Por que a direita do Brasil teme Paulo Freire?

Atualizado em 19 de setembro de 2021 às 9:15
Paulo Freire. Foto: Reprodução/Twitter

Esse artigo sobre Paulo Freire é da Fair Observer em inglês e foi republicado no site Open Democracy. Relevante para ser lido no dia dos 100 anos do maior educador brasileiro.

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Quem tem medo de Paulo Freire?

educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) foi uma figura de destaque na pedagogia crítica do século XX e célebre autor do texto inovador, “Pedagogia do Oprimido”, publicado em 1968. O trabalho de Freire propõe um método dialógico de alfabetização que fomenta a conscientização e encoraja a participação em lutas políticas. De acordo com um estudo de 2016, “Pedagogia do Oprimido” foi o terceiro livro mais citado nas ciências sociais. Como Daniel Schugurensky escreve em sua biografia intelectual de Freire, de 2011, “nenhum outro pensador educacional do Sul Global atraiu tanta atenção internacional para suas ideias”.

No entanto, o legado de Freire continua sendo um tema polêmico no Brasil contemporâneo. A direita brasileira tende a retratar Freire como um perigoso subversivo que planejava doutrinar a juventude. O governo de direita do presidente Jair Bolsonaro usou essa caricatura enganosa para justificar seu ataque à educação pública.

Em discursos e entrevistas, Bolsonaro e seus aliados descrevem Freire como uma espécie de bicho-papão esquerdista cuja influência precisa ser expurgada do sistema educacional brasileiro. Durante sua campanha eleitoral, Bolsonaro prometeu a seus partidários que entraria no ministério da educação com um “lança-chamas” para remover Paulo Freire. Abraham Weintraub, agora ex-ministro da Educação de Bolsonaro, culpou Freire pela baixa classificação educacional do Brasil e comparou a pedagogia freireana a um “vodu sem comprovação científica”. Da mesma forma, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, conhecido como “guru” de Bolsonaro, descarta Freire como um “militante pseudo-intelectual” que produziu “uma coleção de truques para reduzir a educação à doutrinação sectária”.

Doutrinação esquerdista

Em última análise, Bolsonaro e seus apoiadores acreditam que Freire era um revolucionário louco que merece ser destituído do seu título de patrono da educação no Brasil. Contudo, esses insultos e acusações não são únicos nem inéditos. Na verdade, membros da direita brasileira caluniam Freire desta maneira há mais de meio século.

Ditadura militar considerava Freire um “subversivo internacional” e “um traidor de Cristo e do povo brasileiro”

Sem dúvida, Freire teve um papel significativo na história da política brasileira. Em 1963, atuou no governo de João Goulart, de centro-esquerda, como presidente da Comissão Nacional de Cultura Popular. O comitê introduziu uma campanha educacional que planejava usar os métodos de ensino de Freire para alfabetizar 5 milhões de cidadãos brasileiros. Na época, a alfabetização era um requisito para o exercício do direito do voto, e o governo de Goulart esperava que a campanha de Freire aumentasse a participação eleitoral.

Os oligarcas e proprietários de terras brasileiros temiam que a campanha levasse os trabalhadores rurais a formar associações e votar pela reforma agrária. O jornal O Globo afirmou que os métodos de Freire eram subversivos porque encorajavam as pessoas a pensar em mudanças políticas e culturais. Em suma, a direita brasileira sentia que as iniciativas de alfabetização de adultos de Freire representavam uma ameaça às hierarquias tradicionais.

Em 1964, os militares brasileiros derrubaram o governo de Goulart em um golpe de Estado e prenderam Freire. Segundo Moacir Gadotti, o governo militar considerava Freire um “subversivo internacional” e “um traidor de Cristo e do povo brasileiro”. Durante o julgamento de Freire, um dos juízes chegou a acusá-lo de conspirar para transformar o Brasil em um estado comunista. Freire ficou preso por 70 dias antes de receber asilo político na Embaixada da Bolívia no Rio de Janeiro. Durante o exílio, Freire exerceu um cargo de professor visitante na Universidade de Harvard, trabalhou como consultor em educação especial do Conselho Mundial de Igrejas e co-fundou o Instituto de Ação Cultural.

