos que se materializam. Se fosse ficção, todos nós acharíamos de uma inimaginável criatividade surrealista. Mas é a vida real, sem viés, que vem se apresentando como uma pantomima.
O dia a dia tem sido de uma mediocridade irritante. Imagine que a Fundação Palmares excluiu monumentos da nossa história da lista de personalidades negras, como Gilberto Gil, Martinho da Vila, Milton Nascimento e tantos outros; removeu do site os links de biografia de ícones da literatura, como da Carolina de Jesus. Sem contar o fato escandaloso que foi a retirada da estátua de Zumbi dos Palmares da entrada da sede da Fundação. E hoje, numa confusão que nos envergonha, anuncia que excluirá qualquer referência a Carlos Marighella pois seus textos “são como escritos de Hitler.”
Ao mesmo tempo, uma secretária do Ministério da Saúde diz, sob juramento à CPI, que existe um “pênis na porta da Fiocruz”. Num país onde o presidente da República frequentemente se ampara em piadas chulas, provavelmente trata-se da manifestação de um desarranjo sexual exteriorizado por uma pseudossegurança sexual. Parece que a sua família anda permanentemente no limiar do armário e do divã. E o pênis é o fetiche dos seguidores bolsonaristas.
Mas, no meio de todas nossas lutas diárias, que nos mobilizam e nos definem, eis que surge a hipótese de exercer um espaço real. E ainda assim temos dúvidas. No sábado, 29 de maio, os brasileiros que não suportam mais esse governo que cultua a morte, que se posta de costas à vida, que menospreza a dor das pessoas e que tem a desfaçatez de ridicularizar os que sofrem pela falta de oxigênio, os que, enfim, querem deixar de ser prisioneiros do obscurantismo e do atraso irão às ruas para demonstrar sua indignação.
Será uma manifestação pacífica na qual as pessoas ocuparão as ruas em sinal de inconformismo com a política genocida do governo Bolsonaro. Organizado pelos movimentos sociais, o protesto tomou corpo pela tristeza e revolta generalizadas pelo caos das nossas vidas diárias. Marcharão com os manifestantes, lado a lado, num abraço invisível e de mãos dadas, as memórias de 452 mil brasileiros que foram levados pelo vírus. Boa parte deles em razão da irresponsabilidade criminosa do presidente da República e seus asseclas.
Andará junto a cada um de nós a memória dos familiares, dos amigos, dos conhecidos e até dos desconhecidos. Um silêncio de dor e saudade será ouvido mais forte do que qualquer grito de inconformismo. Nada fala mais alto aos nossos corações do que a falta de um ser querido.
Não tenhamos, porém, a pretensão de sermos percebidos pelos bolsominions. Como ficou evidente na CPI, eles vivem em um mundo imaginário originado pela mentira e suportado pela hipocrisia. A insensibilidade criou um fosso intransponível e, do lado de fora de um círculo de giz invisível, ficaram a solidariedade, o humanismo e a empatia. Nós, enfim.
A importância do movimento é mostrar para nós mesmos que é possível resistir. Que não perdemos a capacidade de nos indignar. E de sonhar por um mundo, de novo, justo e igual. É difícil a decisão de sair em passeata, pois a aglomeração é a arma dos fascistas. É uma decisão pessoal, vista como um ato de legítima defesa própria e de terceiros. No silêncio das nossas casas estamos presenciando um genocídio, um massacre, um extermínio. Talvez das ruas, com distanciamento e máscaras, possamos mostrar ao mundo que nossa dor é nossa, mas que a indignação é de todos.
Eu, vacinado, irei, mas não convoco ninguém. Respeito os que decidirem, por coerência, resistir no isolamento. Consigam uma maneira de se manifestar como, aliás, temos feito nos últimos tempos. Todos estaremos juntos, inclusive os 452 mil brasileiros mortos pela condução criminosa da pandemia, pelos quais vale a pena sair às ruas.
E vou de verde e amarelo. Os fascistas, que roubaram a dignidade, a esperança, o presente e o futuro, se apropriaram inclusive das nossas cores, que passaram a representar certa vergonha nacional. Será também uma maneira de dizer não a esses incultos. Voltar a usar o verde e amarelo é também uma maneira de dizer não a essa barbárie, de resistir. Sem medo de ser feliz.
Recorro-me ao poeta Torquato Neto, no poema Marginália II:
“Eu brasileiro confesso
Minha culpa meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso.”