Originalmente publicado em DIÁRIO DO NORDESTE
Por Durval Muniz de Albuquerque Jr
O importante intelectual da luta contra o racismo, o martinicano Frantz Fanon, criticava a ideia da existência de um “povo negro”. Para ele não se podia apoiar a construção de uma identidade na cor da pele das pessoas. A cor da pele não diz nada sobre o que a pessoa é, sobre sua cultura, seus valores, suas ideias, seus comportamentos e atitudes.
Reduzir uma pessoa a cor da sua pele e considerar que milhares de seres humanos são iguais, têm formas homogêneas e similares de serem humanos, representam um estágio único de desenvolvimento da civilização e da racionalidade, era para ele um capítulo do racismo, que compunha, como elemento estrutural, o sistema de dominação econômico e político do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo.
É comum, entre nós, falarmos tranquilamente sobre o “povo nordestino” e nunca pararmos para olhar criticamente para os significados que podem estar implicados nessa designação identitária.
O que definiria a existência do “povo nordestino”? O fato de se ter nascido em alguma parte dos nove estados que compõem oficialmente, desde 1969, a região Nordeste? Ter nascido em um desses nove estados é suficiente para que consideremos que tal pessoa faz parte dessa identidade homogênea de “povo nordestino”? O que o simples nascimento em um dado espaço define do que alguém será ou deixará de ser?
Construir a definição de um ser, de uma forma de existir, de uma identidade, somente a partir de seu local de nascimento não seria uma simplificação grosseira? Podemos fundar um ser coletivo somente apelando para o espaço de nascimento de seus componentes? A origem geográfica e o lugar de nascimento configuram, efetivamente, fatores relevantes para se dizer quem é uma dada pessoa ou dado grupo?
Para que se possa tornar aceitável a existência de um “povo nordestino” é preciso que várias operações de simplificação e homogeneização da realidade espacial, social e cultural do Nordeste sejam levadas a efeito.
O primeiro óbice à existência de um “povo nordestino” é que, mesmo espacialmente, mesmo do estrito ponto de vista físico-geográfico, o Nordeste não é uma realidade homogênea. Mesmo para quem ainda acredita no determinismo geográfico, para quem acha que o cariri e o semiárido existem por si mesmos, não precisam dos homens para receberem esses nomes, adquirirem significados, se transformarem em paisagens, serem delimitados e classificados como tipos de clima, como biomas, como regiões; o Nordeste não apresenta uma homogeneidade de meio capaz de criar um povo também homogêneo.
Embora na visão estereotipada a paisagem da região se reduza à caatinga adusta e gretada, o Nordeste comporta diferentes tipos de clima, vegetação, solo, relevo, altitudes. Mesmo que acreditemos que o “povo nordestino”, como cactos que são, brotam do solo, não dá para pensar, com a variedade de solos da região, que nasça a mesma gente-cacto em todo lugar.
Falar em “povo nordestino” é silenciar sobre a diversidade étnica e racial dos habitantes da região, é dar força ao estereótipo do cabeça-chata, a existência de um pretenso corpo de nordestino, de um tipo nordestino, que as figuras estereotipadas do baiano e do paraíba tentam materializar.
É tornar invisível o fato de que no Nordeste habitam vários povos indígenas, que no Nordeste existem centenas de remanescentes de quilombos, que os nordestinos não formam um só povo, pois se originam de vários povos e de inúmeros processos de miscigenação, que não têm a mesma origem étnico-racial.
Falar em “povo nordestino” é pressupor a existência de uma mesma maneira de falar, uma mesma cultura, a dita cultura nordestina. Mas basta andar pela região para se dar conta da diversidade de sotaques, as diversas maneiras de falar existentes na região, motivadas, inclusive, por enormes desigualdades no que tange ao acesso ao letramento, à educação, à cultura.
Como se pode supor que alguém nascido no Recôncavo Baiano tem os mesmos costumes, hábitos, tradições, formas de sentir e pensar, que os nascidos no cariri cearense ou paraibano?
As diferenças culturais entre quem mora nas grandes metrópoles da região e as zonas rurais mais isoladas são acentuadas. Quem representa o “povo nordestino” e sua cultura, o rapper recifense, o repentista campinense ou o bailarino clássico petrolinense? É evidente que todos eles, a não ser na visão estereotipada do que é ser nordestino e do que seja a cultura nordestina, que ficaria só com o repentista.
Mas o mais insidioso e de graves consequências políticas é que admitir a existência de um “povo nordestino” é escamotear as profundas diferenças de classe, as profundas desigualdades sociais e étnico-raciais existentes na região.
Quando se fala em “povo nordestino”, quando se faz um discurso de vitimização em torno desse enunciado, quando se coloca esse povo na condição de oprimido, explorado, injustiçado, discriminado ou quando, romanticamente, ele é definido como valente, corajoso, resistente, viril, escamoteia-se o fato de que nem todo nordestino é oprimido, nem todo nordestino é explorado e injustiçado, assim como nem todo nordestino é valente, corajoso, resistente, viril.
Os opressores também são, muitas vezes, nordestinos, assim como os exploradores e aqueles que comentem injustiças, violências, discriminações, exclusões. A expressão “povo nordestino” é perigosa, pois é despolitizadora e alienante, ela suscita e convoca uma solidariedade regional, um regionalismo que, muitas vezes, tem a capacidade de cegar as pessoas para seus interesses e para seus lugares de classe, de gênero, de etnia. Além de que ela facilita, por ser simplificadora, a emissão de discursos de preconceito, de rejeição, de ódio.
Quando se fala em “povo nordestino”, sobre quem se está falando? Sobre o riquinho yuppie dos bairros de classe média de Fortaleza, Recife ou Salvador, do trabalhador das fábricas do complexo de Camaçari, do surfista das praias de Itacaré e Baía Formosa, do criador de gado do Moxotó e do Pajeú, do professor universitário de Quixadá e Delmiro Gouveia, do dançarino de reggae de São Luís, do brincante de quadrilhas de Natal ou do ator do grupo de teatro de Juazeiro do Norte?
A travesti das ruas de Fortaleza, o rapaz bombado da academia do bairro de Casa Forte, no Recife, o vendedor de coco da praia do Francês em Maceió, o brincante de vaquejada de Santa Cruz do Capibaribe, o devoto de Padre Cícero, os evangélicos da Igreja Universal do Reino de Deus de Abreu e Lima, os cabeça-feita de Canoa Quebrada ou de Pipa, o hippie de Arembepe, fazem parte do “povo nordestino”?
Fazem, desde que se rompa com a visão identitária, homogênea, estereotipada, simplicadora do ser nordestino, que é múltiplo, diverso, diferente e divergente. A ideia da existência de um “povo nordestino” é uma das facetas do racismo entre nós, pois, no estereótipo, o nordestino é racializado e contraposto a figura do “sulista” pretensamente branco e europeu, os nordestinos seriam um “povo mestiço” e por isso um “povo inferior”.