Quando Freire voltou ao Brasil em 1980, tornou-se um dos membros fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele supervisionou muitos dos projetos de alfabetização de adultos do PT e atuou como secretário municipal de educação em São Paulo entre 1989 e 1991. Sob a liderança do co-fundador do PT de Freire, Luiz Inácio Lula da Silva, o partido venceu as eleições gerais de 2002, uma conexão que a direita brasileira deseja enfatizar. Bolsonaro e seus apoiadores interpretam as modestas reformas educacionais do presidente Lula, como financiamento para estudantes indígenas e afro-brasileiros, como uma continuação da suposta conspiração de Freire para transformar o Brasil em regime comunista.

Direito à educação

Desde que Bolsonaro assumiu a presidência em janeiro de 2019, seu governo propôs e implementou várias políticas que visam combater o suposto flagelo da “doutrinação de esquerda” inspirada por Freire nas escolas e universidades brasileiras. Em abril de 2019, Weintraub ameaçou reduzir investimentos em cursos universitários de sociologia e filosofia para priorizar áreas como engenharia e medicina, que geram “retorno de fato” ao contribuinte. Críticos dessa política, como Stephanie Reist, afirmam que Weintraub quer cortar o financiamento dos departamentos de sociologia e filosofia porque ele acredita que sejam focos de ativismo de esquerda e “marxismo cultural“.

A defesa do legado de Freire se tornou um símbolo duradouro na defesa do direito à educação

Vários dias depois, Weintraub declarou um corte de 30% das verbas para todas as universidades federais. Críticos apontam que esses cortes fazem parte de uma campanha maior para minar e desmoralizar a resistência ao regime Bolsonaro. Weintraub esperava que esses cortes desencorajassem as universidades federais de receber organizações políticas como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Além disso, Weintraub apoiou a tática de caça às bruxas de gravar professores “esquerdistas” nas salas de aula. O movimento político de direita, Escola Sem Partido, cujo fundador Miguel Nagib descreveu Freire como o “patrono da doutrinação“, popularizou a ideia de incentivar os alunos a filmar professores suspeitos de promover ideologia de esquerda. Os membros do movimento esperam que o governo Bolsonaro substitua essa suposta “doutrinação de esquerda” por uma educação “neutra” que reforce os valores morais tradicionais.

Quem conhece a “Pedagogia do Oprimido” saberá que Freire acreditava que a educação nunca era neutra. Para Freire, a educação é uma forma de ação emancipatória ou um instrumento de dominação. Nos termos de Freire, a direita brasileira quer que escolas e universidades convertam estudantes em “pessoas embrutecidas” que se ajustem às hierarquias existentes e evitem questionar a ordem política. Como Freire escreve no prefácio de “Pedagogia do Oprimido”, o sectário de direita pretende domesticar homens e mulheres.

No entanto, estudantes e professores brasileiros se recusam a tolerar os esforços de Bolsonaro e Weintraub de “domesticá-los”. Em resposta aos cortes de verba propostos pelo Weintraub, protestos em massa ocorreram em mais de 200 cidades em todo o país, descritos como “tsunami da educação”. Da mesma forma, o grupo Professores contra o Escola Sem Partido continua a criticar e se opor aos planos do governo de apagar os tópicos da escravidão e direitos LGBTQ do currículo.

No ano passado, o número de pessoas interessadas no trabalho de Freire aumentou. Segundo a editora Paz e Terra, as vendas de “Pedagogia do Oprimido” aumentaram 60% no primeiro semestre de 2019 em relação ao ano anterior. Em uma entrevista recente, sua viúva, Ana Maria Freire, brincou que Bolsonaro inadvertidamente aumentou a popularidade de Freire, dizendo que Bolsonaro “está estimulando a venda de livros de Paulo. Muita gente que nunca leu está comprando o livro para ler”. Durante os protestos, inúmeras faixas e cartazes exibiram o nome e o rosto de Freire. A pesquisadora educacional Inny Accioly opina que “a defesa do legado de Freire se tornou um símbolo duradouro na defesa do direito à educação”. Apesar das inúmeras tentativas da direita brasileira de distorcer seu legado, a vida e o trabalho de Freire continuarão a inspirar e orientar aqueles que acreditam que a educação deve ser um empreendimento crítico que auxilia a tarefa de libertação.